Pedro Feytor Pinto

Entrevista conduzida por Batista-Bastos -  "Público" (1994)

ENTREVISTA COM PEDRO FEYTOR PINTO

Pedro Feytor Pinto, o medianeiro da revolução
"Nesse Dia Tinha Um Bilhete Marcado para Espanha"
 

No repousado ambiente do "hall" do Hotel Tivoli, ele diz-me que nunca se sentiu atraído pelas pretensas originalidades da política: prefere os jogos fascinantes da inteligência. Assevera que a sua vida esteve sempre animada pelo espírito de servir e que, ocasionalmente, a política o convocou para ser o protagonista de uma contingência. E assim foi. No dia 25 de Abril de 1974, ele, com apenas 36 anos, saiu do Palácio Foz para transpor os umbrais da história. Pedro Feytor Pinto.

No quartel do Carmo, onde se dirimia a questão do poder, ele foi o medianeiro entre o Governo cercado e os revoltosos que pretendiam realizar uma revolução sem sangue. Trabalhara e estudara na Suíça, provinha de uma família católica e conservadora, lia Shakespeare e Homero, podia-se-lhe cunhar a definição clássica: um jovem burguês liberal, doutor em leis, culto, intensamente marcado pelas análises iluminadoras, e que vivia na contradição de amar a liberdade, num país onde a liberdade fora decapitada. Os precedentes destes ideais advêm, necessariamente, das leituras e do comércio moral e ideológico com outros povos.
Diz: "Eu sei que a esquerda gosta mais de mim do que a direita. A direita tem dificuldade em classificar-me." Diz, sorri, encolhe os ombros, como que a demarcar uma inquieta independência intelectual. Pedro Feytor Pinto nunca dissimula, durante o nosso diálogo, uma peremptória capacidade crítica, escorada na mais subtil das ironias. Certas afirmações suas parecem exercícios paradoxais. Nada disso: são axiomas que contrariam as ideias comummente aceitas, e que revelam a nostálgica insatisfação de um homem com o seu tempo e consigo próprio.

BAPTISTA-BASTOS - Onde estava no 25 de Abril?
PEDRO FEYTOR PINTO - Estava em Lisboa, era director dos Serviços de Informação da Secretaria de Estado de Informação e Turismo, o que me permitia estar muito perto do presidente do Conselho de Ministros, o dr. Marcello Caetano. Aliás, tinha sido ele quem me fora buscar à Suíça para aquele lugar, e essa circunstância propiciava-me a incómoda situação de contactar directamente com ele. Isto de estar perto do poder é terrível, porque estamos mais informados, somos mais lúcidos, mas não detemos as rédeas do mando e, portanto, não podemos fazer inflectir as situações.
Voltei para Portugal em 1971 e estive na SEIT até 1974. Mas é interessante revelar-lhe que, nesse dia 25 de Abril, tinha um bilhete marcado para viajar até Espanha, onde iria encontrar-me com uns senhores de uma multinacional, que pensavam contratar-me, porque já se me manifestava um certo desencanto com a situação em Portugal.

P. - O senhor é o medianeiro entre os revoltosos e Marcello Caetano, que se tinha refugiado no Quartel do Carmo, com outros membros do Governo. Quem lhe confiou o desempenho desta missão, que iria revelar-se histórica?
R. - Nunca ninguém se escolhe. Aconteceu. Fui acordado às quatro da manhã, desloquei-me para o meu posto de trabalho, no Palácio Foz, às seis já lá estava, e comecei logo a contactar com directores de jornais e com muitos jornalistas, a fim de me inteirar dos desenvolvimentos da situação.
A certa altura, o secretário de Estado, que era o dr. Pedro Corte-Real Pinto (um homónimo meu, o que não deixou de gerar, depois, algumas confusões que eu procuro sempre aclarar, pois não tenho por hábito engalanar-me com penas que me não pertencem), reuniu-se comigo, a fim de sabermos o que devíamos fazer. Chegou-se à conclusão de que, como o dr. Pedro Pinto tinha uma boa relação com o general Spínola, seria sensato entrar-se em contacto com ele.
Entretanto, a mim, foi-me pedido que me deslocasse ao Quartel do Carmo, para receber uma mensagem do presidente do Conselho. É curioso que o dr. Marcello Caetano estivesse refugiado no Quartel do Carmo. Repare: é uma reminiscência do século XIX. E ainda hoje não sei quem escolheu aquele lugar, quem tomou aquela decisão de o Governo ir para o Quartel do Carmo.

