Hermínio da Palma Inácio

Entrevista conduzida por Batista-Bastos -  "Público" (1994)

ENTREVISTA COM HERMÍNIO DA PAMA INÁCIO

Hermínio da Palma Inácio, o revolucionário que não depõe as armas
"O Meu Sonho de Abril Era Outro"

Perfil patrício, gestos elegantes, movimentos leves, lestos, cabelo branco penteado a primor, para trás, corte rigoroso. Exprime-se com vagarosa eloquência. Veste-se com esmero. Cultiva a cortesia. Administra os silêncios com precaução. É paciente, atento, e está totalmente absorvido pelo fluxo de perguntas, a que responde com frases pausadas. Se a simplicidade é, por essência, a democracia, o estilo deste homem ilustra a tese e define o comportamento: límpido, liso, claro. Hermínio da Palma Inácio é algarvio de Ferragudo, tem 77 anos e passou mais de metade da vida a conspirar pela palavra e a agir com armas na mão. Foi capturado pela polícia política e percorreu o gólgota dos antifascistas: espancamentos, tortura de privação do sono, estátua, exílio.

É uma das lendas da resistência, e a sua vida uma narrativa tumultuosa, na qual a constância do arrojo e a persistência da coragem ficam enobrecidas pelos seus magníficos desprendimentos. Foi o primeiro guerrilheiro do mundo a tomar um avião de assalto. Foi dos primeiros a prever que a ditadura só cairia através de um movimento armado. Ora bem: este homem terrível para as polícias do fascismo, que cumpriu um destino e completou uma vocação de liberdade, sabe que a fé não alimenta o poder do julgamento, mas estimula o fascínio do mistério. Ajudou ao 25 de Abril e ainda hoje se interroga, do modo mais premente, sobre se a revolução de há 25 anos foi um sonho realizado - ou um sonho que se sonha, permanentemente inconcluído.

BAPTISTA-BASTOS - Onde estava no 25 de Abril?
HERMÍNIO DA PALMA INÁCIO - Na prisão de Caxias. Fui preso em 22 de Novembro de 1973, acidentalmente, junto da Gulbenkian. A PIDE não sabia que me estava a prender. Tinham prendido uns elementos ligados à LUAR, que deviam encontrar-se comigo, ali perto. A PIDE andava a segui-los, viram-nos a falarem comigo e pensaram que estava a dar-lhes instruções para alguma coisa. Antes disso, já a PIDE prendera umas pessoas, suspeitas de estar ligadas a alguma coisa. Esses elementos da LUAR tinham alugado um carro, com uma licença falsa, em nome de outra pessoa. A PIDE sabia disso e pensava que eles se preparavam para assaltar um banco, porque tinham estacionado o carro diante de uma agência bancária, na Avenida Duque de Ávila. Mas eles só tinham estacionado ali, porque era o único local disponível. Ainda por cima, o carro estava em transgressão.

P. - E é por causa dessa transgressão que a PIDE suspeitou de vocês?
R. - De mim não suspeitavam. A PIDE estava desconfiada, porque, um mês antes da minha prisão, um banco, em Vila Franca de Xira, fora assaltado com um plano muito idêntico: estacionaram um carro, também com licença falsa, diante desse banco, e, no dia seguinte, assaltaram-no, sem que se tivessem capturado os assaltantes. De modo que, quando a PIDE viu esse carro mal estacionado, suspeitou logo que havia um plano para assaltar a agência bancária. Só que nós não tínhamos nada a ver com os assaltantes, mas passámos a ser seguidos. Combinei encontrar-me com esses elementos da LUAR às nove horas da manhã, para prepararmos uma operação e contactarmos com elementos da LUAR no Norte. Disseram-me que, às nove, ainda não tinham o carro disponível, só às dez horas. Estava com dores de garganta e dirigi-me a uma farmácia próxima, para comprar uns comprimidos para as dores. Combinara encontrar-me com eles, no mesmo lugar, às onze da manhã. A PIDE seguiu-me até à farmácia e prendeu-me à saída.

P. - Estava disfarçado?
R. - Levava uns óculos e uma peruca. Quando estava a sair da farmácia, três agentes da PIDE prendem-me. Dois deles agarraram-me pelos braços, e um outro apontou-me uma pistola às costas. Eu estava também armado.

