Coleções - Legislação - Spínola é proclamado Presidente da República (15/5/74)

SPÍNOLA É PROCLAMADO PRESIDENTE DA REPÚBLICA
(15/5/74) 

PROCLAMAÇÃO

De harmonia com a decisão da Junta de Salvação Nacional que assumiu a direcção dos destinos da Nação, a partir do dia 25 de Abril último, tenho a honra de proclamar Presidente da República o general António de Spínola que exercerá as suas funções com os poderes semelhantes aos previstos na actual Constituição até às eleições gerais a realizar dentro de um ano.

PALAVRAS PROFERIDAS PELO GENERAL COSTA GOMES
SENHOR PRESIDENTE DA REPUBLICA:

Os jovens do Movimento das Forças Armadas realizaram em 25 de Abril a mais digna Revolução da História Contemporânea.
A Junta de Salvação Nacional, por eles escolhida, em acto de inspiração e justiça elegeu V. Ex.ª para representante maior do Povo de Portugal.
As minhas palavras não adicionarão um átomo à sua estatura profissional de soldado ou ao seu perfil de político e homem de letras.
Recordamo-lo como capitão empreendedor que restabeleceu a Revista de Cavalaria e a dirigiu durante tantos anos.
Vemo-lo consagrado no Norte de Angola como chefe militar, tão ousado e valoroso que o adversário o considerava invulnerável às balas.
Reconhecemo-lo no Sul, em tarefas de promoção social, apóstolo da paz nas relações com Cuanhamas e Cuamatos.
Encontramo-lo na Guiné tão sereno frente ao perigo como humano na acção governativa; do irmão Spínola falam os Guinéus que o veneram.
A culminar uma longa bibliografia polifacetada, surge na plenitude do seu talento político-literário o Livro da esperança nacional que foi o ideário da Revolução das Flores.
Que Deus o proteja para Bem do Povo e glória de Portugal.