P. - Há um pormenor curioso: em todas as fotografias, o senhor aparece com um volume, com uma espécie de "dossier" na mão. Documentos secretos?
R. - Não. Era simplesmente papel, para que o dr. Marcello Caetano escrevesse a tal mensagem. Afinal, a mensagem acabou por não ser escrita por ele, mas sim por ele ditada ao actual almirante Coutinho Lanhoso, na altura seu ajudante militar. Ora, quando eu chego a casa do general Spínola, ele considera o documento falso, pois não reconhecera no papel a caligrafia do dr. Marcello Caetano.

P. - Eis uma situação perfeitamente absurda.
R. - Esclareci, dizendo-lhe: senhor general, em termos de formação diplomática, este documento é uma nota verbal, ditada pelo presidente do Conselho. Spínola, porém, estava cada vez mais desconfiado. Então, tocou o telefone. Nesta convulsão toda, veja bem, os telefones continuavam a funcionar como se nada houvesse., o que não deixa de ser surpreendente: é tudo muito português... Falou, então, com Marcello. Depois, voltou-se para mim e disse: "O senhor presidente do Conselho confirmou o que acaba de me dizer." Respondi-lhe: "O surpreendente era que não confirmasse."

P. - Como eram as suas relações com Marcello Caetano?
R. - Eram muito afectuosas. Devo dizer-lhe que uma das minhas grandes tristezas é a de que ele ainda esteja no exílio. Aliás, em tempos, visitei o cemitério de São João, no Rio de Janeiro, e há um facto inevitável: ele foi um grande português, um grande jurista e um grande professor. Por uma só destas três razões ele já deveria ter regressado a Portugal.

P. - Não se esqueça de que foi ele quem determinou não ser sepultado em Portugal.
R. - Foi. Mas com uma grande amargura. Acho que ele ficaria contente, apesar de tudo.

P. - Conta-se que, quando o senhor entrou no Quartel do Carmo, havia membros do Governo que se tinham urinado e, até, borrado de medo. Nessa ocasião, Marcello Caetano ter-se-ia voltado para um dos ministros, para, gravemente, lhe dizer: "Tenha compostura." É verdade? P. - Não. Não. As pessoas estavam chocadas. Havia uma sensação de temor. Todos nós tínhamos a percepção de que era o fim. O fim de um período, de uma época histórica; fomos suficientemente lúcidos para sabermos isso. E, claro, havia pessoas que podiam temer, inclusivamente, pelas suas próprias vidas. Há um período de cerca de hora e meia, duas horas, que se está à espera de uma solução. Não vi ninguém em situações dessas como descreve. As pessoas portaram-se com a maior das composturas, de um lado e do outro. P. - Ao que julgo saber, enquanto o senhor ia para o Quartel do Carmo, o dr. Pedro Pinto instalava-se, tranquilamente, no Grémio Literário, a fim de almoçar.
R. - O dr. Pedro tinha uma relação de grande amizade com o dr. Salles Lane, secretário-geral do Grémio Literário, um sítio estrategicamente muito importante e, além do mais, comia-se lá muito bem.. Agora, dizem-me que não tanto. As coisas são o que são. E isso também é muito português.

P. - Que é feito do dr. Pedro Pinto?
R. - Ultimamente não tenho sabido muito dele. Mas sei que prosseguiu a sua carreira diplomática, como brilhante diplomata, e, repare, é outra das injustiças que se têm cometido sobre certas pessoas.: o dr. Pedro Pinto era um grande liberal, um homem de uma cultura excepcional, com um grande sentido do consenso, que ele utilizava e sabia utilizar... Bom, depois, as pessoas são levadas nas voragens da vida, são as circunstâncias... Sei que esteve doente, mas agora está bem, retirado, na reforma.