P. - Que significa LUAR?
R. - Liga de Unidade e Acção Revolucionária.

P. - Depois a PIDE descobre que não era nenhum assaltante...
R. - Quando me levam para uma taberna, na Avenida Duque de Ávila, onde os outros operacionais da LUAR já estavam presos, encostaram-me à parede e ficaram muito surpreendidos ao tirar-me a peruca. Pediram cordas ao dono da taberna, porque não tinham algemas para todos. A mim, algemaram-me e amarraram-me as pernas, com medo de que eu fugisse. Depois, levaram-me para a Rua António Maria Cardoso, sede da PIDE.

P. - Foi torturado?
R. - Fui. Quando saí da taberna, deram-me uma porrada. Mal entrei na sede da PIDE, comecei a ser barbaramente espancado. Transferiram-me para Caxias. Nunca fui tão cruelmente torturado como em Caxias. Interrogavam-me e batiam-me. Davam-me murros, pontapés. Bateram-me com cassetetes. Caía desmaiado, no meio do chão, e despertavam-me, atirando-me baldes de água fria para a cara, para o corpo. Então, voltavam a espancar-me e a interrogar-me novamente.

P. - Durante quanto tempo?
R. - Uns dez dias. O meu corpo estava todo inchado, todo negro das pancadas. Estive com o corpo assim durante três meses, até começar a recuperar. Depois, a tortura não é só o espancamento. Também é o sono, perturbarem-nos o sono. Era a famosa tortura da estátua, durante a qual não dormimos, não descansamos um instante sequer.

P. - Quantos dias durou essa tortura?
R. - Oito dias. Desta última vez, levei pancada e não dormi, ininterruptamente, durante oito dias. Estátua e pancada. Das outras vezes, só tinha sofrido a tortura da estátua.

P. - Você soube que tinha havido um golpe de Estado no próprio dia 25 de Abril?
R. - Sim. Tive contactos prévios e sabia que se estava a preparar qualquer coisa militar. Tínhamos a ideia de que, se houvesse, em Portugal, uma força capaz de derrubar o regime, a única que tinha condições para isso era o Exército.

P. - Não saiu da prisão no dia 25 de Abril, porquê?
R. - No dia 25 de Abril faz-se uma grande festa, os presos saem para o pátio, preparados para sair. Lá fora, estavam as nossas famílias, os nossos amigos, os nossos advogados. Até há fotografias disso, nós a festejarmos no pátio da prisão. No entanto, o general Spínola deu ordens para que os presos por crimes que Spínola considerava serem de direito comum, como assaltos a bancos, não fossem libertados. Curiosamente, prisioneiros que cometeram crimes violentos puderam sair. Saí no dia 26 de Abril, já à noite.

(Para lá da janela há um jardim. O jardim tem árvores tropicais, cujos nomes devem ser muito belos, porém por mim ignorados. Hermínio da Palma Inácio sabe o nome das árvores e di-los, sem afectação, mas com afecto. Também gosta de aves. Também gosta das claridades do mundo. Também gosta das sombras fúnebres dos homens, porque os homens não inventam nada melhor do que as suas próprias sombras. Sabe de pólvora, de gatilhos, de emboscadas e de conjuras. Selvaticamente torturado, os seus lábios permaneceram cerrados, porque trair é a convocação da infâmia e a personificação da indignidade. Mesmo que Palma Inácio perdesse o direito à sobrevivência histórica, ficaria resguardado no coração daqueles que ainda acreditam ser a resistência uma forma superior de incomodidade. Nunca uma lamentação; e muito menos um testemunho de carpideira. Em tudo o que diz mora uma transparência solene.)

P. - Quantas vezes foi aprisionado?
R. - Em Portugal, três vezes. No estrangeiro, várias. Nos Estados Unidos, uma vez. No Brasil, outra. Em Marrocos, outra. E em França, duas prisões.

P. - Sempre por motivos políticos?
R. - Claro. E, na sentença proferida no julgamento do caso do Banco de Portugal, até foi criada jurisprudência.

