Cap 15 FINALMENTE SALVO
- Afinal, expliquem-nos o que vêm aqui fazer. Não acham um sítio perigoso para andarem a passear? E parece que escolheram o dia! Nem de propósito!
- Andam a fugir a alguém? Se calhar fizeram asneira grossa! - disse o outro, divertido.
- Olha, olha! - a cabeça da Ana assomava naquele momento no meio das telhas. - Outro! Mas afinal quantos são vocês? Um batalhão inteiro? Vêm fazer outra revolução cá em cima, no telhado?!
Os miúdos, sem saber muito bem o que dizer, estavam calados que nem uns ratos. Sentiam-se apanhados de surpresa em surpresa, e não sabiam muito bem que volta haviam de dar à situação, para conseguirem o que tanto queriam.
Foi Ana que os tirou daquela situação aflitiva. Encheu-se de coragem e lá conseguiu trepar até cima. O telhado era muito pouco inclinado e a superfície rugosa das telhas oferecia uma certa segurança.
- Dizemos-lhe já o que estamos aqui a fazer se nos explicar o que se está a passar ali em baixo! - exclamou, de braço esticado, apontando, com o dedo, a Praça mas sem olhar para baixo. Pelo sim, pelo não ... Sempre eram quatro andares!
- Então tu não sabes? É uma revolta! Estamos aqui para mudar o governo ... - respondeu o primeiro soldado.
- É mas é uma revolução! - interrompeu o segundo soldado. - Viemos dar liberdade ao povo e acabar com a guerra nas colónias! Aquele ali - e apontava para baixo, mostrando o soldado do megafone - é o nosso comandante: O capitão Salgueiro Maia! Os oficiais combinaram tudo e nós, apoiámo-los! - e os olhos brilhavam-lhe de orgulho. - Todos queriam vir ...
- Ora! - resmungou o primeiro. - Eu vim porque os meus colegas vieram e eu não quis ficar mal, mas...
- Mas o quê?! Só veio quem quis. À uma e tal da manhã acordaram-nos e explicaram-nos que era para marchar sobre Lisboa e acabar com esta situação em que estamos. Ninguém foi obrigado a vir!
- E já viram?! Mal sabemos atirar. Só temos três meses de instrução. Se começamos aos tiros vamos é acertar uns nos outros! - continuou o primeiro soldado.
- Se calhar, o que tu tens é medo!
- E os carros?! Estão a cair de velhos! Até está ali um com a metralhadora presa por arames!
- E isso que interessa?! Não vês que temos o povo todo do nosso lado? - e o segundo soldado continuou, voltando-se para os miúdos: - Quando chegamos a Lisboa tínhamos o moral a cem por cento. Quando vimos o povo todo a apoiar-nos, passou para mil por cento!
- Pois é, mas o povo vira com facilidade. Hoje dá palmas, amanhã lembra-se tanto de nós como do D. Afonso Henriques!
- Que importa! Estamos a fazer uma revolução justa e isso é que é importante! - rematou o segundo soldado. - Por mim, já sonhava com isto há muito tempo!
"Meu Deus!" pensou o Filipe, com o coração aos saltos. "Se calhar, agora o pai já vai poder voltar! Quem dera que o meu irmão já soubesse!"
- Nós vimos muita tropa no Terreiro do Paço. Também estão do vosso lado? - perguntou o Luís.
- Claro, claro! Estão quase todos do nosso lado!
- E como é que combinaram vir todos para Lisboa, ao mesmo tempo? - quis saber a Ana.
- Não estamos todos em Lisboa! Há tropas amigas a movimentarem-se por todo o País. Mas saímos dos quartéis todos à mesma hora, para a surpresa ser maior!
- Mas como conseguiram? - insistiu a Ana.
- Isso foi um segredo que só os oficiais tinham. Nós somos de Santarém. No caminho para Lisboa é que soubemos que o primeiro sinal foi dado pela rádio. O locutor disse: "Faltam cinco minutos para as vinte e três horas". Era o sinal combinado!
- Nós ouvimos, nós ouvimos! - gritaram a Ana e o Luís. O Filipe, esse, estava tão absorto a pensar no regresso do pai que já nem ouvia nada.
- Ouviram? Claro, muita gente deve ter ouvido mas só os nossos oficiais sabiam o que queria dizer: "Preparar!"
- E depois? - perguntaram, de novo o Luís e a Ana.
- Depois, por volta da meia noite e meia hora, na Rádio Renascença, passaram uma canção de um cantor que já esteve preso várias vezes. Foi a "Grândola, Vila Morena". Era outro sinal! Mal ouviram a "Grândola", todos os oficiais revoltosos apoderaram-se dos quartéis e foram falar com os soldados. De aí em diante ... já nada nos podia parar!
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- E o governo?
- Está ali, dentro do Quartel do Carmo.
- Ora, ora! Ali dentro só está o Marcello Caetano e um ou dois ministros! - disse o primeiro soldado. - Os outros não se sabe ao certo onde estão ...
