Mário Soares

Entrevista conduzida por Maria João Avilez -  "Público" (1994)

ENTREVISTA COM MÁRIO SOARES

Entrevista com Mário Soares, 1994
Texto: Maria João Avillez

PÚBLICO - Chegou a Portugal vindo da deportação, em São Tomé e Príncipe, em 1969. Qual era o clima?
MÁRIO SOARES - Encontrei um país trabalhado por dois acontecimentos: internacionalmente, houvera o Maio de 68, em França, que criara um grande movimento contestatário nos estudantes e nos jovens; e, cá dentro, encontrei uma certa abertura do regime - vivia-se o início da era marcelista. Caetano estava ainda, nessa altura, talvez, disponível para realizar uma abertura, no plano político. Depois, não foi capaz - ou não teve coragem - de lutar contra Thomaz, que o nomeara, aliás, contra os ultras do regime. E não enfrentou o que era chave do problema: a guerra colonial. A situação perpetuou-se, agravou-se; apodreceu.
Quando regressei, tinha porventura uma certa aura na oposição, mas não nas correntes de esquerda, quer no Partido Comunista, quer naquela esquerda influenciada por Maio de 68 e por certa mitologia da democracia directa e do espontaneísmo na intervenção política...

P. - ... e que olhava para si quase com displicência...
R. - Achavam que eu era demasiado clássico na minha fidelidade à democracia representativa. Vindo de São Tomé, de uma injusta deportação, eu aparecia, naturalmente, como a figura marcante da oposição, mas eles não entendiam assim, incomodava-os.
Houve então um primeiro facto grave, numa sessão oposicionista unitária - como de costume... - no 31 de Janeiro de 1969, no Porto; fui apupado por uma rapaziada da extrema-esquerda e por alguns PC. Diziam que eu queria contracenar com Marcello Caetano... Ora eu tinha uma visão, julgo, realista e lúcida do que se podia fazer em Portugal, país da NATO, do extremo ocidental da Europa. Pensava que era possível restabelecer a democracia e resolver o problema colonial, de acordo, aliás, com o que pensavam os nossos principais aliados...

P. - ... que era?
R. - ... fazermos acordos para uma paz negociada em África, conduzindo a evolução das nossas colónias para a autodeterminação e para a independência. Mas uma evolução lenta, gradual e controlada. Com o auxílio dos americanos e dos europeus - particularmente os ingleses, os alemães e os franceses.
Por outro lado, pensava também que era possível evoluirmos para uma democracia de tipo ocidental que nos levasse a uma futura integração na Comunidade Europeia. Mas não mais do que isso. Se avançássemos mais, não só cairíamos numa situação caótica - como de facto veio a suceder, depois do 25 de Abril - como seríamos necessariamente contestados à direita e à esquerda e entraríamos no jogo das superpotências e das divisões entre blocos...

P. - Era possível apesar de tudo, com o rumo dos ventos internacionais dessa altura, pretender isso?
R. - Teria sido mais possível se Marcello Caetano tivesse jogado o jogo democrático. Evitar-se-ia o que ocorreu em 1975 - uma confrontação decisiva, à qual teríamos, nessa hipótese, sido poupados...

P. - Falou alguma vez com Marcello Caetano?
R. - Nunca. O que pode ter sido um erro. Fui seu aluno e depois tive processos em que estabeleci uma relação profissional com ele, como advogado. Inclusivamente, quando estava em São Tomé, pedi-lhe um parecer sobre a minha deportação.
Como sabe, recorri da decisão administrativa, atribuída ao Conselho de Ministros, que me deportou. Quem me tratou disso, como advogado, foi o meu saudoso amigo José Magalhães Godinho. Então pedi, por escrito, de São Tomé, um parecer ao prof. Marcello Caetano. Respondeu-me dizendo que não me dava o parecer porque seria desfavorável: entendia que o Governo tinha o poder discricionário de me deportar - o que eu contestei -, embora ele achasse que a minha deportação era injusta e que tinha sido um erro político. Disse isso numa carta que me escreveu, dias antes do Salazar ter caído da cadeira, e que eu conservo.

P. - A sua posição era então...
R. - ... uma posição claramente socialista - pertencia à Acção Socialista Portuguesa - e unitária, porque achava que toda a oposição se deveria unir no combate à ditadura. Mas dentro dos parâmetros da democracia pluralista.

