Coleções - Legislação - Posse do I Governo Provisório (16/5/74)

POSSE DO l GOVERNO PROVISÓRIO
(16/5/74) 

DISCURSO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA
De acordo com os prazos fixados no programa do Movimento das Forças Armadas entra hoje no exercício das suas funções o Governo Provisório que assegurará ao País a estruturação de uma sociedade democrática.
E ao conferir mandato ao Governo Provisório desejaria, antes de mais, saudar na pessoa de Vossa Excelência, Senhor Professor Adelino da Palma Carlos, o Primeiro-Ministro da nova República, saudação que alargo a Vossas Excelências, Senhores Ministros, Secretários e Subsecretários de Estado. Pesam sobre Vossas Excelências, a partir deste momento, as maiores responsabilidades que alguma vez tocaram a governantes deste País. Aliciante empresa a de preparar a edificação do País novo que Portugal há-de ser. Mas não nos iludamos um só instante quanto à premência de mobilizar todas as nossas capacidades numa permanente exigência de multiplicação pessoal, em ordem ao cabal cumprimento dos objectivos propostos.
Constam esses objectivos do programa de governo de que o País tomou já conhecimento, mas creio valer a pena aprofundá-los em ordem a eliminar-lhes espaços de indeterminação. Haverá em primeiro lugar que pôr em destaque o imperativo de o Governo Provisório ser um Governo de unidade nacional, característica que impõe aos seus membros uma actuação de absoluta independência face aos programas doutrinários dos grupos políticos com que muito legitimamente se possam identificar. Só à luz deste espírito será possível consolidar a democracia em Portugal, na livre corporização das instituições em que há-de consubstanciar-se. Situa-se, portanto, para além do âmbito dos poderes do Governo Provisório toda a decisão sobre as opções fundamentais que só à Nação competem quando para tanto estiver organizada, o que terá de suceder no prazo de um ano.
Nesse lapso de tempo, cabe ao Governo reparar as sequelas de meio século de paternalismo, e abrir campo à completa realização político-social dos cidadãos dentro de uma sociedade onde não tenham lugar desequilíbrios contrários à condição humana, e onde todos os portugueses participem na gestão dos seus destinos.
Situar-se-á nesta linha de governo a promulgação de medidas legislativas que consolidem o efectivo exercício dos direitos e liberdades fundamentais, tal como se encontram definidos em declarações universais. Mas não poderá esquecer-se que a democracia não é de modo algum a mera conversão dos oprimidos em opressores, dos usurpados em usurpadores, da prepotência de minorias em prepotência de maiorias. Ela é, acima de tudo, a garantia dos direitos e liberdades individuais, só possível em clima de respeito mútuo, onde não cabem atentados contra pessoas, opiniões, bens e direitos legítimos; atentados que terão de ser rigorosamente reprimidos, venham de onde vierem. Será ponto essencial da acção governativa a repressão de todos os abusos como crimes contra a reconstrução nacional, passíveis portanto de julgamento no âmbito da justiça criminal comum.
Além do mais, deve ter-se presente o facto de que todo o excesso cometido por pessoas ou grupos de que resulte ofensa dos direitos de terceiros redunda em reforço da argumentação totalitária, sempre pronta a denunciar a falta de preparação do povo português para assumir a democracia.
A esta luz e prioritariamente, haverá que tomar medidas tendentes a institucionalizar a organização dos partidos políticos; elaborar a nova lei eleitoral e preparar as futuras eleições legislativas; e fundamentar a nova orgânica político-administrativa da Nação sobre autarquias locais autenticamente constituídas, assentes na responsabilidade dos munícipes e na sua participação directa na esfera política dos respectivos órgãos.
Simultaneamente, será preparada e promulgada legislação básica atinente a contemplar as condições de vida e de integração social dos trabalhadores, e da sua participação efectiva na vida económica nacional.
Terá de substituir-se a orgânica corporativa por um sistema institucional que, desde a empresa ao agregado de trabalho, permita o contacto e o entendimento indispensáveis entre agentes económicos; definir-se-ão os parâmetros da liberdade sindical que defendemos, outorgando-se aos trabalhadores os instrumentos de afirmação consagrados nas demais sociedades evoluídas do mundo em que vivemos. Legislar-se-á sobre salário mínimo e produtividade mínima; estruturar-se-á progressivamente um sistema integrado de segurança social que garanta de facto a assistência na terceira idade e na doença, e a reforma e protecção do trabalho feminino - objectivos a conseguir através de um serviço nacional adequadamente estruturado. Tais medidas irão contemplar igualmente a função pública, em relação a cujos trabalhadores se reconhece a inconsistência de quaisquer medidas discriminatórias.
No domínio económico-financeiro, terão de ser tomadas providências imediatas no sentido de travar a alta do custo de vida. O problema da inflação é um problema técnico de resolução muito complexa que, atenta a inoperância de acções isoladas, deverá ser tratado globalmente. Primeiro, porque a componente importada nos escapa; depois, porque a modificação da estrutura de defesa nacional e a consequente expansão da oferta passam, no nosso caso, pela solução de problemas políticos muito delicados, e finalmente porque aumentos de salários e congelamento de preços são, na prática, factos incompatíveis. Teremos de exercer desde já a nossa acção no controlo dos preços nos sectores que mais directamente oneram a despesa das famílias: alimentação e habitação. Há assim que legislar no sentido de eliminar a especulação sobre terrenos, principal factor da inflação das rendas de casa, e ainda de travar a elevação destas rendas; e terão de encarar-se medidas concretas de congelamento de preços de certos produtos básicos com recurso, se necessário, a empresas públicas de distribuição.
