Kaúlza de Arriaga

Entrevista conduzida por Batista-Bastos -  "Público" (1994)

ENTREVISTA COM KAÚLZA DE ARRIAGA

Kaulza de Arriaga, o último centurião
"Quem Diz Que Sou Fascista É Um Idiota"
 
Recebe-me com a cortesia de um cavalheiro antigo, e os modos delicadamente afáveis de um homem marcado por esmerada educação. O registo da voz é claro, metálico, bem timbrado. Move-se com extrema presteza para quem tem 84 anos. O raciocínio é límpido, rápido. A frase é imperativa, por vezes cortante, sempre sólida, bem construída na locução. Um homem de outro tempo, penso agora. E também penso: fazia-o mais alto, sei lá porquê?, fazia-o arrogante, fazia-o intempestivo, fazia-o insolente. A insolência e a arrogância intempestivas de quem se habituou a mandar e a gerir destinos. Surge-me uma pessoa de meã estatura, jovial, sorridente, olhar de corte biselado, uma espécie de felino com um instinto subtil e seguro. E um gosto acentuado pela ironia, pelo sarcasmo. Recusa a cultura tecnocrática. Detesta o liberalismo. Não acredita na redenção de um pusilânime. Defende que Portugal estava incumbido de um papel histórico, que tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética impediram de realizar.

Kaulza de Arriaga fez da sua vida um friso, no qual se acentua uma pessoal visão do mundo. Não desvia opiniões, não vacila quando qualifica aqueles que entende falhos de carácter e de coragem. Diz: "O Spínola não era grande coisa, mas o Costa Gomes é pior!" No balanço dos factos e no varejo dos homens, aprendeu que a condição humana está cativada de ritos, de convenções e de preconceitos. E, também, que a História não é apenas escrita pelos vencedores: os vencidos têm sempre uma palavra a dizer. Exactamente porque são as grandes sombras de todas as grandes tragédias.

P. - Onde estava no 25 de Abril?
R. - Em casa, a dormir.

P. - Percebeu que havia um golpe militar em preparação?
R. - Já tinha percebido; mais do que isso: já tinha preparado o contragolpe, com forças mais do que suficientes para dominar qualquer golpe. Isto por intermédio de dois generais - desculpe, mas não lhe direi os nomes - , um da Força Aérea, outro do Exército. E tínhamos quatro planos, de seus nomes A, B, C, D. Como disse, estava a dormir e, por volta das três, quatro da manhã, telefonam-me a avisar de que estava a ocorrer um golpe. Sabíamos que ia ocorrer um golpe, mas não sabíamos a data exacta. Estive sempre em contacto telefónico até às oito da manhã, para saber o que se passava, e telefonei para os dois generais, para dar a seguinte ordem: executem o plano B. Fiquei bastante satisfeito, porque o contragolpe ia entrar em acção, e iria acabar com o 25 de Abril. Por volta das dez e meia da manhã do dia 25 de Abril, telefonam-me os dois generais, dizendo-me: "Meu general, está tudo perdido, porque as suas tropas - as suas tropas! - aderiram ao golpe." E eu cometi um dos maiores disparates da minha vida: acreditei naquilo que me diziam! Porque era mentira, quem aderiu ao golpe foram os generais, as tropas estiveram até às sete da tarde à espera das minhas instruções!

P. - O que era o plano B?
R. - Já não me recordo! Eram tantos planos. Isto que estou a dizer é a verdade, não me recordo.

P. - Afinal de contas, de que tropas dispunha?
R. - Não digo! Revelar-lhe seria certamente uma complicação para muitas pessoas. Porque parte delas estão aí...

P. - Como é que o senhor sabia que estava um golpe militar em preparação, se os serviços de inteligência estrangeiros, e a PIDE, não sabiam nada disso?
R. - Já tinha havido o 16 de Março. As coisas denunciaram-se nessa altura. Se o poder de então fosse mais clarividente, tinha mandado prender todos os oficiais implicados nesse golpe. Não só os deixaram em liberdade, como os espalharam por todo o país. E esses oficiais contaminaram todo o país.