DISCURSO DE ANTÓNIO DE SPÍNOLA

Portugueses: Ao ser investido nas funções de Presidente da República por decisão da Junta de Salvação Nacional, sinto-me no dever de me vincular ao ideário do Movimento das Forças Armadas, à luz do qual se cumprirá a tarefa de construção do futuro e por cuja execução assumo, perante o País, o mais solene compromisso.
São para as Forças Armadas as minhas primeiras palavras. Vilipendiadas pelas atitudes servis de alguns dos seus chefes, injustamente acusadas dos erros dos políticos, violentadas a coberto do seu elevado sentido da honra e do dever, quase destruídas, em suma, no que representavam de instituição eminentemente nacional, as Forças Armadas, pela mão dos seus quadros mais jovens, souberam apesar de tudo mobilizar a sua última reserva moral colocando-se ao serviço da Nação, de que há décadas haviam sido desviadas.
A Pátria deve a hora grandiosa que hoje vive a esses jovens que souberam manter acesa a chama do dever, e que, na nobreza do seu idealismo, arrastaram com eles à vitória o Povo Português. Na consciência de que a plenitude da soberania pertence à Nação, cabendo às Forças Armadas a sua instante defesa, o Movimento das Forças Armadas, em rasgo de serena audácia e perfeita isenção, restituiu Portugal ao seu Povo. Jamais os Portugueses poderão esquecer o verdadeiro alcance da gesta libertadora destes magníficos militares que salvaram o País da tragédia nacional para que se caminhava. Devemos ao seu patriotismo e ao seu sentido do dever como servidores do Povo sem partidarismos, o momento histórico que a Nação vive. E por mais eloquentes que sejam as palavras, só a História e os vindouros saberão julgar toda a extensão e incomensurável serviço prestado à Pátria e ao Povo Português do Movimento das Forças Armadas.
Vividas as primeiras semanas de natural explosão emotiva, pontuada todavia por alguns excessos lesivos do clima de tranquilidade cívica cuja firme salvaguarda se impõe, o País vai entrar numa fase de reflectida ponderação, iluminada pelo reconhecimento de que democracia não significa anarquia, e de que a confusão dispersiva de actuações descoordenadas não ajuda, de modo algum, a construção do futuro que o Povo Português anseia.
O desrespeito pela ordem social decorrente de uma sólida fundamentação democrática e do perfeito funcionamento de instituições representativas, foi sempre, em todos os tempos e latitudes, a porta por onde entraram os ditadores. Bem gostaríamos de a ter encerrado definitivamente; mas só o conseguiremos quando cada português impuser a si próprio, em livre expressão da sua capacidade para o exercício da cidadania, o mais alto padrão de disciplina cívica, sem o qual jamais poderá edificar-se uma autêntica democracia.
Impõe-se-nos, antes de mais, fazer um profundo exame de consciência, para concluir se será, de facto, democrático o processo esboçado de decidir e aplicar decisões fraccionarias antes de o Povo definir, em consenso, o tipo de sociedade em que deseja viver. E que a democracia e o governo do povo, pelo povo e para o povo, não podendo entender-se senão na mais inteira liberdade de expressão, associação, reunião, debate e votação das decisões colectivas pela via de instituições legítimas, logo seguida da mais estrita observância das decisões assim tomadas. Creio firmemente ser essa a única forma de vida política onde cabe a dignidade humana; de resto, foi em nome desse ideal cívico que as Forças Armadas libertaram o País.
A democracia não se conquista; talvez mesmo se não construa; a democracia vive-se. E, assim, o nosso propósito não pode ser outro senão o lançamento de bases sólidas para essa vivência; propósito aliás claramente expresso no programa do Movimento das Forças Armadas que vale a pena evocar nos seus traços essenciais.
Reitero por isso o programa traçado, tendente a promover a estruturação partidária e associativa em clima da mais completa abertura, devendo o poder instituído assegurar que as liberdades de uns não sejam ameaçadas por excessos de outros. Empenhar-nos-emos em evitar, por todos os meios, que o processo de politização dos cidadãos possa ser entravado ou comprometido, constituindo ponto firme do nosso programa o desmantelamento do aparelho repressivo do antigo regime. Mas os caminhos que o País haverá de trilhar terão de ser definidos por instituições democráticas verdadeiramente representativas e solidamente implantadas, através das quais todos os cidadãos possam exprimir-se, onde todas as correntes de opinião se façam ouvir e em cujo topo se encontre, em lídima expressão final da soberania, uma Câmara Legislativa constituída por mandatários incontestáveis do Povo português. Serão as decisões dessa Câmara, depois de referendadas, que definirão o nosso estatuto político, económico e social. E só então nascerá, de facto, o Portugal renovado que ambicionamos.
Entretanto, os nossos esforços centrar-se-ão no restabelecimento da paz no Ultramar; mas o destino do Ultramar português terá de ser democraticamente decidido por todos os que àquela terra chamam sua. Haverá que deixar-lhes inteira liberdade de decisão; e em África, como aqui, evitaremos por todas as formas que a força de minorias, sejam elas quais forem, possa afectar o livre desenvolvimento do processo democrático em curso.
Nesta linha de pensamento, desejamos firmemente, em plena corporização dos ideais do Movimento triunfante, que a paz volte ao Ultramar. E pensamos que o regresso dos partidos africanos de emancipação ao quadro da actividade política livremente desenvolvida será a prova cabal do seu idealismo e o mais útil contributo para o pleno esclarecimento e a perfeita consciencialização dos povos africanos, em ordem a uma opção final conscientemente promovida e escrupulosamente respeitada.