P. - Que idade é que tinha, quando fez a famosa sabotagem dos aviões, em Sintra?
R. - Vinte e cinco anos. Era piloto e mecânico de aviação. A sabotagem dos aviões em Sintra envolveu pessoas como o general Godinho, que era o chefe do movimento, o dr. João Soares, pai do Mário Soares. O general Godinho foi comandante da unidade dos Açores, durante a guerra, e tinha contas a ajustar com o Santos Costa, ministro da Guerra, na altura, que lhe tinha um ódio de morte. Não foi preso, por ser doente do coração. O golpe deveria sair da região centro, de Tancos. Quando cheguei lá, informaram-me de que o golpe tinha falhado. Sabotei os aviões de guerra, já um pouco antigos, e os aviões que o Governo preparara para as deslocações de membros do Governo.

P. - Que leva um jovem algarvio, de 25 anos, em 1947, a meter-se numa coisa dessas?
R. - Sentia que, já nessa altura, havia repressão, menos liberdade. Queria viver num regime livre, sem medo.

P. - Tem tradições familiares de luta antifascista?
R. - O meu pai entrou numa das primeiras greves de ferroviários e foi obrigado a reformar-se, por causa da sua adesão a essa greve. Na minha terra também havia muitas pessoas que eram antifascistas. Lembro-me de que a PIDE apareceu lá um dia, para prender o vendedor de jornais, porque era membro do Partido Comunista. Esteve um tempo preso, e, quando voltou, contou-me que tinha sido torturado, e isso impressionou-me muito.

P. - Que fez, depois de sair da prisão?
R. - Sou preso em Loures, torturado, enviam-me para o Aljube e evado-me ao fim de nove meses. Fugi, porque, um dia, o famoso capitão ,, inspector-geral da PIDE, chamou-me e disse-me: "Ou nos diz quem lhe deu as ordens de sabotagem dos aviões, ou então arranjamos um processo só para si, e você vai para o Tarrafal e vai morrer lá, porque do Tarrafal ninguém escapa!"

P. - Evade-se ao fim de nove meses. E depois?
R. - Fiquei uma temporada em Portugal, à espera que as coisas acalmassem. Estive nisto quase um ano, à espera de outro golpe. Depois, o Mário Soares levou-me para Reguengo do Fetal, para casa do Alípio Capela e Cunha, um tipo extraordinário. Fiquei uns quatro meses escondido em casa dele. Era um grande revolucionário. Após esses quatro meses, decidi ir para o estrangeiro. Foi um homem chamado Gabriel Pêra quem tratou da minha fuga. Ele tinha um barquito, levou-me para o Barreiro e embarquei num cargueiro, que me transportou para Marrocos.

P. - Quando disse "um grande revolucionário", os seus olhos brilharam. Ainda tem a paixão da revolução?
R. - Para mim, a revolução nunca acaba. A revolução é permanente. A democracia é um processo revolucionário. Sinto-me feliz por viver numa democracia e por ter contribuído e me ter empenhado, de alguma forma, para que isso fosse um facto.

(Clandestino durante seis anos nos Estados Unidos até que a PIDE lhe conhece o paradeiro. Mete-se a CIA e o FBI. O FBI era dirigido por John Edgar Hoover, homossexual paranóico e anticomunista protozoário. Palma Inácio tem a vida por um fio. Preso em Boston, desenvolve-se, em sua defesa, um grande movimento internacional de protesto. Palma Inácio é já uma lenda, com um halo de aventura. O Presidente Eisenhower é advertido da situação. Opõe-se ao pedido de extradição das autoridades portuguesas. Palma Inácio vai de Boston para Nova Iorque sob prisão. Depois, dão-lhe 30 dias para sair dos Estados Unidos. País à sua escolha. Vai para o Brasil, onde a liberdade andava à solta. No Brasil não suprime as convicções da sua consciência. E lá está ele, de novo, a conspirar. "O fascismo é a maior aberração do sistema capitalista." Diz. E diz como se entendesse que todas as lutas são etapas, de derrotas ou de vitórias, para a maior de todas as conquistas do homem: a da felicidade. Adianta: "E não há felicidade sem liberdade." Para Hermínio da Palma Inácio, o acto revolucionário é um lugar de formulação.)

P. - Gosta da democracia em que vivemos?
R. - Esperava que avançasse mais, mas não vejo, neste momento, outra melhor. Poderíamos aperfeiçoar mais esta democracia que temos, mas, logo de início, deveríamos ter avançado mais.

