Emídio Rangel

Entrevista conduzida por Batista-Bastos -  "Público" (1994)

ENTREVISTA COM EMÍDIO RANGEL

Emídio Rangel ou a acidentada jornada para o êxito
"Continuo a Ser Um Homem de Esquerda"

A paixão sublinha a sua vida. Paixão no trabalho, paixão no amar de amor, paixão na forma como gesticula, paixão no modo como fala, paixão como se relaciona com os outros. Não há meio-termo para este homem, que abomina vencer aos pontos: só por nocaute. Dizem dele o pior possível. Dizem dele o melhor possível. Inimigo temido e temível. Amigo devotado até à entrega. Nunca deixou cair ninguém dos seus afectos. Nunca deixou sem resposta ninguém dos seus desafectos. Nunca traiu um companheiro. Nunca perdoou a ofensa, a indignidade, a infâmia, a falta de carácter.

Emídio Rangel. 52 anos. Angolano, olho azul, meã estatura, robusto, entroncado. A sua vida é uma corrida infatigável presenteada por êxitos, mas com alguns trambolhões nos intervalos. Reergue-se, e lança-se à luta sem delongas, sem rebuço e sem cansaço. Não espera a glorificação de um busto, mas não é contrário ao aplauso. Acredita que a felicidade é possível, mas aprendeu, com Descartes, que, acima de tudo, devemos duvidar de tudo.

P. - Onde estava no 25 de Abril?
R. - Em Lisboa. Na noite de 24 para 25, jantei perto do Parque Eduardo VII, e fui ver um filme ao Cinema Tivoli, cujo título era "A Golpada".

P. - E que representou para si o 25 de Abril?
R. - A chegada da liberdade. Sempre o encarei nessa perspectiva. Quando fui jornalista, em Angola, tive problemas complicados com a censura. Também tive problemas com a PIDE, fui chamado à PIDE algumas vezes. Nunca fui preso, mas fui advertido. Tinha uma ânsia enorme por um sistema de governo em que a liberdade marcasse todos os seus aspectos.

P. - Foi militante do MPLA?
R. - Não. Nunca fui militante, embora tivesse simpatias pelo MPLA. Na sua origem, o MPLA era um movimento muito aberto, envolvia gente da mais variada formação, sob o ponto de vista político, embora hoje seja outra coisa. O MPLA tinha uma maior sensibilidade para as questões que me preocupavam.

P. - Mas o MPLA não previa um governo marxista-leninista?
R. - Não. O MPLA não tinha essa definição. No seu interior, havia sociais-democratas, comunistas, gente com formações diversas, à luz dos padrões tradicionais. O que unia os angolanos em redor do MPLA era o sentido de independência. E, de facto, o MPLA despertava uma grande simpatia junto das camadas universitárias; os seus dirigentes tinham uma ligação muito próxima com Portugal, porque tinham estudado aqui. Posso dizer que, de início, os portugueses ainda encaravam bem o MPLA, mas depois, fizeram uma aposta, da qual se arrependeram, no Savimbi. Isso nota-se com maior nitidez nos portugueses de gerações mais próximas.

P. - A tragédia de Angola dura já há perto de 40 anos. O 25 de Abril é disso responsável?
R. - Seria uma injustiça dizer que o 25 de Abril tem culpa disso. Diria que a confusão que se estabeleceu, no seio das forças armadas portuguesas, depois do 25 de Abril, tem responsabilidades. As forças armadas não foram capazes, não tiveram organização suficiente, para conter as coisas nos devidos termos. Acho que a descolonização podia ter sido feita de forma a que a potência colonial não deixasse instalar-se o caos, a desgraça, a guerra, a perda de valores e bens dos portugueses que lá trabalharam. Se as forças armadas estivessem preparadas, evitavam o descontrolo que se gerou em Angola.
Além disso, deram uma péssima imagem de desorganização e incapacidade. O 25 de Abril tem méritos incontestáveis, mas não podemos perder a lucidez e deixar de reconhecer que o que sucedeu em África, particularmente em Angola, é devido à forma como se descolonizou. Portugal quis largar rapidamente o Ultramar, mas também foi pressionado para isso. No caso da Guiné, acho que as forças armadas não tinham o controlo da situação; mas, em Angola, a situação estava perfeitamente controlada.

P. - Angolano, com pouco mais de 20 anos era já um respeitado produtor radiofónico, com assalariados a seu cargo. Tinha um projecto profissional de vida?
R. - Sim. Com 20 anos cheguei a dirigir a maior estação comercial angolana, a Rádio Comercial de Angola. Dispunha de várias dezenas de profissionais, com uma estrutura profissionalizada, a mais moderna do território, e tinha cobertura por toda a Angola.