P. - Admitindo a hipótese de que o contragolpe do senhor general saísse vitorioso, o que aconteceria ao Governo de Marcello Caetano?
R. - O Governo era imediatamente demitido. No entanto, o Presidente da República, almirante Américo Tomás, não seria demitido. Aliás, dava-me muito bem com ele, e ele até sabia um pouco daquilo que se passava. Eu faria outro Governo. E tinha uma decisão a tomar: ficaria eu como presidente do Conselho, ou arranjaria outra pessoa? Quer ficasse eu, quer ficasse outra pessoa na presidência do Conselho, o Governo seria sempre escolhido por mim.

P. - E esse Governo seria constituído por militares?
R. - Não. Só haveria militares em certas pastas, como a do Exército, mas o Governo seria civil.

P. - Havia civis que sabiam dessa sua intenção de fazer um contragolpe?
R. - Sim. O [antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar] dr. Franco Nogueira sabia. O [antigo ministro da Economia de Salazar] José Gonçalo Correia de Oliveira também sabia. Estes dois nomes eram duas pedras minhas, qualquer um deles dava um bom presidente do Conselho. E havia outros nomes, mas estes eram os mais importantes.

P. - Havia pessoas dos grandes interesses económicos que estivessem ligadas a essa sua intenção?
R. - Ninguém. Vou-lhe contar uma coisa a respeito disso: em 1965, houve eleições presidenciais, e o Santos Costa indicou ao Salazar o meu nome, dizendo que eu dava um bom Presidente da República, e a minha mulher uma boa primeira dama. O Salazar concordou, e disse à União Nacional para tomar as medidas necessárias para que eu fosse o próximo candidato a Presidente da República. Até houve pessoas do capital que me ofereceram banquetes, porque era o futuro Presidente da República. Banquetes a que eu e a minha mulher presidimos, como se já fôssemos Presidente da República. De repente, silêncio! Nunca mais se avançou com o meu nome para a candidatura! Após o 25 de Abril, o Manuel Queirós Pereira, que já morreu, disse-me: "A culpa do 25 de Abril, e de tudo o que sucedeu, é nossa, dos capitalistas." "Porquê?", perguntei-lhe. "Porque, quando você foi secretário de Estado, disse, num discurso, que em Portugal há fortunas grandes de mais, face ao nível médio financeiro da população - o que, de resto, era verdade - e nós, capitalistas, ficámos aflitos. Pensámos que você era um socialista. E fomos dizer ao Salazar para que desistisse do seu nome. E Salazar desistiu." Por isso nunca fui Presidente da República.

[Numa das paredes, um rectângulo espelhado com a imagem de Franco em alto contraste. Lá está, também, o apelo à virilidade, à coragem e à grandeza de Espanha, na reprodução de um discurso do ditador. E uma data funesta para os franquistas: 20 de Novembro de 1975. A efeméride da sua morte. Nas estantes, lembranças de África, retratos de família, livros. O general manifesta grande admiração por outro general: De Gaulle, cuja glória entende corresponder à imponência de um destino singular. E lá estão os volumes de memórias do militar que resgatou a honra da França. Volumes que costuma ler e reler, detidamente, com mão cuidada e diuturna atenção. Diz: "Foi um homem do tamanho do século, num século de titãs." Conto-lhe: "O Claude Roy escreveu, uma vez, sobre De Gaulle: 'A pátria está-lhe grata, a literatura é-lhe devedora, a República tem de se acautelar.?" Ri com gosto: "Excelente definição. Mas não se me aplica." Mora, há quarenta anos, na avenida João XXI, casa alugada, bela, ampla, mobilada com gosto e discrição. Oferece-me chá, oferece-me um álcool. Tudo isto sem resultar nada de enfático ou de pretensioso. Dirá: "Sou contra os extremismos. Os extremismos, aos quais são inerentes processos coercivos e agressivos, conduzindo, geralmente, à violência e ao crime, são, do ponto de vista moral e humano, ilegítimos e, em absoluto, condenáveis e inaceitáveis." E eu: "Considera-se um democrata?" Ele: "A democracia pluralista é o melhor sistema que a imaginação dos homens produziu e pôs em vigor."]

P. - Quando dizem que o senhor é um general fascista, como reage?
R. - Nessas coisas mantenho-me num plano de superioridade. Quem diz isso é idiota, não sabe o que diz. Além disso, são canalhas, porque dizem isso com má intenção. Não tenho nada de fascista! Sou um homem, desde a universidade, da direita democrática social. Mas social não é socialista, mas sim de uma ideia de fraternidade.