P. - Unitária, no sentido de se aliar ao Partido Comunista?
R. - Com o Partido Comunista e com todos os outros partidos, grupos e movimentos da oposição, mesmo os de extrema-esquerda. Era o quadro que me parecia o mais correcto.
Nessa altura fizera já contactos com a Internacional Socialista - tinham cá vindo dois secretários-gerais da IS e membros de diversos partidos socialistas europeus - e estivera num congresso da Internacional, em Eastburn, em que falei em nome dos socialistas portugueses. Foi em 1969, fomos lá publicamente - o Tito de Morais e o Ramos da Costa (que estavam no exílio), o Gustavo Soromenho e eu. Soube-se, veio tudo nos jornais da época. Tinha, portanto, um enquadramento político bastante abrangente, mas, ao mesmo tempo, moderado. Talvez por isso tenha sido tão contestado...

P. - Que fez quando percebeu que a "unidade" era impossível?
R. - Em 1969, o rompimento deu-se numa célebre reunião no Palácio Fronteira - onde eu não estive, de propósito..., mas em que esteve o Zenha, o Jaime Gama, a minha mulher, o José Luís Nunes e outras figuras ligadas à Acção Socialista Portuguesa. Percebemos que queriam esmagar-nos e não deixámos.
A unidade rompeu-se apenas em Lisboa, no Porto e em Braga. Simplesmente, eles tiveram a esperteza de se organizar como CDE, em Lisboa, Braga e Porto, quando a sigla unitária era CED (Comissões Eleitorais Democráticas) em todos os outros distritos, onde participava toda a gente. Daí a confusão. A minha mulher, por exemplo, participou nas eleições por Santarém, com o António Reis - então completamente sintonizado com a CDE de Lisboa -, com comunistas e gente de extrema-esquerda. Houve, aliás, militantes do Partido Comunista que não queriam o rompimento: o Cardia, por exemplo - ainda então no Partido Comunista -, lutou contra essa ideia.
A verdade é que alguns católicos progressistas, aliados ao grupo que viria mais tarde a ser o MES - Sampaio, Galvão Teles, etc. -, aos comunistas e a certa esquerda "festiva", puseram-se de acordo para fazer surgir uma figura de grande prestígio, na altura, e que utilizaram contra mim, Francisco Pereira de Moura. Apareceu como a personalidade de referência da oposição. Aliás, com justiça: nessa altura tomou posições de grande coragem e destaque.

P. - A ironia é que quem é preso a seguir...
R. - ... quem foi mais combatido por Marcello Caetano - que percebeu perfeitamente de onde lhe vinha o perigo - fomos nós, os da CEUD. Percebeu que o elo forte da cadeia - não obstante os resultados eleitorais - eram os socialistas. Daí a prisão do Gama e do Zenha e, depois, o meu exílio forçado para França.

P. - Falando agora do acto eleitoral...
R. - As eleições foram viciadas com certeza. E talvez, também, nos resultados relativos entre a CEUD e a CDE. Só nos medimos em Lisboa, Braga e no Porto. No Porto, ganhou a CEUD; em Lisboa e Braga, a CDE, por larguíssima maioria. Não sei se os resultados foram também aí pré-fabricados, se correspondiam ou não à realidade. É possível que, nesse momento, a juventude estivesse com a CDE; nós tínhamos posições fracas no operariado, entre os trabalhadores e os estudantes. Foi uma grande lição para mim. Marcou, no entanto, uma viragem importante: o aparecimento público, perante o país, de uma corrente individualizada, socialista democrática, não comunista.

P. - Que fez a seguir a essa grande lição?
R. - Parti, antes da prisão do Zenha e do Gama, para uma longa viagem ao estrangeiro. Em Washington, soube das prisões deles. Alguns amigos, particularmente republicanos espanhóis - Victória Kent, por exemplo - que estavam no exílio, nos Estados Unidos, onde tinham importantes relações nos meios jornalísticos, organizaram-me uma conferência de imprensa no American Press Club. Foi um acontecimento importantíssimo. E, no entanto, só disse o que antes dissera em Portugal: que era contra a guerra colonial; a favor de um cessar-fogo nas colónias e da abertura imediata de um diálogo com as forças nacionalistas. Mas a repercussão internacional foi enorme.
Caetano considerou a minha conferência como uma afronta feita a Portugal. Fizeram-se manifestações de desagravo, a dizer que eu era um "traidor à pátria", nas paredes a PIDE escreveu inscrições chamando-me "cão judeu" e outras amabilidades do género... Pretendeu criar-se uma sensibilização contra mim, para justificar a repressão que se preparava.
A minha mulher telefonou-me para Nova Iorque, dizendo-me que não regressasse. Temia que fosse preso, morto ou enviado de novo para as colónias. Fui então para França e recomecei o livro iniciado em São Tomé, "Portugal Amordaçado". Fiz outra conferência que também provocou algumas ondas, em Lisboa, no Conselho da Europa, sobre os atentados aos direitos humanos e os presos políticos em Portugal e nas colónias. Depois, passei algum tempo em Itália, em casa do meu amigo Mário Ruivo, em Piediluco, onde acabei o livro. Isso passou-se em 1970. O livro saiu em 1972.