P. - Foi um pioneiro nos assaltos aos aviões, e um pioneiro, também, em assaltos a bancos. A quantia do assalto ao banco da Figueira da Foz foi, à época, de 30 mil contos. É verdade que deu parte desse dinheiro para o IRA, para a ETA e para a LUAR?
R. - Não. Uma grande parte desse dinheiro, uns 12 mil contos, foi entregue pelo Emídio Guerreiro à guarda de uma pessoa da LUAR. Ora bem, o Emídio Guerreiro não sabia que essa pessoa, chamada Canário, trabalhava para a PIDE. Era um agente da PIDE infiltrado na LUAR. Descobrimos, após o 25 de Abril, que trabalhava directamente com o segundo inspector da PIDE. E esse agente infiltrado deu o dinheiro à PIDE.

P. - E o resto do dinheiro? Foi entregue ao IRA e à ETA?
R. - Não. Com a ETA só tivemos contactos para que pudesse comprar equipamento, por nosso intermédio, à Checoslováquia. Eu tinha contactos directos com pessoas do Governo Dubcek. E a ETA pediu-me para lhes facilitar esses contactos.

P. - Como foi o caso do avião da TAP, assaltado em Marrocos?
R. - Entrámos como passageiros do voo Casablanca- Lisboa. Éramos cinco, entre os quais uma mulher, a Ana Vidal, que estava grávida. Quando nos encontrámos em espaço internacional, empunhei a pistola, que levava escondida, e dirigi-me para a cabina do comandante. Apontei-a ao comandante, que se chamava Marcelino. Ele ficou muito espantado, perguntou-me o que se passava, e eu disse-lhe: "Isto é uma operação revolucionária. Não pretendemos afectar a segurança de ninguém." Tentou evitar a operação: "Não temos gasolina." Eu respondi-lhe: "Sou piloto também e sei que temos gasolina." Fomos até Lisboa, sobrevoámos a cidade, quase a rasar, e lançámos os panfletos.

P. - Não houve um mecânico do avião que ficou todo contente?
R. - O nome desse mecânico, que já morreu, era Coragem. O mecânico Coragem reconheceu-me logo, apesar de ter embarcado com um nome falso, António Cardona. "Tu és o Palma!", disse-me, logo que me viu. E também ajudou a atirar os papéis.

P. - Qual foi o vosso golpe seguinte?
R. - Após este golpe do avião, em Janeiro de 1960, decidimos constituir um grupo que operasse com base na Europa e nos pudesse apoiar em termos financeiros. Fazer um golpe era muito custoso. Tínhamos de nos desfazer de objectos pessoais. A única maneira de evitarmos isso era assaltarmos um banco do Estado, assaltarmos o Banco de Portugal. Sabíamos que isso ia ser um acto muito penoso para nós, para as nossas famílias, íamos ser rotulados de assaltantes...

P. - Isso foi em que ano?
R. - 1967. Soubemos que o Banco de Portugal, na Figueira da Foz, iria ter, num determinado dia, cerca de 30 mil contos, e preparámos tudo para essa ocasião. E a ocasião proporcionou-se no dia 17 de Maio. Esperámos até essa data por duas razões: primeiro, havia um trânsito incalculável de gente que ia, dias antes, para o Santuário de Fátima, mais a mais, com a presença do próprio Papa em Fátima. Depois, tinha chovido a potes; durante uns dez dias choveu que se fartou e não pudemos utilizar a pista escolhida, a pista da Lapa, em Coimbra, uma pista pequena, circular, e não podia ser utilizada durante a chuva. Estava tudo cheio de lama, e o avião, com o peso, não levantaria voo. Iríamos até ao Algarve, de avião, seguíamos de carro até uma praia e abandonávamos o carro aí, para dar a impressão à PIDE de que tínhamos fugido de barco até Marrocos. Após o que seguiríamos para a fronteira espanhola. Ensaiámos a operação durante um mês, todos os dias, para nada falhar. A operação seria feita em cinco, dez minutos antes de o banco fechar para o público.

P. - Depois, é o golpe da tomada da cidade da Covilhã. Em que ano?
R. - Em 1968. Após o golpe do banco, seguimos para a Checoslováquia, para adquirirmos todo o material, todo o apoio logístico necessário para o golpe.

P. - Eram toneladas de material. Como é que conseguiram meter esse material em Portugal?
R. - Só no Monte da Verga conseguimos meter, de uma vez, seis carros, contendo cada um cerca de 800 quilos de material.

