Álvaro Guerra

Entrevista conduzida por Batista-Bastos -  "Público" (1994)

ENTREVISTA COM ÁLVARO GUERRA
 

Álvaro Guerra, um paisano na Revolução - "Não Foi o Povo Quem Fez o 25 de Abril"

 
Fala pausado e, por vezes, perpassa na frase o sopro de uma ironia que emerge como um desafio. É um homem robusto, dotado do prazer de contar histórias, que consegue dissimular as fúrias íntimas com expressões distantes. Álvaro Guerra. 62 anos. Percorreu territórios profissionais marcados pela exigência da paixão: publicidade, jornalismo, literatura, diplomacia. Foi, talvez, o principal paisano que inscreveu o nome entre os nomes dos homens fardados que se conjuraram em Abril. Quando diz a palavra liberdade, a palavra liberdade não é dita: é soletrada com doçura, como se ela evocasse um imemorial festim. A horas tantas do nosso diálogo em público, Álvaro Guerra diz: A experiência de Abril é muito difícil de transmitir, tal qual os incidentes do desenvolvimento da alma humana."

Ele também sabe que as grandes obras, as grandes vidas e as grandes datas aguardam, sempre, a ressurreição de um gesto para readquirirem uma nova grandeza. 25 de Abril de 1974. Uma inscrição delida na parede de memórias longínquas? Cenas e capítulos de um livro inacabado? Hoje, importamo-nos pouco com as marcas externa da História que nos modificou. E, ao dobrarmos os olhos para antigamente, tudo nos parece pertencer à arqueologia das lendas.

Porém, com frequência, só o que é lendário é verdadeiro. Assim como só se aprende a compreender a liberdade quando aprendemos que não há duas maneiras de a amar.
Baptista- Bastos - Onde estavas no 25 de Abril ?
Álvaro Guerra - É melhor começar pela noite do dia 24. Ao fim da tarde do dia 24 estava em casa do Mário Henrique Leiria. Na linha do Estoril.

P- Carcavelos, rigorosamente.
R - Onde me foram buscar uns oficiais da Marinha, ao fim do dia, porque uma das minhas tarefas era assegurar a cobertura informativa da operação militar. Entretanto, fui alertar o Raúl Rego, o Vítor Direito, os responsáveis pela "República", para estarem preparados a fim de, a meio da noite, começarem a trabalhar na cobertura do que iria acontecer. Depois de deixar os oficiais da Marinha, instalei-me na casa do Fernando Matos Silva, que tinha uma equipa de reportagem cinematográfica para filmar as primeiras operações do 25 de Abril, e ali fiquei à espera do sinal que já tinha eu próprio combinado com a Rádio Renascença para transmitir "Grândola" a uma hora determinada. Se a memória me não falha, à meia-noite e vinte cinco. Era o último sinal para a saída das tropas dos quartéis.

P - Por aquilo que me estás a dizer entendo que nem o Raúl Rego, que era o Director do jornal "República", nem o Vítor Direito, que era o Chefe de Redacção, sabiam o que ia a acontecer?
R - Bom, tudo, tudo não saberiam. Estas coisas foram preparadas com alguma antecedência. O problema dos códigos para a saída das tropas dos quartéis foi objecto de vários contactos, que me foram deixados pelo Melo Antunes, antes de ser colocado nos Açores, duas semanas antes. Por outro lado, elementos do Movimento dos Capitães também me contactaram e havia encontros clandestinos no Metro, em livrarias, utilizando técnicas que tínhamos lido em livros sobre a Resistência Francesa, utilizando mensagens dentro de livros, e foi dessa maneira que eu soube que teria de organizar a história do sinal radiofónico para a saída dos quarteis com o "Venham mais cinco", do Zeca Afonso, o que teve que ser alterado à última hora, porque o disco estava proibido na Rádio Renascença. Assim, foi substituído pela ""Grândola"", o que envolveu algum imprevisto. Porque teve que se avisar os militares que a canção era outra.

P - És um dos conjurados civis da revolução. Talvez o primeiro paisano. Quem é que te contactou e porquê?
R - O jornal "República", onde eu então trabalhava, era frequentado por pessoas ligadas ao Movimento Militar, nomeadamente o António Reis, miliciano no quartel do Lumiar. E, através dele, houve reuniões em casa de pessoas amigas, do Fernando Assis Pacheco, por exemplo; enfim, vários encontros, e, sobretudo, a ligação do Movimento dos Capitães ao Partido Socialista. Eu fui o elemento de ligação do Movimento dos Capitães ao Partido Socialista, de que fui um dos fundadores.