P. - Entretanto, em Portugal, o regime agonizava, perdidas as ilusões da ala liberal e...
R. - ... entendi, por isso, que era a altura de criar formalmente o Partido Socialista, o que ocorreu em 1973, na Alemanha, dando início a uma política e uma estratégia autónomas e claras de partido. Nesse sentido, preconizei, em 1973, que refizéssemos a unidade com os comunistas, num acordo muito transparente para um fim concreto: o derrube da ditadura.

P. - Mas se, em 1969, compreendera que eles o queriam esmagar, por que é que, quatro anos mais tarde, as coisas haveriam de ter mudado?
R. - Havia que reagrupar forças numa ampla frente comum contra o regime, com fronteiras bem delimitadas e a posição socialista bem definida. Esta havia sido expressa em manifestos assinados por personalidades conhecidas de todo o país.

P. - Que lembra hoje dos seus encontros, no exílio, com Cunhal?
R. - O PC temia que nos transformássemos num partido forte. Sabiam que havíamos sido acolhidos na IS e que contávamos com o apoio dos partidos socialistas, sociais-democratas e trabalhistas europeus. Eu próprio viajara na América Latina encarregado de missões da IS em diversos países, a começar pelo Brasil. Cunhal sabia que eu tinha uma posição forte e de prestígio na Europa democrática, dominada, nessa época, pela social-democracia e pelo socialismo democrático.

P. - Como era a relação com ele nesse tempo?
R. - Distante e algo formal. Mas correcta. Ele era o secretário-geral do Partido Comunista, na altura todo-poderoso, eu era o secretário do PS, que ele respeitava como tal. Os nossos encontros ocorriam sempre numa sede arranjada pelo PC francês ou pelo PS francês. Alternávamos.

P. - Começava então em França a União da Esquerda...
R. - Começava. Cunhal queria, naturalmente, repetir a fórmula em Portugal. Julgava que era o mais longe que poderia ir. Só muda de estratégia quando se apercebe de que a desorientação de alguns militares lhe podia dar uma grande boleia. Mas eu sabia que havia no plano unitário um caldo de cultura pró-comunista no MDP existente, onde estavam independentes, esquerdistas e simpatizantes comunistas.

P. - A sua admiração por Álvaro Cunhal começara antes, quando andou por lá?
R. - A minha admiração vem de décadas antes, quando ele era regente de estudos no colégio do meu pai. Tinha 15, 16 anos quando o conheci; ele, 27 ou 28 anos. Depois, fui do PC, era uma das esperanças da juventude comunista e, nessa altura, tive relações muito próximas com ele, quando estava na clandestinidade. Considerava-me como uma espécie de bom discípulo, uma figura que poderia vir a lançar... Depois houve toda uma evolução - azedas críticas, afastamentos, cortes, da minha parte, e denúncias, da parte do PC, contra mim. Estava ele na cadeia quando isso se passou... Tornou, depois, a haver reencontros entre nós, mas já comigo numa posição completamente diferente, de total independência.

P. - Em fins de 1973, inícios de 74, qual era o seu exacto conhecimento do "movimento dos capitães" que estava em curso?
R. - Tinha diversas informações, sobretudo pelo jornal "República", onde dominavam os socialistas. Os militares descontentes canalizavam informações para o Rego e para o jornal, que era o rosto visível da oposição. Um sobrinho meu, José Manuel Barroso, era uma espécie de oficial às ordens de Spínola; foi ele que lhe levou o meu livro "Portugal Amordaçado"; ia-me dando informações do que se passava na Guiné.

P. - Nunca encontrou Spínola?
R. - Tive contactos indirectos com ele, por intermédio do Presidente Senghor. Estive até para o encontrar nas vésperas do assassinato de Amílcar Cabral, em Casamansa, na fronteira da Guiné-Bissau com o Senegal. Senghor convidara-o para lá ir, uma vez mais, e a mim para me encontrar com ele. O que não ocorreu porque, quando eu estava já de vacinas tomadas, pronto a partir, tomei conhecimento de que fora assassinado Amílcar Cabral. Fiquei em pânico: "Ó diabo, pensei, se calhar foram os portugueses, a PIDE." Falei ao Senghor, ele achou que era melhor adiar.