Na ordem interna, empenhar-nos-emos em tornar representativas as organizações políticas, sociais e económicas, reparar injustiças sociais e cívicas, recuperar valores e assegurar o justo equilíbrio nas relações de trabalho.
Para tanto, haverá que acelerar o ritmo de expansão económica; garantir, dentro dos sãos princípios da ordem democrática, a completa liberdade sindical dos trabalhadores e do patronato; desmantelar o antigo controlo corporativo e aniquilar os seus estrangulamentos; criar um clima propício à constituição de partidos e associações político-económicas que exprimam todas as correntes de opinião; promover a livre eleição da nova Assembleia Constituinte; sujeitar a referendo a Lei Fundamental que definirá o estatuto de livre escolha do Povo Português; e finalmente entregar o Poder às novas instituições livremente constituídas e como tal perfeitamente legitimadas.
É evidente que terá de proceder-se, em paralelo, ao saneamento moral do País e à reformulação de todo um complexo de conceitos de justiça social, delineando as bases em que irá moldar-se o perfil da nova sociedade portuguesa.
Na ordem externa, manteremos os nossos compromissos de natureza política, económica e militar, para os quais não há, de momento, outras razões limitativas senão as claramente decorrentes do circunstancialismo do momento que vivemos e da salvaguarda de riscos imediatos.
Entendo não dever ir mais longe nas minhas afirmações, pois a partir de amanhã o País terá à sua frente um Governo Provisório a quem será entregue a prossecução das tarefas que hão-de corporizar o ideal proclamado. Na verdade, se o Movimento das Forças Armadas libertou o Pais dos que agiam em seu nome mas sem mandato, não faria sentido que, ao ultrapassar o quadro traçado, voltássemos afinal ao mesmo sistema de decisões unilateralmente tomadas, embora sob outro rótulo e pela mão de outros poderes.
Nem se argumente que tais tarefas seriam legitimadas pela vontade do Povo expressa nas gigantescas demonstrações cívicas a que o País assistiu. Será bom recordar que os ditadores começaram sempre reformando à margem das instituições sob o eufórico aplauso popular. Foi aliás essa forma demagógica de transformar o Poder em tirania com o apoio das massas em delírio que esteve sempre na origem dos regimes totalitários. Ao contrário, o propósito que nos anima é o de criar a defender instituições democráticas estáveis, na serenidade de espírito com que devem tomar-se as decisões por que há-de reger-se um povo.
Competirão, portanto, ao Governo Provisório as tarefas administrativas necessárias à vida quotidiana que não pode parar, e a ingente missão de, a par da construção do bem-estar económico e social, edificar e consolidar a democracia através da qual o Povo Português encontrará a autêntica liberdade.
Terá de ser, assim, um Governo sem partidos, porque é de todos os partidos; sem tendências, porque nele cabem todas as tendências; sem programas, porque o seu programa é o do Movimento das Forças Armadas. É nesse sentido de emanência nacional que se enquadra; e a essa luz governará a Nação até que esta tenha ultimado quanto carece para governar-se a si própria, no pleno exercício da soberania que enfim se lhe devolve.
A realização desta gigantesca tarefa de preparação e de recuperação do País tem necessariamente de basear-se na estabilidade social e na expansão económica, impondo-nos serenidade cívica e a obrigação moral de uma total entrega ao trabalho intenso em todos os sectores da vida nacional.
Não podemos, de forma alguma, deixar que pressões de qualquer ordem venham perturbar o nosso processo de evolução; e à imagem do Portugal Renovado que estamos construindo teremos de associar a afirmação de plena capacidade para evoluir politicamente sem convulsão social nem quebra do ritmo da formação de riqueza que a todos aproveite. Daí justificar-se, mais do que nunca, o apelo ao trabalho no sentido de um aumento de produtividade, sendo esta, de momento, a mais instante das reivindicações; apelo, por isso, à consciência colectiva do operoso Povo Português que por certo não desejará a sua libertação ensombrada pelo espectro desolador de uma crise económica com todo o cortejo de privações e sob o signo do desemprego.
E tão-pouco será em clima de ódio cego e de obstinação vingativa sobre os responsáveis dos males passados que construiremos a imagem que há-de restituir-nos, perante o mundo, o lugar que nos cabe no contexto das Nações. Para tanto, impõe-se que sejamos coerentes e se entregue à isenção da Justiça o apuramento de responsabilidades pelos crimes e iniquidades cometidos à sombra do velho regime. E bem desejaria que, nesta hora de arranque para uma nova ordem, esse apelo à coerência encontrasse eco no espírito de todos os Portugueses, pois o Movimento das Forças Armadas triunfou para que as decisões arbitrárias e os anteriores métodos de repressão fossem banidos da vida nacional, e não para que houvesse apenas simples mudança de executores.
São estes os traços gerais da missão em que me empenharei durante o mandato que o Movimento das Forças Armadas me confiou. Tomo perante o Povo Português a responsabilidade do seu integral cumprimento; e faço-o de consciência tranquila, pois jamais a vida política se me revelou aliciante. Servirei o País com a mesma santa devoção com que sempre o servi, como soldado que me orgulho de ser; e desejo por isso concluir, com a afirmação de que a minha presença neste lugar deverá ser por todos entendida, antes de tudo e apenas, como firme e cabal garantia de que não serão traídas as esperanças despertas nos corações portugueses na manhã de 25 de Abril. Cumprida essa missão, e entregue o testemunho ao Presidente da República que o País livremente escolher, recolherei de novo ao seio das Forças Armadas de que nunca me afastei, e onde irei reintegrar-me com a consciência de ter cumprido o meu dever.