P. - Porque aderiu ao chamado Estado Novo?
R. - Primeiro, porque o Estado Novo não era fascista, nem nazista, nem comunista. Os três grandes regimes totalitários não tinham expressão no Estado Novo. O Estado Novo tinha um certo autoritarismo, embora não fosse totalitário, nem fosse, também, um estado democrático. Aderi ao Estado Novo quando fui convidado para colaborar com o gabinete do ministro da Defesa. E fiz uma análise ao Estado Novo em si, antes de aceitar, para saber se merecia ou não colaborar com ele. E concluí positivamente pelo Estado Novo. Salazar pôs em ordem a vida política, económica e social portuguesa, na sequência do golpe de 28 de Maio. Esse golpe pretendia ordenar este país, que estava num estado caótico, graças à I República. O 28 de Maio foi, no entanto, uma ditadura. O Estado Novo, que acaba com essa ditadura, aprovando a Constituição de 1933, herdou certos traços autoritários da ditadura militar do 28 de Maio...

P. - No entanto, historiadores insuspeitos dizem que essa Constituição foi aprovada até com os votos de mortos, e as abstenções tinham um carácter favorável para a aprovação da Constituição...
R. - Se houve algum vício, durante a aprovação dessa Constituição, não foi maior do que os vícios que existem agora. Eu aceito o autoritarismo do Estado Novo, mesmo sem que houvesse uma democracia, porque os sistemas políticos têm de se adaptar às conjunturas do momento. Ora, em 1933, pensa-se logo na transição para a democracia, mas em 1936 começa a guerra de Espanha. Essa guerra era de comunistas espanhóis, contra não comunistas espanhóis. Já viu o que era termos aqui, em 1936, uma democracia com os comunistas? Teríamos uma guerra civil em Portugal. E é isso que impede a transição para a democracia, já em 1936.

P. - Mas o Salazar não era um democrata.
R. - Não sei, nunca falámos disso.

P. - E como eram as suas relações com Salazar?
R. - Deixe-me só concluir isto. O Salazar teve uma importância enorme para a derrota dos comunistas na guerra de Espanha. Se assim não fosse, teríamos os comunistas por toda a Península Ibérica, era uma tragédia. Imediatamente a seguir a isto, dá-se a Segunda Guerra Mundial. E, aqui, há um pormenor curioso: o Salazar impede a comunização de Espanha, e durante a Segunda Guerra Mundial impede a nazificação de Espanha. O Teotónio Pereira conseguiu impedir que a Península Ibérica fosse aberta às tropas nazis, porque o Hitler tinha uma ideia persistente: dizia que era uma vergonha que Gibraltar fosse inglesa. E queria invadir a Península para libertar Gibraltar! E o Teotónio Pereira consegue convencer o Franco a não ir nessa conversa do Hitler. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, começam os problemas das colónias ultramarinas. Foi preciso segurar o Ultramar. E foi isso que me levou a colaborar com o Estado Novo. Ficou claro?

P. - Muito claro. O senhor general é daqueles que chama aos capitães de Abril traidores à pátria?
R. - Não. Chamo-lhes outra coisa: presumíveis delinquentes de crime de alta traição. A eles e a outros. O poeta Alegre quis pôr-me em tribunal porque, quando disse isso, encaixou como se fosse dirigido a ele e ao Soares, sendo o Soares, à época, Presidente da República.

P. - E a pátria, para si, estendia-se do Minho a Timor, como se dizia?
R. - Aí entramos numa coisa muito importante: qual era o conceito ultramarino português? Variou com o tempo. Falei com Salazar, a esse respeito, duas vezes: quando entrei para o Governo e quando, sendo ainda membro do Governo, fui, pela primeira vez, a Moçambique. Na primeira vez, perguntei a Salazar se Portugal ia do Minho a Timor para sempre. E ele respondeu-me: "Além de sermos uma pátria, somos uma nação fazedora de nações. É possível que amanhã façamos nações em Angola e Moçambique, mas, para isso, há duas condições: que se desenvolvam de forma a poderem autogovernar-se, senão é o caos. A segunda é que a URSS deixe de existir, para não se aproveitar da autonomia para as absorver." Salazar falava disto connosco. E concordei com isto totalmente.