P. - Qual foi o seu papel, se é que houve algum, num projecto de Sá Carneiro que visava que o general Spínola concorresse às eleições presidenciais de 1971?
R. - Soube disso "a posteriori". Mas não tive nenhum papel. Sá Carneiro teve, nessa altura, contactos com o Jaime Gama, que lhe fez uma entrevista onde ele disse, pela primeira vez, que era social-democrata. E o Gama, arguto como sempre, perguntou-lhe: "Sabe que essa corrente social-democrata, em Portugal, está identificada com um nome, que é o do dr. Mário Soares?" Sá Carneiro respondeu: "Se é assim, estou identificado com ele."
Infelizmente, não levou isso às últimas consequências... Porque quando me anunciou, logo após o 25 de Abril, na embaixada de França - éramos nós ministros do I Governo Provisório -, que ia fundar o Partido Social-Democrata, eu perguntei-lhe porquê, se já existia um Partido Socialista. Ele reagiu dizendo-me que éramos marxistas.

P. - E não eram?
R. - Até havia militantes que gritavam "Partido Socialista, partido marxista!" Mas nunca me ouviu gritar isso a mim. Havia uma inspiração marxista que constava dos textos fundamentais do partido. Como, aliás, nos textos da social-democracia de Sá Carneiro... Não havia razão nenhuma objectiva para ele formar um partido à parte... Podia ter sido, desde o início, o mesmo partido. Mas ele não o entendeu assim... E com alguma razão, diga-se. Não foi logo social-democrata, mas popular-democrata, não só porque o nome estava ocupado por um pequeno partido criado pelo Adão e Silva e com o prof. Palma Carlos - que não teve sequência -, mas porque o PPD, desde o início, na sua estrutura de aderentes representava gente muito heterogénea, alguma ligada ao antigo regime, ao marcelismo principalmente.

P. - Quando chega a Portugal em Abril de 1974, qual é exactamente a sua ideia? Penso que o ouvi dizer que a esquerda portuguesa seria naturalmente ocupada sobretudo pelo Partido Comunista, que ao PS português restaria um lugar menor, e que gostaria de fazer um jornal, o equivalente ao francês "Nouvel Observateur".
R. - Disse isso, tal e qual. A minha ideia era exactamente essa. Pensava que a evolução do regime seria muito diferente da que foi: nunca pensei que houvesse esta vaga revolucionária, esquerdizante, que deflagrou sobre o país, que as pessoas, no espaço de poucos dias, fizessem uma tão grande revolução mental, aparente ou real... De repente, acordaram a dizer que queriam o socialismo, a transformação radical das estruturas! Todas pareciam querer libertar-se de um grande complexo de culpa colectivo...
Pensei que íamos ser uma democracia política, tranquila, onde surgisse um partido democrata-cristão forte e um partido republicano liberal, representativo do pensamento conservador e burguês. Sempre pensei que os partidários do antigo regime eram mais numerosos e importantes do que se revelaram, podendo mesmo vir a formar um partido de direita, mais ou menos democrático. Além disto, havia um Partido Comunista que parecia muito forte, como o italiano ou o francês da época...

P. - ... e quando é que chegamos a si?
R. - Eu? Representaria um Partido Socialista como o PS francês da altura: minoritário, em relação aos comunistas; semelhante ao PS italiano ou ao que nós pensávamos que seria o PS espanhol. E, naturalmente, sentir-me-ia muito satisfeito se fosse deputado e pudesse ter um jornal de comentário e formação política, virado para o futuro, do estilo do "Nouvel Observateur". Afinal...

P. - É extraordinária essa confissão.
R. - Porquê? Extraordinário foi o regime fascista - ou ditatorial - desmoronar-se com tanta rapidez, sem ninguém que o defendesse, gasto e apodrecido com a guerra colonial... Senão, essa seria a evolução previsível, normal. A que houve nos outros países da Europa do Sul. Deixe-me manifestar-lhe ainda a minha surpresa. Quando li, na entrevista que lhe deu o prof. Gonçalves Pereira, que, em 1973, o Marcello Caetano lhe dissera que, se houvesse eleições presidenciais livres, eu seria talvez o vencedor, fiquei estupefacto. Em 1973, nunca me passaria tal ideia pela cabeça!...