- Se for como tu dizes, devem andar fugidos! - interrompeu o segundo soldado, com um sorriso vitorioso. - Mas quando lhes deitarmos a mão, não lhes vamos fazer mal. Não ouvem o nosso capitão sempre a repetir que não quer magoar ninguém?! Portugal agora vai passar a ser um país ... lindo! - e os olhos humedeceram-se-lhe.
- Vamos a ver ... Quem viver, verá! - sentenciou o primeiro soldado, fazendo uma cara céptica.
- E quem é aquele, encavalitado em cima da guarita? Não pode ser da tropa! - concluiu o Luís.
- Ah, aquele! Não sei o nome dele mas está sempre a aconselhar o pessoal a ter calma ... Sabes que há muitos civis que vieram dar uma mãozinha! Até nos disseram quais eram os melhores sítios para vigiar, aqui no Largo ...
- Estão mas é para aí a empecilhar ... Tomara que esta história acabe depressa! - desabafou o primeiro soldado.
- Não vês que o povo ansiava também por isto há muito tempo? Nunca mais aprendes! Isto é mais uma festa que uma revolução! Estamos todos unidos ... - disse, entusiasmado, o segundo soldado.
- Ora, ora, ora! - resmungou o outro.
- Filipe! Que é que tens? Estás tão calado! - exclamou a Ana, estranhando o silêncio do amigo.
- Hummmmmm ...
- Deixa lá, já vais ver o teu irmão!
- Sim ... é isso ...
- E vocês afinal ainda não nos explicaram a razão por que vieram passear para o telhado!
- É um bocado complicado - começou o Luís. - Mas pensando bem ... vocês até nos podiam ser muitíssimo úteis!
- É verdade! Ao fim e ao cabo estão aqui em cima, de braços cruzados ... Vêm a calhar para nos dar uma ajuda!
E os três contaram aos soldados a história em que se tinham metido.
- Porque é que não foram à polícia em vez de andarem nesta dança? O vosso amigo pode estar a correr perigo! - ralharam os soldados.
- Pois é, mas agora já não há remédio! - respondeu o Luís, para simplificar.
- E como vêem, temos de actuar o mais rápido possível!
- Lembrei-me de uma coisa ... Se tirássemos umas telhas, entrávamos logo na casa! Se formos pelo alçapão das escadas, eles podem ver-nos e têm tempo de fugir, enquanto descemos! - lembrou o Filipe.
- Boa ideia! - aprovou o Luís. - Acham que é muito difícil abrir um buraco no telhado? - perguntou aos soldados.
- Não, afinal de contas é só deslocarmos algumas telhas ...
E, pousando as metralhadoras junto da chaminé, começaram a deslocar as telhas no sítio que o Luís sugeriu.
- O andar ... só tem uma habitação? - lembrou Ana, a medo.
- Só faltava agora descobrirmos que, naquele maldito bloco, a direcção estava incompleta ... E abrirmos um buraco na casa do vizinho! - desabafou o Luís à guisa de resposta.
- Credo, não deitem azar!
- Cá está o buraco aberto. Dá directamente para o forro. Agora um de vocês tem de entrar e procurar uma abertura para a casa ... Ou julgavam que as telhas eram o tecto da sala de visitas? - cochichou um dos soldados.
- Cuidado! Vocês sabem no que se estão a meter? Pode ser muito perigoso! - avisou o outro.
- Também estamos a fazer a nossa revolução! - respondeu-lhe o Luís, sorrindo.
- Se é assim ... - respondeu-lhe o segundo soldado, olhando-o com simpatia. - Tenho pena de não vos poder ajudar mais, mas não podemos abandonar os nossos postos ...
Quase sem ninguém dar conta, o Filipe esgueirara-se pelo buraco entre as telhas. Estava escuro e muito sujo, no forro, mas teve o bom senso de esperar que os olhos se habituassem à escuridão, e foi marinhando como um gatinho até encontrar um alçapão de madeira tosca. Há muito tempo que não devia ser aberto, pois apesar de ter conseguido dar a volta à maçaneta foi impossível levantá-lo. Parecia ter as bordas coladas ao forro.
- Luís! Preciso da tua ajuda! Encontrei o alçapão mas não consigo levantá-lo! Está pregado ao tecto, cheio de lixo à volta ...
A cara do Filipe emergia, enfarruscadíssima, do buraco no telhado.
- Peguem o meu canivete! - ofereceu um dos soldados. - Dá jeito para raspar ...
- E esta faca do mato ... dá sorte! Comprei-a a um sargento que a trouxe da Guiné e nunca mais me separei dela! - disse o outro.
O Luís e o Filipe mergulharam na escuridão. Tentando não fazer barulho, conseguiram chegar ao alçapão. Os momentos seguintes eram decisivos: se dessem por eles estava tudo perdido!
Muito devagarinho começaram a raspar as bordas com o canivete e a faca de mato que os soldados lhes tinham emprestado. Foi difícil, de qualquer maneira, abrir o alçapão, porque este, além do lixo acumulado pelos anos, estava muito perro e empenado. Mas valeu a pena!
Mal conseguiram abrir uma frincha, o Filipe teve de fazer um esforço para não gritar de alegria. Mesmo por baixo do alçapão, sentado numa cadeira, de pés e mãos amarrados, estava o Nuno! Até que enfim!
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