P. - Mantém relações com antigos governantes de Salazar?
R. - Sim. Mantenho relações com o Adriano Moreira, embora não seja um seu adepto especial. Falo com o Veiga Simão. Não tenho visto o Silva Pinto, embora me tenha encontrado com o Dias Rosas. Também falo com o Baltazar Rebelo de Sousa, embora tenha tido uns atritos com ele e com o Adriano Moreira, no tempo do prof. Marcello Caetano, de modo que não tenho relações íntimas com os dois.

P. - E com os políticos do novo poder?
R. - Com nenhum deles. É óbvio que, para mim, o dr. Mário Soares não existe. Para mim, ele é inexistente. Não posso falar sobre uma coisa que não existe. No outro dia, o filho dele, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, mandou-me um presente, quando fiz anos! Agradeci, mas não abri o presente.

P. - Que lhe dizem os nomes de Álvaro Cunhal, Mário Soares, Sá Carneiro, Francisco Balsemão?
R. - Álvaro Cunhal é dos menos maus de todos, porque, embora laborando toda a vida num erro, foi sempre fiel a esse erro. Mário Soares é um salta-pocinhas. Sobre Sá Carneiro, vou-lhe contar uma história: estava no comando-chefe, em Moçambique, e o meu ajudante-de-campo era o Francisco Pinto Balsemão. E o Balsemão aparece-me, um dia, com um recado do Sá Carneiro. Esse recado dizia que ele, Sá Carneiro, era preponderante na ala liberal da Assembleia Nacional, e queria que eu fosse candidato à Presidência da República pela ala liberal. A minha resposta foi esta: era amigo do almirante Américo Tomás, e nunca aceitaria ser candidato sem falar com ele primeiro. Depois, a palavra liberal dá para tudo, e eu não sabia qual era a política da ala liberal. Só depois de a saber é que poderia dar uma resposta. Passados uns tempos, voltei a Lisboa. O Balsemão e o Sá Carneiro souberam disso, e o Balsemão veio até minha casa repetir o convite. E a minha resposta foi: "Mantenho o que lhe disse antes. Mais uma coisa: não conheço o Sá Carneiro, e o tio dele, o Lumbralles, não me dá umas referências muito brilhantes. É melhor conhecer o Sá Carneiro para lhe dar uma resposta." Combinou-se um almoço em Vila do Conde, e lá fui. Estavam lá umas quarenta pessoas. No fim do almoço, fomos tomar café, eu, o Sá Carneiro e o filho do Manuel Fino. O Sá Carneiro diz-me assim, de caras: "O senhor general não se esqueça de que eu o considero como comandante de tropas de ocupação de um território estrangeiro, que é Moçambique." Dizer isto a um comandante-chefe é uma coisa espantosa. E disse-lhe: "Você tem imensa sorte, porque se me dissesse isso em Moçambique, já estava na cadeia!" De modo que esse almoço não correu nada bem.

P. - Mantém relações com o Francisco Pinto Balsemão?
R. - Nenhumas! Mantinha óptimas relações com o Francisco Balsemão e com a Belicha, a primeira mulher dele, com os seus pais, até eu ser preso. Desde esse dia que não há relações. Ele vê-me, a mim e à minha mulher, cara a cara, e não me conhece. Não sei porquê, mas enfim...

P. - Conheceu certamente de perto alguns oficiais que seriam, posteriormente, os capitães de Abril. De qual deles conserva mais fortes recordações?
R. - Conheci um, que trabalhou na Operação Fronteira. O Mário Tomé foi meu major-de-campo, por ser o melhor capitão operacional em Moçambique. A mulher dele puxava um bocadinho para o socialismo. Ela era formada em Direito, era mais inteligente do que ele, de modo que lhe deve ter dado a volta. Ele era muito rígido, chamavam-lhe "o capitão nazi", mas foi sempre lealíssimo e um óptimo oficial.

P. - Na sua opinião, a guerra de África poderia ter tido outra solução que não a das independências?
R. - Devíamos ter continuado com a guerra. De resto, quem fazia a guerra não éramos nós, eram os russos e os chineses que faziam a guerra contra nós. Devíamos continuar com a acção defensiva da guerra, até que os povos africanos estivessem desenvolvidos. Nós fizemos um esforço enorme na educação desses povos. Fez-se mais em dez anos do que em todo o século anterior. Todo o sistema escolar progrediu imenso. Só faltava que a URSS acabasse para que lhes déssemos a independência.