P. - Chegou a Portugal com essa convicção de que o PS, como ocorria então na Europa, seria um pequeno partido e que o PC ocuparia a esquerda. É por isso que foi receber, da maneira como o fez, o dr. Álvaro Cunhal ao aeroporto, no fim de Abril?
R. - Fizera uma reunião, dois meses antes, com o dr. Álvaro Cunhal e com as direcções dos dois partidos na qual tínhamos previsto que o derrube do regime podia acontecer. Tínhamos até assinado um documento conjunto, por coincidência, para sair em 25 de Abril! - por razões internas do PC, eles quiseram ocultar a data exacta da reunião e, por isso, atrasaram um mês a publicação do documento - no qual declarávamos que era indispensável que o regime desaparecesse, que houvesse a abertura de negociações para a paz em África, com o reconhecimento do princípio da autodeterminação dos povos, e que queríamos um regime de liberdade democrática, em Portugal, aberto às conquistas sociais europeias. Não se ia mais longe do que isso. Foi nessa perspectiva que recebi o dr. Álvaro Cunhal, como um grande resistente...

P. - ... na televisão parecia que era como um herói...
R. - ... antifascista, que incontestavelmente foi. Mas, nesse próprio dia, fiquei chocado: ele falou de cima de um carro militar, como se lembra, no meio daquela confusão de pessoas; senti que me afastava um pouco, não me queria ali...
Eu fora esperá-lo no meu carro particular, a guiar, com a minha mulher. Disseram-me "Venha connosco", no cortejo que ia para a Cova da Moura. O dr. Álvaro Cunhal partiu num carro à frente e puseram-me a mim num segundo carro, mas enquadrado por dois comunistas, no banco de trás. Ora, compreendi que toda aquela população queria aplaudir-me tanto como ao dr. Cunhal. Éramos ambos exilados que haviam regressado em triunfo. Mas não podia. Eu estava abafado, ninguém me via. Quando cheguei ao Campo Grande, pedi-lhes para parar. Disse-lhes que não estava a fazer nada ali. Saí e fui para casa.

P. - Que sentimento teve?
R. - Verifiquei que havia uma estratégia premeditada. Era natural quererem pôr em evidência o seu líder. Menos natural foi o que se passou depois. Não precisavam de me esconder...

P. - Que retém dos dias seguintes? Do 1º de Maio?
R. - Quando cheguei, queriam que fosse ministro sem pasta e alguns, como o Jorge Campinos, queriam mesmo que eu reclamasse o lugar de primeiro-ministro! Achei isso extraordinário: não estava preparado para tal, principalmente no plano das convicções próprias. Respondi que era absurdo. O Zenha também achou.
Nessa altura, ainda estávamos em boas relações com o Partido Comunista. A manifestação do 1º de Maio foi organizada pelos sindicatos, fundamentalmente pela Intersindical. Mas havia também socialistas nas estruturas sindicais. Como a Intersindical era muito pró-comunista, achámos que devíamos fazer uma distinção. Combinámos mobilizar o máximo de gente para a Duque d'Ávila, sede da nossa cooperativa, para dali marcharmos para a Alameda, de onde partiria a manifestação.
Fomos em grupo, algumas centenas ou milhares de pessoas. À frente, o Rego, o José Ribeiro dos Santos, o Tito, o Ramos da Costa, o Zenha, o Magalhães Godinho, o Soromenho, o Cardia, o Gama, o Manuel Serra, o Reis, o Marcelo Curto, o Catanho, toda essa gente do PS da altura. E o Palma Inácio, que era muito popular, porque tinha acabado de sair da prisão. Concentrámo-nos num sector absolutamente socialista, perto do Império; os comunistas, também em grande número, estavam do outro lado da Alameda.
Entretanto, um dirigente da Intersindical veio ter comigo e disse-me que eu devia ir ao lado do Cunhal, os dois a abrirem a manifestação. A iniciativa portanto foi deles, com uma certa insistência até. Fui, com dois operários socialistas. Cunhal e eu avançámos, de braço dado, até ao estádio. Aí, discutiu-se como seriam os discursos, havia muita gente a querer falar. Por sugestão deles, falava o Teotónio Pereira e o Pereira de Moura - achei bem -, alguém da Intersindical, eu e o Cunhal. Disseram-me que o último orador seria o dr. Cunhal. Perguntei porquê. Alegaram a questão de idade... Falei, portanto, imediatamente antes do dr. Cunhal...