P - Que outros civis estavam envolvidos na conspiração?
R - Muito poucos, muito poucos. O que eles sabiam, não sei. Sei que estive sempre a par do que se passava até porque os encontros que tive de organizar, entre o Movimento do Capitães e os dirigentes do Partido Socialista, me permitiram ter conhecimento de muitas coisas. É a primeira vez que digo isso.

P - Alguns dirigentes do Partido Socialistas sabiam, mas o Mário Soares é surpreendido em Bona de madrugada, com uma notícia que lhe dá o Willy Brandt. Está a revolução na rua e ele fica uma bocado perplexo, interroga-se inclusivamente se será de direita...
R - Na clandestinidade, um partido incipiente como era o Partido Socialista, sem a experiência que tinha o Partido Comunista, para fazer comparações concretas, as comunicações não eram um modelo de eficácia, tinham muitas lacunas. O dr. Mário Soares, no entanto, sabia que alguma coisa se estava a preparar. Soube certamente que foi discutida a constituição do governo, dias antes do golpe do 25 de Abril, ao nível do Partido Socialista e do Movimento dos Capitães. Eu até tinha uma pasta nessa primeira Governo...

P - Qual?
R - A da Comunicação Social. Mas recusei, obviamente. Faz parte das coisas importantes do meu currículo, nunca ter sido membro do Governo.

BB- Disseste o golpe, não disseste revolução.
AG - Foi um golpe militar para mudar o regime. Não é uma revolução porque o povo não teve nada a ver com isso. Não foi o povo quem fez o 25 de Abril.

( Quando diz: "Provavelmente, não foi o povo quem mais ganhou com o 25 de Abril", Álvaro Guerra põe não só em causa os desenvolvimentos de uma Revolução que se queria libertadora e transformadora, como, também, o sistema político e económico em que vivemos. "No que nos rodeia, está cada vez mais manifesto uma confortável confortável apatia, que pode causar danos à democracia. Daí que exista um cansaço e um desgaste do sistema democrático. Parece que ninguém se rala ou se quer preocupar com os seus destinos pessoais e colectivos". Move as mãos com inesperada ligeireza, como se estivesse a afastar maus presságios, ou a expungir da conversa desconhecidos demónios. Ele combina, no discurso que lhe sai fluido, a esperança de que nem tudo está perdido num lodaçal de inércia, de triste abdicação e de indiferença pelo futuro. Mas não esconde o cepticismo lúcido que fez dele um homem atento, irónico e zombeteiro, na tradição dos grandes moralistas. O seu destino era escrever. A inexistência de liberdade empurrou-o para a política. "A política não devia ser a arte do possível, sim a ciência de fazer com que os homens descobrissem, por si próprios, a possibilidade de ser felizes." Como se tivesse dito isto para um auditório extático.)

P - Mas o povo vai para a rua apoiar o 25 de Abril.
R - Com certeza, porque tinha dentro de si, a ânsia da liberdade. A motivação principal de reunir tanta gente e tantas boas vontades foi a conquista da liberdade. Isto está bastante esquecido.

P - Se as coisas falhassem, tinhas-te protegido de forma a escapar à prisão e à tortura?
R - Não.

P - Se o 25 de Abril falhasse como era?
R - Teria sofrido, provavelmente, o que muitos combatentes e resistentes antifascistas sofreram, durante quarenta e tantos anos.

P - Continuas a dizer fascismo e antifascismo.
R - Claro. Não adoptei aquela situação confortável de algumas pessoas que dizem já não fazer sentido falar em Esquerda e em Direita. Eu não estou nessa.

P - A partir de que altura, rigorosamente, é que tiveste conhecimento que o 25 de Abril iria arrancar?
R - Foi no dia 23, quando recebi as instruções.

P - De quem é que recebeste as instruções?
R - Do Comandante Contreiras, da Marinha.

P - Não fora o 25 de Abril e não terias sido embaixador. Qual seria o teu destino?
R - Seria certamente aquilo que também sou hoje que é escritor, sobretudo, antes de diplomata.

P - Que influência é que o 25 de Abril teve na tua literatura e na literatura dos outros?
R - O 25 de Abril se calhar não teve. Vivemos o mito de que os escritores portugueses tinham as gavetas cheias de obras primas, e que não podiam ser publicadas, porque havia a censura e porque o regime não permitia. Uma coisa que o 25 de Abril produziu foi as gavetas vazias dos escritores. Eu não fiquei particularmente impressionado com as gavetas vazias dos escritores, depois do 25 de Abril, porque a minha própria também estava vazia.
 
P - O jornalismo português melhorou ou piorou depois do 25 de Abril?
R - É muito difícil fazer comparações, porque as condições são muito diferentes. Não sei como é que nós seriamos. No nosso tempo, mais pujante de jornalistas, como é que nós seriamos se tivéssemos escrito em liberdade, se tivéssemos escrito sem censura? É difícil fazer esse julgamento. Mas demos prova de muita coragem e de muita lucidez.