P. - Sai de Angola em que ano?
R. - Em 1975, mas estava em Portugal em 1974. Orientava um programa diário de informação, de duas horas, e dirigia uma equipa de profissionais. Alguns deles ainda trabalham aí, e têm êxito, como o Fernando Alves, entre outros. A rádio, em Angola, tinha evoluído muito, graças à competição entre as 16 estações de rádio existentes, na época. Esse programa que dirigia levava a que os repórteres estivessem sempre em movimento, praticamente por todo o mundo.

(Mexe-se, remexe-se, ergue-se da cadeira, volta a sentar-se. Atende o telefone. Não perde tempo com cerimónias. Não perde o fio à meada. O gabinete é amplo, claro, inundado de sol. Nas paredes, desenhos de Cruzeiro Seixas, quadros de Cesariny. Ergue-se, senta-se. Começa a falar de pintura com rigor, com sabedoria, e, claro!, com paixão. Depois, os autores e os livros que ama. Depois, o revolutear do tempo, a joeira das horas. Tem saudades dos poentes de Luanda. Tem saudades de pisar o chão de pó vermelho, da restinga, dos embondeiros. Tem saudades dos odores antigos, dos perfumes estonteantes da terra molhada, do chão sagrado da sua infância. Tem saudades das vozes, dos rostos, dos gestos. Tem saudades dos vivos e dos mortos. Há uma pausa no diálogo. Entrega-se a esse silêncio povoado, só permitido pela memória efusiva das coisas. Há uma pausa no diálogo. Também eu recordo Luanda, a bela.)

P. - Então, você, no 25 de Abril, está aqui por um acaso.
R. - Sim, estou aqui por puro acaso. Tinha acabado a tropa em Dezembro de 1973, e resolvi ir de férias em Abril de 1974. Logo, no 25 de Abril estava cá.

P. - E que fez, durante os dias tumultuosos da revolução?
R. - É muito engraçado, porque a noite de 24 para 25, foi, para mim, carregada de coincidências. Fui ver esse filme, que se chamava "A Golpada"; a seguir, fui ter com o Alfredo Alvela, ao Rádio Clube Português. Fui lá buscá-lo, por volta da meia-noite, fomos tomar um copo, e voltei para o meu hotel, na Avenida Sidónio Pais. Às cinco da manhã, recebo um telefonema de uma amiga, que me diz: "Está a acontecer uma revolução." Nunca ando sem rádio, e nessa altura muito menos, liguei-o, percebi o que se estava a passar, e saí para a rua.
Fui o primeiro profissional a mandar, para Angola, a notícia da revolução. A notícia esteve retida durante algum tempo, comecei a enviar textos para Angola sobre o que se passava, e dei instruções à estação que dirigia para porem as notícias no ar, contrariando as ordens do governador geral. Nós desobedecemos à ordem, e emitimos as notícias.

P. - Quando é que volta para Angola?
R. - Ainda assisti ao primeiro 1 de Maio, e regresso depois dessa data.

P. - Sai de Angola em 1975. Porquê?
R. - A minha vida corria perigo. Na zona onde vivia, travava-se uma batalha feroz entre a UNITA e o MPLA, e fui avisado, por um amigo, de que a UNITA iria desencadear uma acção dentro da cidade, e que um dos objectivos da UNITA era eliminar-me. Eu tinha uma coluna diária de opinião e houve muitas sabotagens ao programa, porque as minhas crónicas causavam uma enorme perturbação na UNITA, embora nunca tivesse sido, repito, militante do MPLA. Fui salvo "in extremis" por esse meu amigo.

P. - Chega a Portugal e vai ter com quem?
R. - A minha história demoraria muito tempo a contar, mas, telegraficamente, é assim: como a minha vida estava em perigo, pus a minha mulher e a minha filha a salvo, em Luanda. Depois, perderam-se todas as comunicações em Luanda, em consequência dos combates. Os meus irmãos e os meus pais estavam em Luanda, e, quando vimos que estávamos em perigo, decidimos abandonar Angola. Fugi de Angola no meio de fogo e escapando a várias ciladas.
Fui preso pela polícia política sul-africana, porque passei por Vindoek, hoje capital da Namíbia, para apanhar o avião para Portugal. A polícia política sul-africana considera-me "persona non grata", pega em mim e na minha família, metem-nos num avião, e chegamos a Portugal no dia 11 de Setembro. Cheguei, exactamente, no mesmo dia em que a minha mulher e a minha filha chegaram, também, a Lisboa, sem nos termos comunicado durante todo esse tempo.
A minha fuga de Angola é precipitada, porque é feita em circunstâncias extremamente complicadas e difíceis. Quando chego a Portugal, tento encontrar uma solução para a minha vida.