P. - Se voltasse atrás, seria tudo igual?
R. - Teria feito o mesmo discurso, não estou nada arrependido. Fui o penúltimo a falar, espontaneamente, sem papel e com bastante êxito, parece, junto do público. Era um mar de gente, impressionante. Falei ao sentimento das pessoas, empregando palavras simples, com naturalidade e com força. Marquei um ponto importante. O Cunhal leu um papel e fez um discurso muito estudado, pareceu-me. Meteu-se entre um marinheiro e um soldado, levou-os à frente, de mãos dadas, toda uma simbologia... O truque deu-se quando acabei o meu discurso e as pessoas aplaudiam delirantemente: cortaram os aplausos com uma charanga de música e, depois, o hino nacional, aparecendo o Cunhal, em apoteose, como a grande vedeta da tarde. Aí, irritei-me um bocado, confesso.
Mas, enfim, fiquei compensado por ter falado para aquela imensa multidão, tentando imaginar quantos socialistas haveria ali naquele enorme mar de gente. Seriam poucos? Tive, contudo, algum êxito, as minhas palavras entraram nas pessoas - senti-o -, fui muito aplaudido. Depois veio a charanga, o Cunhal, que fez um discurso meditado, de tese. Então, percebi que ele começava a ter uma ideia do que poderia fazer, mas não a que depois veio a conceber. Essa, julgo, só a formulou muito depois...

P. - Entretanto é nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros...
R. - Fui convidado para ministro pelo general Spínola. Depois de ter insistido com o Rego - ele começou por querer o Rego! - para primeiro-ministro. Tentou depois o Miller Guerra e, a seguir, o Pereira de Moura, e foi, finalmente, o Palma Carlos. Embora achasse essa escolha algo de extraordinário, pensei que estaria bem: era uma figura respeitada, conhecida, que sempre fora da oposição - mas não um grande lutador contra a ditadura -, alguém com bom senso, prestígio e bom perfil. Mas não tinha conhecimento das realidades políticas subjacentes, que então se viviam, nem dos políticos que integravam a sua equipa, nem das lutas que, entre si, travavam, nos bastidores.
Sá Carneiro e, depois, Magalhães Mota surgiram no Governo sem eu saber como, só os conhecia de nome, da ala liberal. Quanto a mim, a ideia inicial era ser ministro sem pasta, como Sá Carneiro, Cunhal e Pereira de Moura; mas eu disse logo, ao Spínola, que preferia ser ministro dos Negócios Estrangeiros. Aliás, Spínola havia-me dado já o encargo - antes da formação do Governo - de fazer um périplo pelas capitais europeias para obter o reconhecimento da Revolução, o que aconteceu com assinalável êxito.
Impus duas condições quando o general Spínola me convidou para o Governo: que o Zenha fosse ministro da Justiça e Cunhal ministro do Trabalho. Spínola não queria. Insisti, explicando que não podia aceitar que o Cunhal ficasse de fora, na oposição. As dificuldades seriam imensas; Cunhal exploraria isso a favor do PC, radicalizaria tudo, o Partido Socialista ficaria completamente queimado. Acabou por ceder. Mas daí resultou, não sei bem como, que Cunhal ficou ministro sem pasta, como os outros chefes de partido (excepto eu), e o Avelino Gonçalves seria ministro do Trabalho. Assim conseguiram meter logo dois.

P. - Entretanto, conhecia os militares? Quais?
R. - Nenhum, a não ser o Melo Antunes, da campanha de 1969. Perguntei ao Rego, ao Magalhães Godinho e a outros que estavam relacionados com o meio militar conspiratório quem era quem, quem seriam os mais próximos de nós. Não me esqueço de que, segundo eles, os mais moderados, os mais simpatizantes com os socialistas, com quem mais poderíamos contar, seriam o Vasco Gonçalves e o Martins Guerreiro!

P. - Quando chega ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, começa por fazer o quê?
R. - Não perdi um minuto. Comecei com uma velocidade enorme, no próprio dia em que fui nomeado. Sem esperar instruções de ninguém. Tranquilizei os diplomatas: nas Necessidades não haveria saneamentos. E parti para Dakar, para obter o cessar-fogo na Guiné e parar a guerra...

P. - O tenente-coronel Melo Antunes disse-me há uns meses, numa entrevista, que se entendeu no MFA que ele próprio ficaria com a descolonização de Angola e Moçambique a seu cargo e o dr. Mário Soares com o resto, ou seja, São Tomé, Guiné e Cabo Verde. Em face disto, pergunto-lhe como é que foi essa administração entre os dois? Quem fez o quê?
R. - Eles podem ter dito e respondido o que quiseram, no MFA, mas não me disseram nada. Não tive nenhum contacto com eles, nessa base, nem fiz com eles qualquer compromisso, nesse ou noutro sentido.

P. - E Spínola, que lhe disse para fazer?
R. - Quando me convidou para ministro dos Estrangeiros, disse-me: "Você conhece estas questões internacionais, como já provou, e portanto faça favor de ser ministro dos Negócios Estrangeiros." Não me deu instruções nenhumas. E o Palma Carlos ainda menos...