P. - E o papel dos americanos, no meio disso?
R. - Já vai ver. Numa conferência que fiz no SNI, em 1966, previ o fim da URSS, lá para o fim dos anos 90. Deveríamos continuar com o nosso trabalho em Moçambique até aos anos 90, data em que a URSS acabaria, e nós dávamos-lhes, não a independência, mas a autodeterminação. E eles escolheriam o seu destino.

 [Cinco filhos, oito netos. Mostra-me retratos da família. As frases que diz agora apoiam-se mais em calor do que em ideias, mais em efusão do que em doutrina. "Mas a família pertence aos fundamentos daquilo que sempre defendi." Discreteia sobre África. Fala do tempo quase imóvel, da doçura dos poentes, da beleza estonteante das paisagens. "Agora, leio, escrevo, reflicto." Amigos e inimigos são unânimes: "O Kaulza é um obstinado, é um teimoso; mas é um homem de carácter e inteligentíssimo." Costa Gomes é um dos que sublinham estes traços da índole do seu antigo companheiro de armas e de amizades. Ergue-se do sofá onde se sentara para este diálogo em público. Diz: "Nós podíamos, em África, ter dado outra feição à História."]

P. - A chacina de Wiriamu.
R. - Quando sucede Wiriamu, estava em Lisboa. Passei todo o mês de Dezembro de 1972, até ao dia 21 ou 22, e depois fui para Moçambique, para passar o Natal com as tropas, como fazia sempre. Quando cheguei a Nampula, o brigadeiro Videira, que era o comandante da zona operacional de Tete, disse-me, mal cheguei ao aeroporto: "Há rumores de que as tropas fizeram abusos, num local chamado Wiriamu." "Onde era Wiriamu?", perguntei. "Não sei. Ninguém sabia onde ficava esse local. Até há quem pense que isso foi inventado." Fiz o que fazia sempre, porque, desde que chegara a Moçambique pela primeira vez, já tinha havido dezoito rumores de abuso das tropas. Ordenei, em todos os casos, que os serviços competentes investigassem esses rumores. E, desses dezoito rumores de abuso das tropas, três foram provados. E os prevaricadores foram a tribunal, e foram condenados. Também neste caso, ordenei ao serviço de justiça que abrisse um inquérito. Após um mês de investigações, concluiu-se que não havia nenhuma matéria que justificasse a existência desse rumor, logo, que houvesse algum crime. Mandei arquivar o inquérito, até que houvesse melhor prova.

P. - Bom. Mas a verdade é que, a partir de certa altura, deixou de ser um rumor, como diz o senhor general...
R. - Durante sete meses, após o arquivamento do inquérito, não se falou mais deste assunto. Mas, quando o Marcello Caetano foi a Londres, em visita oficial, na véspera, saiu no "The Times" uma coisa terrível sobre Wiriamu. Foi nessa ocasião que se deu o célebre incidente, em que dizem que, numa manifestação contra o Marcello Caetano, o Mário Soares pisou a bandeira nacional. Não sei se isso é verdade, mas o Mário Soares estava nessa manifestação, isso é um facto. Essa notícia, enviada para Londres pelo padre Hastings, fora mandada pelos padres espanhóis de Burgos, que eram nossos inimigos. Esses padres apoiavam os terroristas, guardavam o seu armamento, socorriam-nos. Tive de fechar quatro missões dos padres de Burgos, o que os deixou furiosos, e dois padres foram julgados em tribunal. Esses mesmos padres afirmaram em tribunal que eram inimigos de Portugal. Esses padres afirmaram que não queriam a nossa presença em Moçambique, que não queriam "perder o comboio", expressão deles. Foram os padres de Burgos que organizaram o escândalo de Wiriamu. O Marcello Caetano ficou arreliadíssimo, porque esperava fazer uma viagem triunfal, e não teve triunfo nenhum.

P. - E como é que o senhor reagiu?
R. - Voltei a Lisboa no dia 3 de Agosto de 1973. No fim de Agosto veio cá o Jorge Jardim, e disse ao Marcello Caetano, ao ministro da Defesa, Sá Viana, ao ministro do Ultramar, Silva Cunha, que houve uma coisa em Wiriamu mais grave do que aquilo que se pensava. O Sá Viana afirmou, depois, para os jornais, que parecia ter havido qualquer coisa grave em Wiriamu. O Marcello Caetano mandou fazer um inquérito, mas com gente daqui, o brigadeiro Nunes da Silva, com a sua equipa, que fizeram o terceiro inquérito de Wiriamu. E esse inquérito teve a mesma conclusão que os outros: não ocorreu nada em Wiriamu. Não houve nenhum crime em Wiriamu.