P. - E que fez?
R. - Fui à procura de trabalho nas rádios, em tudo. Impus-me a mim mesmo um prazo, porque não queria ser alojado pelo IARNE, não quis esse tipo de ajudas. Não fui para hotéis. Fiquei em casa de amigos, os mesmos que me avisaram do 25 de Abril. Três dias depois da minha chegada, estava a vender enciclopédias da Collier's. Nunca parei de batalhar. Há um concurso público para a RDP, concorro e entro.

P. - Entra na RDP, apoia Maria de Lurdes Pintasilgo, é posto na prateleira, licencia-se em História, é o grande animador da TSF. Que faz correr Emídio Rangel?
R. - Desde logo, o sentido e o gosto pela minha profissão, a paixão pelo jornalismo, o gosto pela comunicação. Por outro lado, a ideia e preocupação de justiça social, levam-me a apoiar, posteriormente, a Maria de Lurdes Pintasilgo.

P. - Depois, é a SIC. Vejamos: a programação da SIC não colide com as suas velhas convicções?
R. - As minhas convicções pessoais e os princípios que norteiam a minha vida mantêm-se inalteráveis. Continuo a ser um homem de esquerda. Continuo a ser um homem com preocupações de justiça social, com preocupações em relação às questões da liberdade. São valores absolutamente inalteráveis, de que nunca prescindirei. A programação da SIC, ao contrário do que muitos poderão dizer, é de universalidade de conceitos, de formatos, de públicos. A programação da SIC não se pode catalogar numa lógica de Esquerda ou de Direita.

P. - Mesmo segundo os seus princípios?
R. - Nós somos vítimas de muitas campanhas de difamação, e eu também, mas enfim...

P. - A SIC é o seu ideal de televisão?
R. - Não posso estabelecer as coisas nesses termos, porque, se criasse uma estação de televisão para o meu gosto pessoal e a minha sensibilidade, evidentemente que a programação seria semelhante, em parte, à da SIC, e outra parte não seria.

P. - Foi-lhe atribuída a seguinte frase: "A SIC é o 25 de Abril do pequeno ecrã." Acredita nisso?
R. - Sim. A SIC representa uma ruptura com um sistema de televisão completamente ultrapassado. A SIC é uma revolução em termos estéticos. A SIC introduz inovações extraordinárias na televisão em Portugal. A SIC é um caso de estudo. Todos os meses recebo estudiosos, universitários, pessoas que estudam o meio televisivo, vindas de toda a Europa e da América, que querem conhecer a realidade da SIC, e a forma como a SIC se agregou aos seus públicos. Trabalho com o sentido de servir esses públicos.

(Meticuloso nos hábitos, metódico nas decisões, minucioso na obtenção de resultados. "A SIC é um produto de Abril, uma cria da liberdade", diz. Gosta de organizar, de mandar, de fazer. Mas quem o conhece bem afirma que nunca o aumento de autoridade lhe acicatou a fome de poder. "Estou sempre disposto a recomeçar do zero." Em função do que pensa, sublinha as significações da vida para lhes adicionar o seu valor estético e ético. Ocasionalmente, consegue refrear a paixão com uma inexorável disciplina interior. Mas logo explode, num ritmo imparável que contagia quem trabalha sob a sua direcção. Um amigo de infância, advogado, ex-jornalista, serve-se de seis adjectivos para o qualificar: magnético, corajoso, afável, astuto, talentoso, determinado. E acrescenta: não se metam com ele!)

P. - Tem-se envolvido em polémicas terríveis, servindo-se de uma linguagem por muitos considerada desabrida e por outros extremamente ofensiva. A sua divisa é: por minha dama e contra el-rei?
R. - Não, a minha divisa é: contra a injustiça, pela frontalidade e clareza, pela defesa da honra e da dignidade. Quando estes valores são postos em causa por alguém, coisa que não permito seja em que circunstâncias for, têm-me atrás.

P. - É muito sensível às críticas?
R. - Quando leio uma crítica, vejo logo se é feita com a preocupação de emitir um juízo próprio, ou de natureza técnica, com todo o subjectivismo que possa conter, isto é, se é feito de boa ou má fé. Quando é feita de boa fé, tenho respeito por esse trabalho, pouco me importando que diga bem ou mal da programação da SIC. Posso até levá-la em linha de conta. No entanto, a maior parte da crítica de televisão é feita por gente impreparada, ou por gente com preocupação de magoar, de susceptibilizar, de ferir as pessoas.