P. - Esse golpe falha, e vocês são presos.
R. - Sim, foi uma infelicidade. Estávamos em Alfândega da Fé, e um guarda, que andava à caça de uns passadores de fronteira, viu-nos, e prenderam-nos depois. Estive nove meses preso, na PIDE do Porto, e fugi. Em todas as minhas prisões fui torturado.

P. - Tinha apoios de fora, nas suas fugas?
R. - A televisão transmitia, regularmente, a minha fotografia, e davam prémios a quem ajudasse à minha captura. Consegui entrar em contacto com o Mário Soares, que me escondeu em casa do José Fernandes Fafe, em Cascais. Descansei uns dias, e depois escondi-me em casa do Fernando Oneto, que me levou até à fronteira de Badajoz. Sou preso em Espanha e estive sete meses na prisão de Caramanchel. O Governo português pediu a minha extradição, confiando que o Governo franquista lhe dava. A pressão internacional sobre o tribunal espanhol foi muita, e o juiz espanhol decidiu que o caso era político. Não fui extraditado. O meu caso abriu um precedente jurídico: era a primeira vez que um tribunal espanhol decidia sobre a situação e fixou doutrina com isso.

P. - O caso da Ordem da Liberdade foi chocante. Quem lhe nega a Ordem da Liberdade são pessoas como o Gonçalo Ribeiro Teles, o Spínola e o padre Melícias, não é assim?
R. - O Spínola decidia sobre a atribuição de ordens militares, a Ordem da Liberdade era decidida pelo Ribeiro Teles. Enfim, são coisas. Disse ao Mário Soares, que era Presidente da República nessa época, que quem poderia ser prejudicado com toda essa situação não era eu, mas sim ele, porque quem tinha proposto o meu nome para a Ordem da Liberdade fora ele. Fiquei magoado com a situação, mas depois, analisando as pessoas que decidiam a atribuição da ordem, vi que não tinham qualquer qualificação para me julgar. Após essa situação, disse que só aceitaria a Ordem da Liberdade, se ela fosse atribuída à revelia da comissão decisória. Só que, numa segunda reunião, decidiram conceder-me a Ordem da Liberdade. E, dessa vez, o meu nome foi aprovado por unanimidade. Aí, recusei aceitar a ordem, só a aceitaria se fosse à revelia dessa comissão. E não tenho a Ordem da Liberdade por isso.

P. - Na sua opinião, o 25 de Abril foi cumprido?
R. - Foi cumprido nalgumas coisas. Por exemplo, o 25 de Abril acabou com o medo em que vivíamos. Mas o meu sonho era outro. Era que o 25 de Abril avançasse mais em questões sociais, por exemplo. Ainda há muita gente com fome, ainda há muita gente sem casa. Fazia parte do meu sonho revolucionário acabar com estes problemas.

P. - Após todos estes anos de conspirações, de torturas, de prisões, de fugas, a revolução continua?
R. - Continua, claro que continua! A revolução continua!

P. - Não é um revolucionário na reforma?
R. - Serei sempre um revolucionário activo!

(Você cruza-se na rua com este homem elegante e talvez presuma ver nele um pacífico chefe de família, um funcionário resignado, que não imita sentimentos, que não refila, que não protesta. Mas olhar é também analisar aquilo que escapa à análise. E perceberá, neste homem elegante, uma inexorável força contensa, uma emoção que se manifesta, por exemplo, no modo com que reconhece os direitos dele próprio, para preservar e defender os direitos dos outros. Não esconde a indignação que lhe assiste por Jaime Serra, dirigente do PCP, numa entrevista ao "Diário de Notícias", o ter chamado "bandido." Mais do que indignação é desgosto, é tristeza, é não admitir uma genealogia única do antifascismo. "Nunca tive nada contra o Jaime Serra, que respeito e admiro. Assim como respeito a luta do PCP. Porquê aquilo? Porquê o insulto? Sou, como ele, antifascista." Há, no bojo das frases, uma serena melancolia. O velho revolucionário sabe muito bem que as grandes revoluções são o produto de grandes tensões e impulsões sociais, aliadas a profundos ressentimentos colectivos. Não aceita, porém, que, em nome de diferenças ideológicas, se deteriore o sistema de relações humanas.)