P. - Spínola queria que as coisas não corressem mal em África. Há-de-lhe ter dito qualquer coisa...
R. - Não me falaram em África, nessa altura. Eu é que comecei a tratar de África por conta própria e minha alta recriação. Por saber que era o problema-chave para o novo regime que desejava implementar.

P. - Começou por onde, como e com quem?
R. - Comecei, como lhe disse, no próprio dia da posse, 16 de Maio de 1974. Quando cheguei ao Palácio das Necessidades - onde entrei pela primeira vez -, tinha uma manifestação imensa: todo o pessoal diplomático que estava em Lisboa e todos os empregados do ministério estavam nas escadarias. Fiz logo ali, informalmente, um primeiro discurso: comigo não haveria nenhum saneamento, todos os diplomatas ficariam nos postos, haveria um movimento de transferências, porque a política externa ia mudar radicalmente, mas as pessoas não. Como o regime era democrático, iríamos estabelecer relações diplomáticas com todos os países, sem excepções.
Nessa altura, só tínhamos relações diplomáticas - e mesmo assim más - com poucas dezenas de países, os ocidentais, do Pacto Atlântico, e alguns da América Latina. Passaríamos a ter relações com todos os países do mundo, entraríamos de cabeça levantada na ONU, cumpriríamos as suas determinações, a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Voltaríamos a todas as organizações especializadas da ONU. Iríamos restabelecer o prestígio de Portugal no mundo, ter boas relações de vizinhança com Espanha, reforçar os laços de amizade com o Brasil, a Inglaterra e os Estados Unidos - três pilares tradicionalmente importantes da nossa política externa -, manteríamos com lealdade a nossa aliança na NATO. Iríamos abrir a nossa diplomacia aos países do bloco comunista e aos países do Terceiro Mundo porque - disse - passaríamos a respeitar o princípio da autodeterminação. E rematei: "Hoje mesmo parto para Dakar, onde vou encontrar Aristides Pereira", presidente do PAIGC, para tentar parar a guerra onde ela é pior.

P. - Como é que conseguiu isso num prazo tão curto?
R. - Negociei previamente com o Presidente Senghor, meu velho amigo, no quadro da Internacional Socialista. Mandou-me o seu avião pessoal para me levar a Dakar.

P. - Com quem foi?
R. - Fui com o Almeida Bruno e o Manuel Monge - por indicação do Spínola - e levei o meu sobrinho José Manuel Barroso. Curiosamente, o general Spínola também estava a fazer negociações com o próprio Senghor, tendo lá mandado o seu assessor João Diogo Nunes Barata e o Fabião. Não me disse nada, porém. Consegui a promessa de cessar-fogo nesse mesmo dia, sem condições...

P. - Sem condições?
R. - No pressuposto de que iríamos fazer a paz e, depois, se seguiria o processo de descolonização baseado no princípio da autodeterminação. Mas não esqueça de que a Guiné já era então um país unilateralmente independente, reconhecido por cerca de 80 países. Nunca mais houve realmente guerra, desde esse dia 16 de Maio de 1974. Foi um trunfo com que cheguei a Portugal. E, depois, continuei a estabelecer contactos com os movimentos nacionalistas com o objectivo de parar as guerras.

P. - Mas parar as guerras para depois acontecer o quê? Como seria o dia seguinte?
R. - Queria, antes do mais, assinar rapidamente o cessar-fogo nos três territórios coloniais onde havia guerra.

P. - Havia a mesma guerra em Angola, Moçambique e Guiné?
R. - Não, só havia guerra efectiva - e muitíssimo difícil para Portugal - na Guiné. Em Angola, não havia quase nada; e em Moçambique havia principalmente no Norte. Portanto, onde havia iminência de um colapso militar era na Guiné. Em mais nenhum sítio.

P. - Como me está a falar no cessar-fogo nos três sítios...
R. - Queria o cessar-fogo na Guiné, em Angola e Moçambique. E, para isso, comecei a fazer contactos com Angola. Com quem? Com Agostinho Neto, que encontrei no dia 2 de Maio de 1974, na Bélgica, por intermédio dos padres brancos belgas, com os quais eu estava em contacto desde o tempo do massacre de Wiriamu.

P. - Que disse a Agostinho Neto?
R. - Que queria assinar um cessar-fogo com os três movimentos nacionalistas que nos faziam a guerra e não se entendiam entre si. Contactei, através de Kinshasa, com o Holden Roberto e com o Savimbi, cujos delegados encontrei primeiro na Líbia - onde eles tinham uma delegação - e depois, de novo, através de Kinshasa - onde encontrei, pela primeira vez, o dr. Savimbi.