P. - Teme algum crítico? E despreza alguns deles?
R. - Não temo nenhum crítico. Já os desafiei a todos para um debate, e nenhum deles respondeu ao apelo. Também não desprezo nenhum crítico, não ponho as coisas nesses termos. Mas não posso deixar de dizer que o exercício que o Mário Castrim faz da crítica televisiva é, no meu ponto de vista, altamente pernicioso.
Não significa que não tenha lido textos do Castrim que me pareçam equilibrados, ajustados, e escritos de boa fé. Não quer dizer que não lhe reconheça o uso da crítica televisiva para fazer crítica de natureza política, que é o que ele faz, na minha opinião. É evidente que estou em desacordo, e causam-me repúdio as aleivosias do Castrim, e a forma como, por vezes, despreza os profissionais de televisão. E essas pessoas merecem respeito e consideração?

P. - Voltemos a Abril: na sua opinião, o que resta do sonho?
R. - Sou um optimista, acho que ainda falta concretizar muitas coisas em Portugal. Ainda há muita pobreza, ainda há muita gente que não tem acesso à cultura, à educação, à saúde. Há objectivos do 25 de Abril que não foram cumpridos. Claro, o Portugal de hoje não tem nada a ver com o Portugal anterior ao 25 de Abril. Mas o sonho de haver maior justiça social, neste país, ainda não está cumprido.

P. - O 25 de Abril, para além da liberdade reconquistada, melhorou o jornalismo português?
R. - O 25 de Abril foi um caixa de Pandora que explode, e de onde saem coisas boas e coisas más. O aparecimento de muitos jornais, revistas, rádios, canais de televisão, criou fenómenos localizados de mau jornalismo. É indiscutível que a comunicação social ajudou a formar uma opinião pública, que começa a ter algum significado neste país.

P. - Se tivesse, mesmo como independente, de se incorporar numa acção partidária, qual o partido que escolheria, se assim me posso exprimir?
R. - Normalmente, voto no Partido Socialista. O meu voto é dado em função de como sinto as coisas, e faço disso um julgamento.

P. - A RTP cumpre a sua função?
R. - Não. Nem de perto, nem de longe. A RTP não tem uma programação de serviço público, nem cumpre objectivos públicos. A SIC, sendo uma estação privada, é o principal suporte das manifestações culturais em Portugal. Por alguma coisa, é a SIC que apoia os livros, é a SIC que apoia o teatro, o cinema, as exposições, a grande música.
A RTP despreza a ideia de públicos, de audiências. Quando a RTP está quase a ser a terceira estação do país, porque há muitas horas do dia em que a RTP é o terceiro canal mais visto, a TVI é o segundo - isto é um facto provado - os cidadãos interrogam-se sobre o destino dos seus dinheiros, para uma instituição que vai estiolando.

P. - Emídio Rangel: e depois da SIC?
R. - Não sei. Trabalho muito, em termos pessoais, com o sentido do presente. Penso no futuro da SIC, penso pouco no meu futuro. A SIC é um projecto estimulante, em termos intelectuais. Deve ser o núcleo de um projecto mais amplo, no domínio do audiovisual, que seja caracteristicamente português. Sou favorável à integração portuguesa na Europa, mas também defendo que devemos marcar com mais força a nossa individualidade, os nossos valores.
Parece um paradoxo, mas não é: quanto mais embrenhados estivermos na construção da Europa, maior deve ser a afirmação da nossa identidade individual. A SIC pode desempenhar um grande papel, se o seu saber e experiências forem aproveitados, e não hostilizados, como tem acontecido.

P. - Tem 52 anos. Se não fosse o 25 de Abril, seria o homem que é hoje?
R. - Não sei. Em Angola era um jornalista respeitado e tinha 20 anos. Comecei a trabalhar e a estudar muito cedo. Acumulei a universidade com o jornalismo. Seis, sete anos após o início da minha actividade em Angola, já era respeitado.

P. - Você é um produto da liberdade. Sem liberdade, não havia SIC?
R. - É evidente. A minha vida estaria em risco, se não vivesse num regime democrático. Em Angola a censura não era tão férrea como em Portugal. Havia uma maior manobra, mas passei por muitas agruras. Era asfixiante continuar a fazer jornalismo naquelas condições. Fazer jornalismo numa ditadura é extremamente complicado e difícil de levar por diante.

(Goste-se ou não dele, Emídio Rangel deixa sempre rasto por onde passa. Quando foi preciso, criou a causa e demonstrou o efeito. E nunca aceitou ser escravo das suas criações. É o dinheiro que o move? Não será. Ganha menos do que a sua homóloga na televisão estatal. E já lhe ofereceram quantias vultuosíssimas, para desempenhar outros cargos ou funções idênticas. Mas então? "O que desejo é ser feliz. E devo dizer que poucos homens chegaram tão perto." Diz e sorri. Claro que tem verdetes insanáveis e inamovíveis desdéns. Por exemplo: detesta os revolucionários de festival e não suporta a estupidez indomável. E também despreza quem sofre da doença infantil da inveja. Goste-se ou não dele, Emídio Rangel tem marcado a nossa época.)