P. - Alguma vez teve medo, a caminho do Quartel do Carmo?
R. - Tive um segundo de medo. Um segundo... se calhar foi um minuto, ou dez minutos. Foi quando entrámos no pátio, eu e o dr. Nuno de Távora, secretário do dr. Pedro Pinto, e, contrariamente ao que esperava, o pátio estava completamente vazio e extremamente silencioso. Verificámos, então, que, do alto das janelas do primeiro andar do pátio estavam soldados da Guarda Republicana apontando-nos com as espingardas.
É uma situação absurda. De repente, passa-nos pela cabeça as imagens de uma vida. Um gesto em falso e... tudo se tornava imponderável e imprevisível. Mas também há uma reacção interessante: em certas circunstâncias, temos reacções que não sabemos de onde nos saem. Eu, que não fui militar, dei um grito: "Quero falar com o presidente do Conselho! Levem-me imediatamente à presença dele!"
E eles obedecem: os militares, perante uma pessoa que lhes dá uma ordem, eles obedecem, sobretudo numa altura em que estão à procura de soluções.

P. - É uma situação de grande tensão. E qual foi a consequência do seu grito?
R. - Apareceu um militar de quépi; não usava capacete de aço. Repare: é fácil falar com alguém que tenha um quépi, não é fácil falar com alguém que tenha um capacete de aço e uma arma na mão, obviamente. Levaram-me, então, à presença do prof. Marcello Caetano.
(Na Suíça, onde viveu durante sete anos, e desempenhou o cargo de leitor de Português em Genebra, estabeleceu contactos e fez amizade com militantes destacados do MPLA e da Frelimo. Entendia que o absurdo da situação nas colónias não podia ser um fim; antes de tudo, era um princípio. Mas princípio de quê? Do desmoronar de um mundo e do nascimento de outro? E Pedro Feytor Pinto faz-me esta surpreendente confidência: "Tinha-se-me metido na cabeça a ideia de que seria eu quem iria negociar a descolonização. Desejava salvaguardar o essencial: a presença humana, cultural e económica de Portugal nas nações emergentes." Um grande silêncio, agora, na conversa, como se cada um de nós estivesse a fazer a recorrecção do seu passado pessoal. Depois, um tropel de vozes, uma cavalgada de sombras antigas. Depois.)

P. - Depois da sua intervenção no Quartel do Carmo, como se desenvolve o seu futuro?
R. - Inicialmente, continuei o meu trabalho, no Palácio Foz; chegaram os representantes do MFA no dia a seguir. E cheguei a ser sondado para fazer parte do novo governo, o que era surpreendente, mas enfim... Eu era também muito amigo do então primeiro-ministro, o prof. Adelino da Palma Carlos, um caso fascinante de personalidade, pediu-me para ir a São Bento, falar com ele, e deparou-se-me um homem nervosíssimo, que só dizia palavrões, ele, que era habitualmente correctíssimo, e gritava que estava "sentado na cadeira daquele gajo"; "aquele gajo", naturalmente, era o Salazar. É fascinante como as pessoas reagem perante as circunstâncias.
Depois, há uma mudança: em vez de Firmino Miguel ir para primeiro-ministro, vai o coronel Vasco Gonçalves. Saí do Palácio Foz, ainda estive em Portugal até Agosto de 1975, a seguir fui para Espanha, onde trabalhei em diversas coisas. Regressei a Portugal, em 1981, para desempenhar o cargo que maior prazer me deu na vida: fui director de "O "Primeiro de Janeiro."

P. - Saiu de "O Primeiro de Janeiro", porquê?
R. - Ah! Isso é uma história muito complicada.

P. - Foi saneado?
R. - Ainda há muita gente viva que se envolveu nessa questão. É um dos grandes desgostos que tenho. "O Primeiro de Janeiro" era uma instituição notável, um grande jornal liberal, um grande jornal da burguesia do Porto. A família Pinto de Azevedo, proprietária do diário, tinha realizado um trabalho excelente - era o único jornal que, no tempo da Guerra Civil de Espanha, publicava os comunicados das duas partes em conflito...
Eu procurava fazer um jornalismo não sensacionalista, com um grande sentido de independência, que era a marca da casa. Entendeu-se que eu não era a pessoa para aquele lugar, e saí. Em "O Primeiro de Janeiro" nunca tive problemas à minha esquerda; tive bastantes à minha direita.

