Fernando Rosas

Entrevista conduzida por Teresa de Sousa e Joaquim Trigo Negreiros -  "Público" (1994)

ENTREVISTA COM FERNANDO ROSAS

Fernando Rosas, historiador e professor de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, passou os últimos vinte anos a estudar o regime fascista até à sua queda em 1974. Consultou os arquivos da PIDE enquanto tal foi possível. Tem a própria experiência vivida de resistente ao regime. É hoje uma das vozes mais autorizadas sobre o assunto. Com ele, fizemos uma longa viagem ao regime e às suas particularidades, incluindo a verdadeira história da PIDE/DGS.

Texto: Teresa de Sousa e Joaquim Trigo Negreiros

PÚBLICO - Até que ponto se pode afirmar que a PIDE era um Estado dentro do Estado?
FERNANDO ROSAS - Não me parece que possa ser considerada assim. Dependia directamente da chefia de Salazar e dependia indirectamente da política de Salazar. Desde 1933 até ao pós-guerra, dependia de Salazar e só dele.  Posteriormente, Salazar despachava directamente com este ou aquele inspector da sua confiança - o caso do Barbieri Cardoso, por exemplo -, mas a PIDE  era tutelada pelo Ministério do Interior e essa tutela passou a ser mais eficaz e real quando Marcelo transforma a PIDE numa direcção-geral, a DGS.
Salazar fazia o controlo em termos efectivos. Era informado semanalmente dos principais processos, dava instruções directas sobre cada um deles e orientações globais.  

P. - Até que ponto a PIDE era fundamental na manutenção do regime?
R. - Salazar sabe que a PIDE é fundamental para a manutenção do regime - para o controlo da sociedade, das empresas, do funcionalismo público, das escolas, dos sindicatos. A PIDE recolhia a sensibilidade do país e da opinião pública, era um espécie de Gallup do regime. Mas representava também a "ultima ratio" do regime.
O controlo da sociedade começa na escola, com o pároco, com o patrão, a repressão está socializada. Se você quer ter um emprego, é melhor que seja baptizado, que participe nas manifestações de apoio ao presidente do Conselho, assine os abaixo-assinados, tenha, em resumo, um determinado tipo de comportamento. Num sistema destes, só as pessoas que mesmo assim se dispunham a transgredir exigiam a intervenção directa da PIDE.  

Desmobilização social permanente

O fascismo português, ao contrário dos outros, assentava na permanente desmobilização social e política. E só aquelas pessoas - uma minoria, como sabemos - que tinham um nível de consciência muito elevado ou uma determinação muito grande se atreviam a infringir este estado de coisas. Aí sim, a PIDE actuava para castigar quem não se aplacasse. Salazar tem uma frase espantosa que resume muito bem esta ideia: "O meu ideal é fazer viver as pessoas habitualmente." O objectivo do regime era não tanto suscitar a adesão, mas a aceitação, a ideia de que lá estavam eles para pensar pelas pessoas, a ideia de que "a minha política é o trabalho".

P. - Há, por isso mesmo, diferenças entre os vários regimes totalitários da altura.
R. - A sociedade portuguesa é que é diferente. A natureza da PIDE é idêntica à das outras polícias políticas mas actua num caldo social e político completamente diferente. A modalidade nacional do fascismo assenta num Estado que joga na desmobilização e na aceitação e não na mobilização e na adesão.

P. - Que mudanças há com o marcelismo?
R. - Há mudanças sobretudo quando o regime dá um sinal público de que a polícia deve conformar-se à legalidade formalmente estabelecida. O presidente do Conselho deixa de despachar directamente com a PIDE. Os Tribunais Plenários são aconselhados a dar mais valor (até aí esse valor não existia pura e simplesmente) à prova em julgamento e, sobretudo, permite-se aos deputados liberais que vão à cadeia ouvir as queixas de alguns presos que chegam por via das famílias. Há um ensaio de fiscalização.
Lembro-me que Sá Carneiro foi a Caxias falar com um jovem de 19 ou 20 anos que tinha sido completamente brutalizado e que se tinha queixado. Posteriormente, levantou o problema na Assembleia Nacional. Mas isto foi ainda na Primavera marcelista; depois, tudo voltaria ao mesmo.

P. - Como é que a PIDE reagiu?
R. - A fiscalização da PIDE era a morte da PIDE - duas visitas por semana significavam a morte da PIDE, estragavam-lhes completamente os métodos. Isso causou uma grande perturbação, precisamente durante a Primavera marcelista. Em 1972, voltou tudo a perder a cabeça outra vez e foi a grande repressão, sobretudo contra a extrema-esquerda.