P. - O marechal Costa Gomes diz de si o seguinte: "Acho que o Kaulza de Arriaga se enganou quando foi para as Forças Armadas. Era uma pessoa muito inteligente, com grande capacidade de trabalho, foi aluno distintíssimo na Faculdade de Ciências (...), mas, quanto a mim, nunca foi, no entanto, um bom oficial."
R. - Isso que ele diz, na segunda parte, é completamente mentira. Já na primeira parte, é capaz de ser verdade o que diz. De resto, o marechal, ele até é marechal!, mente, e mente muito. Pensa-se que, neste livro que escreveu, descobriram-se, pelo menos, duzentas mentiras. Esse livro tem quatrocentas páginas, portanto, há mentiras página sim, página não, fora aquelas que não foram detectadas. Ele diz muito mal das minhas operações militares, que foram um desastre. Isso é tudo mentira. Essas operações, de que ele fala tão mal, foram óptimas, das melhores que fiz. Essas mentiras foram todas respondidas nos meus livros, e posso dar-lhe documentação sobre isso.

P. - O golpe de Botelho Moniz, ou a Abrilada de 1961, destinado a depor Salazar, e a colocá-lo na Suíça, com uma considerável fortuna, e grande conforto, foi abortado pelo senhor. Aquele não seria um caminho possível para a democratização do regime?
R. - Não. Como lhe disse, nunca poderia haver uma democratização, enquanto o problema do Ultramar não estivesse resolvido. A história do conforto do Salazar, só agora é que se fala nisso. Não tenho ideia nenhuma de que o Salazar fosse para a Suíça, com todo o conforto e bem tratadinho. Mais, o nome do golpe do Botelho Moniz é "13 de Abril". Isto é muito interessante: o golpe não foi impulsionado pelo Botelho Moniz. Ele estava doente da cabeça. Fui com ele a Paris, numa viagem oficial, e aquilo foi um desastre. Quem está atrás desse golpe é o Costa Gomes. Ele é que foi o cérebro desse golpe. E os Estados Unidos também estavam metidos nisso, lembre-se de que a Abrilada é feita no tempo do John Kennedy. O adido naval da embaixada americana em Lisboa, comandante Fitzpatrick, era da CIA, e dava-se imenso com o Costa Gomes. Soube disto tudo pelo próprio Botelho Moniz! Mais tarde, encontrei o próprio Fitzpatrick, que me corroborou a história.

P. - Como é que o senhor se opôs à tentativa do golpe?
R. - Percebi que ia haver um golpe militar. O Botelho Moniz queria reunir, no dia 13 de Abril às cinco da tarde, todos os generais. Se aderissem ao golpe, muito bem. A base das operações seria a Escola Prática de Infantaria, em Mafra. Pus a Força Aérea e os pára-quedistas, que era a melhor tropa da altura, de prevenção. Isto perturbou imenso o Botelho Moniz. Fui a essa reunião, o que foi um risco, e ele disse-me: "Porque pôs esta tropa de prevenção?" "Porque mandei! Tenho os pára-quedistas em Lisboa de prevenção." "Ninguém lhe deu ordens para isso." Respondi-lhe: "É a sua opinião. A minha é outra." Ainda julguei que o Botelho Moniz me prendesse, no final da reunião. E a coisa acabou da seguinte maneira, em que eu próprio me espantei com o modo como o fiz: a reunião de todos os generais, às cinco da tarde, era na Cova da Moura. Tinha o meu posto de comando no Aeródromo Militar. Às onze da manhã, chamei o Lumbralles e o Solari Allegro, que era uma espécie de chefe de gabinete do Salazar, e o chefe da casa militar do Presidente da República. Disse-lhes: "Às três da tarde, quero ouvir na Emissora Nacional a notícia de que foram demitidas certas pessoas e nomeadas outras. Se isso não acontecer, às cinco da tarde estamos em guerra civil, ou estamos todos presos." Isto era uma espécie de ultimato ao Salazar e ao Presidente da República! E, durante todo este processo, nunca falei com o Salazar! Não sei se ele, alguma vez, me perdoou isso. Eles saíram, chega o general Gomes de Araújo, e disse-lhe: "Arrisquei tudo. O senhor vai ser nomeado chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, e tem de impedir que os generais do Exército venham à reunião das cinco horas. Já impedi outros generais e almirantes. Só lá mandei ir o Albuquerque de Freitas." Ainda me perguntaram se achava que o Salazar devia ser ministro da Defesa interino. Achei mal, mas disse que os substitutos deviam estar ao encargo dos senhores. Não quis nomear ninguém. E, às três da tarde, lá apareceu a emissão, conforme eu pedi. Espantoso, não foi?