P. - Que contas tem a ajustar com o 25 de Abril?
R. - Nenhumas.

P. - De qualquer das formas, o senhor, antes e depois do 25 de Abril, tem exercido funções de confiança política. Politicamente, está mais perto de quê ou de quem?
R. - É muito difícil situar-me politicamente. Não sou por pessoas, sou por ideias. Houve uma pessoa, que eu prezo, que é o general António Ramalho Eanes, que me convidou para entrar na fundação do PRD, e eu não aceitei, dizendo-lhe que, embora o estimasse muito, e ele tivesse prestado ao país serviços inestimáveis, com coragem e honradez, a minha inclinação cultural era por ideias e não por pessoas. E adiantei-lhe: olhe, sou tão liberal, tão liberal, que me considero um anarquista moderado.

P. - Dos militares de Abril que conheceu, qual aquele que maior desilusão lhe causou?
R. - Ah!, bom. Há um, que não é um militar de Abril, mas que foi uma desilusão enorme. Lamento ter de dizer: é o senhor general Spínola; a maior desilusão que tive.

(Há pouco tempo, no escritório de Daniel Bessa, encontrou-se com Otelo Saraiva de Carvalho. Otelo não o reconheceu. Pedro Feytor Pinto identificou-se. E Otelo: "Ah!, o homem do 25 de Abril!" Feytor Pinto respondeu-lhe: "Há aí um engano comovente: o homem do 25 de Abril é o senhor!" Conta este e outros episódios com a amenidade de quem entende que a história e as suas personagens são, ocasionalmente, imagens devolvidas de uma farsa inexorável. Despreza a traição, irrita-se com a estupidez, enerva-se com a mediocridade impante. E diz: "O povo português é extremamente civilizado. Não merece o que, amiúde, lhe impõem.")

P. - Há um Portugal que morre, ou que renasce, com o 25 de Abril?
R. - Não, repare... não... O período de 1926 a 1974 também é história de Portugal. O regime caiu e acabou no dia em que o dr. Salazar caiu da cadeira. O dr. Marcello Caetano, intelectualmente, era mais um homem de direita do que o dr. Salazar. O dr. Salazar era profundamente pragmático e frio. Tinha uns limites entre os quais se movia, às vezes até sem pudor, muito friamente. O dr. Marcello Caetano tinha sido um homem estruturalmente de formação de direita, em que entravam todos os conceitos maurrasianos da Action Française.
Simplesmente ele sabia que, em 1968, não podia governar nas mesmas circunstâncias em que tinha governado o dr. Salazar. Portanto, aquela história que se contava, segundo a qual ele punha o pisca-pisca para a esquerda e virava para a direita, é porque as decisões dos governantes, a maioria das vezes, são tomadas em função dos seus atavismos. Aí, ele ia para a direita. Naquelas mais pensadas (o problema do Ultramar, da liberdade de imprensa, da liberdade de associação, com a fundação da SEDES, tudo isso), ele procurava inflectir para a esquerda, exactamente porque ele era um homem inteligente, era um intelectual.
O drama do dr. Marcello Caetano é o drama dos intelectuais na política: nunca foi capaz de rejeitar um bom argumento que eu lhe desse.

P. - Conversava muito com ele?
R. - Intelectualmente, ele não rejeitava um argumento que se lhe transmitisse. Tivemos muitíssimas conversas sobre a descolonização. E no dia 1 de Dezembro de 1971 ele perguntou-me: "O que é que você acha se eu pronunciar a palavra autodeterminação?" Eu respondi-lhe: "Deixa de ser presidente do Governo, mas passa a sê-lo mais tarde."

(Despedimo-nos na tarde. Vai apanhar o avião para Madrid, onde vive actualmente, quadro superior do Instituto do Comércio Externo de Portugal. As mesmas funções irá, em breve, desempenhar na Argentina. Olha para a tarde clara, pressinto-o a imaginar o que quer que seja, para lá do horizonte da sua própria memória. Diz-me: "Lisboa é uma cidade que só exprime tudo aquilo que faz sentido. Por exemplo, o sentimento da paixão." Sorri. Ainda me acena, no interior do táxi que o leva para o aeroporto. Vai a tarde muito clara.)