P - Mas é descoroçoante, para ti, o panorama do jornalismo português?
R - Não só português. É descoroçoante o panorama do jornalismo em geral. Quando vês uma concentração económica nos meios de comunicação social, os interesses em jogo, e o que isso condiciona o trabalho de jornalistas, tens de te preocupar. Também tínhamos como sagrada a consciência deontológica. Hoje em dia não se manifesta como devia.

( Vai a conversa à rédea solta.
Vai a conversa com liberdade. Um discretar de sonhos, direi agora. Um falar de ofícios. "Os jornalistas portugueses actuais têm um grande "parti-pris" contra mim. A mim, que fui deles e continua a ser deles! É por eu ter entrado para a carreira diplomática. Uma questão mais de ordem corporativa do que de ordem vital. O mesmo falso antagonismo que opõe escritores e jornalistas."
A carreira diplomática permitiu-lhe tomar o peso das coisas como o jornalismo o ensinou a sopesar as palavras. Álvaro Guerra é embaixador em Estrasburgo. Até Março. Depois, chefiará a representação diplomática de Portugal em Estocolmo. Entretanto, trabalho num novo romance. E, nos intervalos, vai a Espanha assistir a corridas de toiros, outra disponibilidade das suas paixões).

P - Qual foi o destino desta revolução?
R - Começou e acabou. Como todas. A seguir ao 25 de Abril houve um arremedo de revolução. Uma dança exótica à volta de uma coisa chamada poder. Não sei se chegámos a um período revolucionário, ou se não se tratou dessa dança macabra à volta dos restos do poder caído na rua. Essa situação tem laivos revolucionários, isso não o nego. Agora, foi sobretudo a conquista da liberdade. Eu continuo a dizer que foi a motivação principal do 25 de Abril.

P - O 25 de Novembro, o que é? É um travão às quatro rodas no processo revolucionário ou o tal regresso à pureza inicial do MFA?
R - Fui um militante do 25 de Novembro. E na minha qualidade de militante só posso ter uma resposta, aquela em que acreditei na altura. Um regressso ao genuíno programa do MFA.

P - E agora?
R - Agora, meu caro, o tempo passou, a história fez-se, o tempo não parou. Entrámos naquilo que se convencionou nomear como democracia formal. Nós temos uma democracia integrada na União Europeia, igual, mais jovem do que a maioria dos seus parceiros, na UE.

P - Estás contente com esta democracia? Achas que é uma boa democracia, uma democracia total?
R - Faço parte daquele grupo de pessoas que nunca morrem contentes.

P - Pensas que há uma tendência, em relação ao 25 de Abril, para a amnésia histórica, para o esquecimento?
R - Oscilo entre dois sentimentos. O primeiro, mais instintivo é dizer que tem sido insuficiente a pedagogia do 25 de Abril. Mas o outro, é o seguinte, o tempo passa, as gerações sucedem-se, quer dizer: a experiência de Abril é tão difícil de transmitir... Penso que as gerações, de uma maneira geral, quase sempre repetem muitos erros, porque não têm em si a capacidade de absorver a experiência das gerações anteriores, ou pelo menos a sua totalidade. E será sempre muito difícil transmitir isso. Nós tentámos, pelos nossos meios, que as experiências não fiquem esquecidas. Mas o certo é que os jovens de hoje não viveram sob uma ditadura. E a vivência é insubstituível; por muito que nós queiramos fazer pedagogia, regar e alimentar a memória, há essa coisa que diferencia: a vivência.

P - A quem é que pode interessar o esquecimento da luta pela liberdade?
R - Àqueles que não querem a liberdade.

P - Achas, como o Marat, que na Revolução Francesa proclamou "não pode haver liberdade para os inimigos da liberdade"?. Estás de acordo com o conceito?
R - Estou de acordo com isso. E é por isso que fenómenos que estão a acontecer, neste momento, como o caso Pinochet, são fenómenos com uma extrema importância. Porque a partir de agora, dá a impressão de que os ditadores não se podem passear à vontade no mundo. Isto é uma conquista importante. Nem tudo é negativo. Há progressos importantes que se fazem. Há um tribunal penal internacional que foi criado em Roma, este Verão, e que recebeu o apoio e a aprovação de sessenta e tantos países e cujo número vai aumentando. Infelizmente os Estados Unidos não se encontram entre esses países.