P. - Todos seguidos, os três?
R. - O primeiro foi com o Agostinho Neto, no dia 2 de Maio. Depois os outros foram durante os meses de Junho e Julho.

P. - Entretanto interrogava-se sobre o que estaria a fazer o major Melo Antunes?
R. - Não sabia sequer que Melo Antunes estava a trabalhar nessa matéria... Como ignorava que Spínola também tinha contactos pelo seu lado. Nunca se deram ao trabalho de me informar. E, porventura, o Partido Comunista também trabalharia, secretamente, pelo seu próprio lado. Simplesmente, eu fui avançando. O meu esquema era chegar ao cessar-fogo. E dava conta dos meus contactos ao Conselho de Ministros e ao já então Presidente Spínola.

P. - E depois?
R. - Depois daquele cessar-fogo, tão espectacular e rápido, na Guiné, comecei a verificar que havia um retrocesso por parte dos movimentos nacionalistas. Resistências. Concretamente, quando cheguei ao célebre "abraço de Lusaka", com Samora Machel.

P. - Porquê?
R. - Porquê? Porque eles diziam que não queriam assinar qualquer cessar-fogo sem saber o que viria a seguir! Questão que inicialmente o Aristides Pereira não me pôs, nem o próprio PAIGC. Embora as negociações com o PAIGC - à medida que eles iam tendo informações do que se passava em Portugal - fossem também endurecendo.
É verdade que, na primeira fase, as negociações foram fáceis, o cessar-fogo foi conseguido, a reunião de Dakar foi óptima. Combinámos outras reuniões para o após-cessar-fogo, em Londres, mas não foram conclusivas porque, entretanto, eles endureceram muito a sua posição, eram muito apoiados pela Argélia - aliás, estavam na Embaixada da Argélia em Londres. Eu, por sorte, conhecia bastante bem o embaixador da Argélia em Londres, que me ajudou muito. Então, eles propuseram que continuássemos na Argélia, onde as negociações já foram muitíssimo mais difíceis, sob a égide e com o apoio do Boumedienne.

P. - Mas estamos a falar de Aristides Pereira?
R. - Estamos a falar da Guiné. O Aristides Pereira nunca mais apareceu como negociador. Entretanto, em Londres e na Argélia, quem apareceu como principal negociador foi o Pedro Pires, pelo PAIGC. E, do lado português, começou a estar sempre o ministro Almeida Santos, com o qual fiz uma excelente equipa, a que pertenceu também o actual general Hugo dos Santos.

P. - Começou então a aperceber-se de que havia uma qualquer derrapagem?
R. - Apercebi-me de que os movimentos nacionalistas estavam a endurecer: não queriam somente o cessar-fogo, mas um compromisso, da parte do Governo português, de que, a seguir ao cessar-fogo, lhes seria dada a garantia a eles, sozinhos, de obterem a independência. Foi isso que bloqueou as negociações de Lusaka. O próprio Presidente Chissano me disse, recentemente - ele que foi um dos nossos interlocutores e o chefe da delegação, pelo lado de Moçambique, porque o Samora só aparecia em ocasiões solenes -, que tinha, nessa altura, informações mais concretas sobre Portugal e sobre o que se passava no interior do MFA do que as minhas...

P. - O que é que ele lhe disse recentemente?
R. - Disse-me que, quando eu estava a exigir certas garantias na mesa das negociações, ele sabia que eu não tinha força para as impor, porque os militares estavam mais adiantados e dispostos a fazer mais concessões do que eu.

P. - Quais militares?
R. - Os do MFA, naturalmente, com os quais ele tinha contactos.

P. - Quais?
R. - Sei lá.

P. - Chissano disse-lhe com certeza...
R. - O Chissano não me disse quais. Só me disse que tinha essas informações. Ele é muito discreto nessas matérias. Controlava o serviço de informações da Frelimo. Mas não é difícil de imaginar quais...

P. - Voltando ao célebre abraço de Lusaka...
R. - Isso prova, realmente, que aquilo que lhe disse o Melo Antunes é verdade! Na descolonização, eu fiz as negociações preliminares para a paz na Guiné, mas, na parte final de elaboração do acordo, quem teve mais trabalho de discussão foi o então ministro Interterritorial, Almeida Santos. Abri oficialmente as negociações com Angola nesse encontro com Agostinho Neto e, depois, com Holden e Savimbi - cuja consequência final, meses depois, foi a Conferência de Alvor. Mas nesse momento quem dirigia já tudo, pela parte portuguesa, era efectivamente Melo Antunes. No Governo de Vasco Gonçalves, era nesse sector a personalidade dominante. Mas, formalmente, só foi ministro dos Negócios Estrangeiros depois do 11 de Março.