P. - A PIDE estava sobretudo preparada para lidar com o PCP e com o "reviralho". Como reagiu quando teve de lidar com outras forças políticas?
R. - Estava preparada para o PCP desde os anos 40, depois da reorganização do Partido Comunista levada a cabo por Cunhal em 1940-41. Até lá, lidavam sobretudo com o anarco-sindicalismo e com as revoltas e as golpadas do chamado "reviralho" que se sucediam a ritmo impressionante de 1926 a 1931 e que se repetiram mais tarde.
Depois de 40, viram-se confrontados pela primeira vez com uma organização de modelo leninista, profissional, organizada, disciplinada, com regras duras, pseudónimos e uma estrutura criada para resistir à repressão com o mínimo de danos. A PIDE fica a navegar e só depois das primeiras prisões, em 1945, consegue começar a perceber. De 1945 aos anos 60, a PIDE conhece muito bem o PCP e o PCP a PIDE.
De repente, no final dos anos 60 rebenta-lhes nas mãos algo de totalmente novo, que é a extrema-esquerda, incluindo os católicos progressistas, e as primeiras acções armadas urbanas. Consegue, por exemplo, acabar rapidamente com a ARA, através das suas infiltrações no aparelho do PC. Não consegue fazer o mesmo às Brigadas Revolucionárias - nunca as consegue sequer beliscar.

P. - E os católicos e a Igreja?
R. - Repare que os católicos actuavam em apoio da extrema-esquerda e mesmo dos grupos armados. Claro que não tinham uma organização permanente, eram grupos de acção semiclandestinos, publicavam boletins anticolonial, tinham grupos de acção para fazer tarefas determinadas, questões sociais, etc., e depois distribuíam-se em apoio a várias organizações.
Mas atenção, foram muito mal tratados pela PIDE, eram considerados como ovelhas tresmalhadas... como traidores. Nuno Teotónio Pereira, por exemplo, levou pancada por todo o lado, embora fosse um intelectual, ainda por cima ligado a famílias do regime...

A Gestapo e a CIA

P. - Os métodos de tortura também variam de acordo com variadíssimos critérios e épocas?
R. - Antes de 1940 não era certamente a tortura do sono - era a força bruta, pancadaria, choques eléctricos. Vão aprender com a Gestapo, com a polícia de Mussolini e com os americanos, mais tarde. A grande escola, depois da Guerra, passa a ser a CIA. Quando chega o 25 de Abril, o Barbieri Cardoso, velho salazarista e ideólogo do regime, é o verdadeiro homem forte. E havia também os infiltrados de Spínola e Costa Gomes. Toda a gente sabe que a polícia política não estava nos planos de operações do MFA para o 25 de Abril e que a PIDE só é extinta pela própria dinâmica gerada.

P. - Voltando aos métodos da PIDE: havia tratamento diferente para várias categorias.
R. - Evidentemente, um tipo operário ou camponês que não tinha qualquer possibilidade de eco social era tratado da pior maneira, nem sequer com procedimentos formais de conhecimento dos seus direitos. Valia tudo. As famílias não tinham qualquer possibilidade de os ver. Só quando começa a haver comissões das famílias dos presos políticos é que começam a ter advogado. Mas estamos a falar dos anos 60 em diante.

P. - E a distinção entre operários e camponeses e os intelectuais do PC?
R. - Era diferente. Eles até tinham polícias especiais para os intelectuais, um dos quais era o célebre chefe de brigada Abílio Pires. Era nos intelectuais que a tortura do sono era eficaz. Esta forma de tortura é voltada para o amesquinhamento da vontade e da dignidade das pessoas. Ao fim de uma semana, você cheira mal, tem os pés inchados, é obrigado a descalçar-se, tem a barba por fazer. Os PIDES exploram isso: "Você é um porco, não tem vergonha"... É o amarfanhamento da personalidade em aspectos exteriores e naquilo que, para um intelectual, são valores de representação.
Não há dúvida que eles também batiam em muitos intelectuais, mas a estratégia de interrogatório de intelectuais apontava para a sua vontade, para os seus valores, para a sua representação.

P. - Havia a preocupação também de deixar menos marcas.
R. - Sim, porque depois havia as visitas e o risco de denúncia pública. Na véspera das visitas punham as pessoas a dormir para recuperarem, enchiam-nas de cremes para disfarçar os inchaços, e tinham cuidado a escolher os locais onde batiam - no estômago, nas costas, debaixo do queixo, atrás das orelhas, para não deixar muitas marcas visíveis numa visita.