P - Havia comunistas envolvidos no 25 de Abril?
R - Havia. Nomeadamente entre as Forças Armadas. É difícil dizer nomes. São suficientemente conhecidos. Que se revelaram, depois, com a continuação da curta história do PREC. Mas suponho que é importante falar de um outro aspecto que é a linha do partido comunista durante a guerra colonial, ou, pelo menos, durante a segunda parte da guerra colonial. O Partido Comunista favoreceu a participação dos seus militantes na guerra colonial. Não encorajou as desertações de jovens, e esse trabalho contribuiu para aquilo que se verificou no 25 de Abril. Mas penso que, de qualquer modo, isso se teria verificado; porque, a partir do momento em que o regime ditatorial teve de "democratizar" as Forças Armadas, pela quantidade de oficiais de que precisava numa guerra como aquela, aí abriram a porta aos riscos para a sua sobrevivência. Portanto, esse fenómeno social, aliado ao fenómeno político, foi importante na mentalidade dos oficiais de carreira e de, digamos, da sua consciencialização que os levou ao 25 de Abril.

P - De que recordas com mais saudades dessa época?
R - O desafio diário da luta pela liberdade.

P - Mas tens saudades do PREC?
R - Foi um privilégio viver essa época.

P - O caso "República" deu origem a numerosas rupturas nas mais sólidas amizades. Houve, na altura, muita gente que te virou as costas. Viraste as costas a alguém?
R - Não, mas houve muita gente que me virou as costas. E isso terei de dizê-lo agora. Todos os militantes comunistas, curiosamente. Acho uma coisa extremamente contraditória, quando se faz a análise do caso "República" e se diz que não foi um dos aspectos do assalto ao poder, que não foi uma operação do Partido Comunista, eu até acredito... pelo menos na sua fase de arranque não terá sido, mas que foi aproveitada, lá isso foi. Os meus amigos comunistas passaram a virar-me as costas na rua. Lamento imenso ter recordações amargas dessa época. Um grande poeta português, com uma obra de extrema importância, e de quem era amigo íntimo, chamado José Carlos Ary dos Santos, passou a virar-me as costas na rua, a mim e à minha mulher, cada vez que nos encontrava. Isto é a última recordação que tenho de uma pessoa que admirava.

P- Ainda hoje essas mágoas se mantêm?
R - Não. De todo, não. Penso que todas as sequelas foram esbatidas e apagadas pelo tempo.

P - Ao fim destes 25 anos, quem foram os grandes beneficiários do 25 de Abril? O poder económico tem mais poder?
R - Isso não é fruto do 25 de Abril. Isso é fruto da evolução do mundo. É fruto da chamada globalização e do império do dinheiro. Portugal, na sua modesta dimensão, não poderia, de forma nenhuma, escapar. O povo vive bastante melhor do que vivia em Abril de 74. Isso é um facto objectivo. Agora se me disseres quem ganhou mais ou menos, provavelmente não foi o povo. Isso é um fenómeno universal.

P - A revolução ajuda a literatura?
R - A literatura só ajuda quem tem talento. Eu penso que todas as épocas são importantes e em todas elas existem motivos altamente motivadores da boa escrita.

P - Ainda há segredos sobre o 25 de Abril?
R - É capaz de haver, sim.

P- Tu e o José Cutileiro são os dois últimos embaixadores políticos?
R-. Sim.

P - O que é um embaixador politico?
R - Já não há. Formalmente, deixou de o ser em 1985, quando entrámos para a carreira. E, hoje em dia, essa designação não faz sentido. Somos embaixadores iguais aos outros. Aliás, somos os dois mais antigos do ministério, ele é um numero um, com três dias de avanço sobre mim, que sou o numero dois.

P - Ainda és militante do PS?
R - Saí do PS em 1978. Num Congresso qualquer, meteram qualquer coisa numa gaveta qualquer...

P - Meteram o socialismo na gaveta...
R -Fiquei um bocado chateado.

R - Achas que o socialismo não é de se meter na gaveta?
R - Não, acho que não. E daí eu me classificar, neste momento, como uma espécie rara, em extinção, que é a dos socialistas solitários.

P - Guterres é um socialista específico?
R - Específico, certamente.
 
P - Deste-te sempre bem com os governos do dr. Cavaco Silva?
R - Nunca tive problemas formais. Sempre me dei melhor com uns do que com outros.

P - Com o dr. Durão Barroso do que com o dr. Deus Pinheiro?
R - De longe...

P - Porquê?
R - Pela qualidade politica dos dois indivíduos que é diferente.
 
(A leve sombra de um desencanto, agora. Álvaro Guerra recusa-se a viver numa superfície neutra, escorada num suporte inerte. As paixões da política exercem um poder sobre os homens que, amiúde, arruínam as imposições da amizade e transformam companheiros antigos em inimigos inexoráveis. Um golpe de estado, uma revolução, são sempre impiedosas revelações da alma humana. Exactamente porque todas as revoluções, todos os golpes de estado nascem de profundos ressentimentos. E o ressentimento pode dissimular-se numa falaciosa luta de classes. A leve sombra de um desencanto, agora.)