P. - Quer dizer, o Salazar seguiu as suas ordens!
R. - Sim, praticamente, seguiu-as. Às sete da tarde, o Salazar telefonou-me, e diz-me para me encontrar com ele. E disse-lhe: "Vou já aí, mas gostava que fizesse uma declaração pública." O que, para ele, era uma coisa terrível, mas diz-me o seguinte: "Uma declaração, por causa de uma remodelação ministerial de rotina?" E disse-lhe, espantado: "De rotina?" Tem piada, não tem? E, quando me dirigi, cometi um dos meus grandes erros. Cometi três ou quatro grandes erros, mas todos pela pátria, confesso. O problema do Salazar era que o general Albuquerque de Freitas queria passar à reserva. Disse que sim senhor, para deferir isso, mas também quis uma série de outros nomes. Só não dei o nome do Costa Gomes.

P. - Porquê?
R. - Olhe, por estupidez. Fiz a universidade, todo o percurso da minha vida, com o Costa Gomes, e pensei que ele poderia ser recuperado. Não era. Este país, sem o Costa Gomes, era outro. Quando entro no carro, o Salazar estava a fazer a declaração na rádio sobre a remodelação, que disse que não fazia! Chego a casa e está cá o Adriano Moreira, que tinha sido nomeado ministro do Ultramar. Estava eufórico com a nomeação, e porque, com a queda do Botelho Moniz, já não se entregava Angola aos americanos. A América queria Angola para o seu controlo. No fim, diz-me: "Meu caro Kaulza, a sua vida política vai acabar, porque o Salazar não lhe pode perdoar o serviço grande de mais que lhe prestou."

P. - Tem saudades do Salazar?
R. - Sim. Tive-as, sobretudo, com o Marcello Caetano. Porque como sei muito bem as relações que o Marcello teve com o Salazar, e as teve, depois, comigo, deve ter suposto que eu tinha saudades do Salazar. E tive-as, porque o Salazar era muito bom no contacto. Era um homem que não mandava em tudo, ao contrário do que se pensa. Por exemplo: fiz a minha tropa na Força Aérea, e o Salazar pouco intervinha nela. Só lá ia quando assinava decretos-leis. Só discordei dele por causa das enfermeiras pára-quedistas. "O senhor quer pôr mulheres na tropa? E logo nos pára-quedistas? O que será das rapariguinhas, no meio desses galfarros que são os pára-quedistas?", disse-me. Respondi-lhe: "A solução é simples. O senhor não sabe, mas as enfermeiras são todas de escolas religiosas, do mais sólido que há. Até as madres delas aprovam a entrada nos pára-quedistas. E os pára-quedistas não são galfarros, são a nossa melhor tropa."

P. - Qual é o seu conceito de liberdade?
R. - A liberdade é óptima, desde que não prejudique a liberdade dos outros, e não prejudique Deus, a pátria e a família.

P. - Como ocupa os seus tempos livres?
R. - Escrevo imenso. Leio, mas escrevo mais do que leio.

[No ano de 1955 estava em lua-de-mel. Salazar telefona-lhe: "De avião, já, para Lisboa!" Diz a Salazar que acabou de casar-se, que está em viagem de núpcias. Mas a pátria não admite intervalos, e a História é uma deusa exigente. "Apanhei o avião: tinha sido nomeado para o Governo, e no Governo servi, durante sete anos." Kaulza de Arriaga entende que a obrigação moral não pressupõe outra vontade além da que é determinada pela educação, pelo conhecimento do bem e do mal, e pela acumulação de experiências. Como um centurião, ele sabe muito bem que o poder de comando, de que dispôs, transformou-o numa personagem política, intimamente ligada a uma, por vezes dramática, dimensão histórica. Acompanha-me ao elevador. Sorri. "Podia ter sido. Mas não quis. Exactamente porque a coacção é exterior ao direito. E o valor supremo, a pátria."]