A PIDE e as Forças Armadas

P. - Como é que é a relação da PIDE com as Forças Armadas?
R. - Antes da guerra colonial é uma relação de muito cuidado. Os golpes e as conspirações militares são quase sempre julgadas pela justiça militar. Até ao golpe da Sé em 1959, há uma espécie de respeito pela corporação militar, apesar da polícia política também ajudar às investigações. Depois, com a guerra colonial, a colaboração da PIDE com as Forças Armadas é total, até porque as Forças Armadas combatem um inimigo que a PIDE detecta e é sabido que há muitos casos em que são os próprios oficiais que colaboram nos interrogatórios e em tudo o que de sinistro teve esse período.
O que não impede que o golpe de Beja (1 de Janeiro de 1962), que é feito em parte por militares, tenha sido um dos episódios de maior violência policial jamais visto, mesmo contra os militares que foram presos e entregues à PIDE.
Depois, há, por exemplo, a Abrilada de 61, o golpe do Botelho Moniz - nesses nem sequer tocam, eram ministros de Salazar e chefes de Estado-Maior, e nem sequer são disciplinarmente punidos.

P. - E como é que se explica que a PIDE não dispusesse do mínimo de informação e análise sobre o 25 de Abril?
R. - Acho que eles tinham. É pura intuição, porque está por fazer qualquer investigação séria sobre isso. Mas inclino-me para que eles estavam politicamente neutralizados pela confiança que tinham nos chefes: Spínola, Costa Gomes e outros comandos militares. Aliás, há relatórios a provar que eles informavam o próprio Governo das movimentações militares. O que provavelmente aconteceu é que não acreditavam que se chegasse ao golpe de Estado ou pensavam que era um simples golpe de generais. A investigação provavelmente também demonstrará que parte da PIDE estava com o golpe e outra parte não estava. Continuo a pensar que o Barbieri Cardoso, a alma da PIDE, não estava em Paris por acaso, no 25 de Abril.

P. - A PIDE mantinha contactos regulares com as polícias secretas dos países democráticos...
R. - Ah, isso com certeza. Eu lembro-me que, quando estava na PIDE, eles se vangloriavam explicitamente disso. Diziam-nos: você está para aí a queixar-se mas eu até estagiei em Inglaterra, lá também é assim. Com a polícia francesa, a inglesa, mas sobretudo com a CIA. A CIA é que fazia escola nessa altura.

P. - Qual era o perfil sociológico do agente da PIDE?
R. - Evolui muito ao longo do tempo. Estamos a falar de uma polícia política com quarenta anos. Na fase posterior aos anos 60, a grande base de recrutamento é a tropa, os homens que fazem a guerra das colónias e que são recrutados "in loco", como o pide da SIC, aliás, demonstrou. Era uma espécie de recrutamento político do género: vamos lutar pela pátria contra o terrorismo internacional, etc. Fui preso em 65 e em 71 e encontrei uma grande diferença nos agentes da PIDE. Havia muitos ex-comandos, ex-páras, com outra mentalidade. Antes, era um recrutamento muito mais rural, o do homem que metia um empenho para vir para a polícia, porque levava uma vida melhor, tinha um ordenado certo, um emprego garantido, uma carreira. Os homens fortes da PIDE começaram como tarimbeiros. O Mortágua, o Tinoco, o Abílio Pires. Os chefes, esses, vinham da tropa, eram oficiais superiores, como o Saquetti, o Silva Pais, o Agostinho Lourenço.  
Não há grande recrutamento - como havia, por exemplo, na Gestapo - entre os intelectuais, entre os intelectuais fascistas assumidos, que vão por missão.

P. - Isso também corresponde ao nosso modelo de fascismo.
R. - Exactamente. A polícia política em 33, 34 ainda tem alguma função ideológica. Encontrei muitos relatórios dessa altura em que eles, por exemplo, criticam o patronato por estar a seguir uma política pouco corporativa, por quererem apenas ganhar dinheiro e serem a causa da agitação social. Mas isso desaparece com a II Guerra Mundial e passa a ser um puro corpo de repressão. Há informadores intelectuais mas não dirigentes.
A verdade é que a polícia sempre foi socialmente mal vista em Portugal; era a "secreta" que fazia mal às pessoas, que tinha o poder absoluto. A polícia política não era uma das vanguardas do regime como eram as SS; era uma polícia de Estado secreta, pouco atractiva para os intelectuais do regime. Há uma incomodidade desses intelectuais - encontra-os a todo o passo a dizer que não são denunciantes, que não colaboram com a PIDE.

A Legião Portuguesa

P. - Como é que nas estruturas do regime se enquadra, por exemplo, a Legião Portuguesa?
R. - A Legião é outro problema complicado. Quando é fundada, em 1936, no calor da guerra civil de Espanha, é de certa forma  imposta ao Estado, corresponde à agitação dos fascistas portugueses durante toda a guerra civil de Espanha,  que leva a que peçam ao Estado que constitua uma milícia. Salazar constitui-a mas pondo-a imediatamente sob sua tutela. A Legião vai ser sempre um reduto de extrema-direita do regime, dos ex-nacional-sindicalistas. Salazar, de facto, nunca deixa as coisas irem muito longe; submete-a sempre ao Estado e a homens políticos da sua confiança.
A junta central da Legião tem o Lumbrales, um braço direito de Salazar, e os comandantes militares que levantam a cabeça são afastados e substituídos por comandantes militares que são homens de confiança, como Craveiro Lopes, capazes de enquadrar a Legião como uma tropa de reserva do exército.  Ela deixa de ter qualquer papel real no regime a partir do fim da II Guerra. Está lá, mas é uma brigada do reumático, no seu conjunto. Depois, ficam como corpos operacionais interessantes, as chamadas "brigadas especiais", "brigadas de choque" ou "brigadas automóveis", que vão funcionar como complemento da PIDE para alguns serviços sujos, como assaltar sedes, espancar oposicionistas, fazer ameaças. Assaltam as sedes da CDE em 1969, espancam candidatos da oposição nessa altura, atacam a Sociedade de Escritores, sempre as brigadas de choque da Legião.

P. - Qual é o papel da PIDE na manutenção e na longevidade, para além de todas as expectativas, do Estado Novo?
R. - Acho que a repressão policial é uma das componentes da durabilidade do regime mas está absolutamente longe de ser a componente principal. Exactamente por este sistema de "ultima ratio" que a polícia política é. São causas sociais, culturais, de mentalidade e políticas que fazem o regime durar muito tempo.
Sobretudo a arte que Salazar tem de equilibrar os vários sectores e interesses da classe dominante e da elite política, de estabelecer, renovar e adaptar os equilíbrios de quem manda, por forma a que a elite mantenha coesão. Esta arte de manobrar e de equilibrar, e que é de facto a sua suprema arte, conjugada com um sistema muito eficaz de desmobilização social e cultural, de congelamento do desenvolvimento acelerado. O custo foi o desenvolvimento, a modernidade social, económica e política. Salazar dizia, numa das conversas com António Ferro, que a arte suprema da governação era saber durar: saber durar como valor político em si mesmo, saber durar, mesmo à custa da economia, saber durar, mesmo à custa de modernidade. Quando os marcelistas levantam a cabeça, saber integrá-los e dar-lhes coisas...
Até que a certa altura esse equilíbrio deixa de ser possível e se dá a ruptura, ou seja, quando qualquer cedência deixa de permitir o reequilíbrio do regime. Isso começa a tornar-se evidente a partir das eleições de 1958, porque qualquer cedência aos liberais é o fim do regime. O que é o período de 61 a 68 senão a longa espera, a longa vigília da morte física de Salazar, quando os reformistas deixam de poder operar militarmente por causa da guerra colonial? Tentam depois tardiamente a liberalização marcelista.
Naturalmente, a repressão tem aqui um papel, mas também tem um papel a censura, a Igreja, a escola e os sindicatos... A polícia é o núcleo duro que está por detrás; quando o resto não funciona, então funciona ela.

P. - É possível saber, por exemplo, o número de escutas...
R. - Isso está lá tudo, nos arquivos, mas não há acesso para se poder contabilizar. Devo dizer-lhes que eles passavam as escutas a papel e à máquina. Tive oportunidade de ler as escutas telefónicas de Mário Soares com Maria Barroso, quando ele estava em São Tomé. Ele dizia: "Não te posso dizer isso agora." E eles punham reticências. Mas queimaram muita coisa naquelas vinte e quatro horas em que aquele pide telegénico [Óscar Cardoso] andou a mandar disparar sobre as pessoas. Queimaram os informadores, por exemplo.

P. - Então ninguém sabe...
R. - Talvez alguém saiba. Houve mais tarde chantagem sobre tanta gente.

P. - Quer dizer que o PCP sabe?
R. - Foram os primeiros a lá chegar. É sabido, por exemplo, que o inspector Pereira de Carvalho uma das coisas que disse foi que os primeiros interrogatórios de que foi alvo incidiram sobre as organizações de extrema-esquerda, por parte dos funcionários do PC. Eles não foram lá para fazer História, foram lá para trabalhar... Não há nenhum processo importante de nenhum dirigente do PCP que lá esteja