Terão também de ser assegurados o equilíbrio monetário e a solidez da moeda, havendo para tanto que desbloquear os circuitos económico-monetários internos e externos; promover a multiplicação dos investimentos e o afluxo de capitais portadores de tecnologias, em ordem ao rápido crescimento do produto nacional; tornar a nossa indústria competitiva no mercado externo; e reconverter a estrutura da actividade agrícola pela via da livre cooperativização. O governo reserva-se, naturalmente, o direito de intervir neste domínio sempre que a iniciativa privada revele incapacidade de resposta ao ritmo desejado de desenvolvimento ou tenda a afastar-se do quadro social em que se perspectiva a nova sociedade portuguesa.
No sector da educação, prosseguiremos a reforma do ensino, democratizando a escola à luz do conceito de que é nela que se radica e conforma a consciência dos cidadãos livres. Terão de facultar-se a todos idênticas oportunidades de acesso aos bens da cultura e da educação, estimulando paralelamente o florescimento do nosso património cultural. Neste domínio, há que consolidar a força vinculadora da língua portuguesa como afirmação de uma História de que nos honramos e traço de união das comunidades lusíadas ou lusófilas que por essa via se manterão unidas independentemente de estatutos políticos.
Na ordem externa, o Governo Provisório dará activa contribuição para a paz e segurança internacionais, cooperando abertamente com a Organização das Nações Unidas. Serão respeitados os compromissos internacionais a que nos vinculámos por força de tratados e acordos celebrados, designadamente com a OTAN, o Reino Unido, a Espanha e o Brasil. Esforçar-nos-emos por estreitar os laços com a Comunidade Europeia e não nos escusaremos ao estabelecimento de relações diplomáticas com quaisquer países.
Por último, empenhar-nos-emos em dignificar o Poder Judicial, transformando-o em garante das liberdades cívicas. Para tanto, haverá antes de mais que situar o Poder Judicial na mais absoluta independência do Executivo, prestigiando-o e conferindo-lhe total e real competência para a impugnação e julgamento da constitucionalidade e legitimidade dos actos públicos.
Reservei propositadamente as últimas palavras para o problema do ultramar, o mais importante e o mais delicado dos problemas que terão de resolver-se. Na plena consciência de que o problema não é militar, afirmamos desde já o nosso reconhecimento do direito de todos os povos à autodeterminação, assumindo solene compromisso de respeitar integralmente a decisão das populações ultramarinas, tomada porém esta em plena consciência, sem pressões de espécie alguma e na prévia garantia de que a opção terá de ser feita, não entre duas alternativas apenas, mas entre todo um leque de viabilidades. Não creio que possa ser sustentada, por quem quer que seja, uma solução negociada entre facções de representatividade equívoca ou imperfeita. Defendo há muito a opinião de que compete às populações africanas e europeias de África escolher livre e conscientemente o seu destino, e a via mais autêntica para essa autodeterminação será o amplo debate das viabilidades de opção, no clima de liberdade democrática instaurado. Nesta base, serão exploradas todas as possibilidades que possam conduzir à paz no ultramar, havendo entretanto de acelerar-se ao mais elevado ritmo a regionalização das estruturas políticas dos territórios ultramarinos, com apelo à participação dos seus naturais nas actividades da gestão pública. E com vista à concretização de tal objectivo - o restabelecimento da paz e a preparação de uma consulta popular isenta e aberta á todos os controlos - são dadas plenas e formais garantias aos dirigentes dos movimentos separatistas, que poderão entrar e sair livremente do território português para os contactos que desejarem estabelecer com o Governo, com vista à solução do problema, ou mesmo para a estruturação da actividade legal dos seus partidos, que o Governo Provisório reconhecerá desde que respeitem as regras da democracia.
Eis, Senhores Ministros, as linhas programáticas do Governo Provisório. Resta congratular-me com a esperança do sucesso fundamentada nas qualificações pessoais de Vossas Excelências e na certeza de que, acima das vossas ideias partidárias que democraticamente respeito, presidirá à acção do Governo um espírito de verdadeira equipa ao serviço dos superiores interesses da Nação. E termino com um apelo a todos os portugueses para que ajudem o Governo Provisório a levar a cabo a gigantesca tarefa de edificar um Portugal renovado, democrático, livre e progressivo.

DISCURSO DO PRIMEIRO-MINISTRO

SENHOR PRESIDENTE DE REPUBLICA, 
SENHORES MINISTROS, SECRETÁRIOS
E SUBSECRETÁRIOS DE ESTADO, MEUS SENHORES:

O Governo Provisório de que tenho a honra de ser Primeiro-Ministro, por pedido directo de V. Ex.ª, está consciente da enorme tarefa que lhe incumbe e da responsabilidade que neste momento assume perante a Nação.
V. Ex.ª ontem afirmou, na sua notável mensagem ao Povo português, e vem de reafirmar nas magníficas palavras que acaba de proferir, que este Governo é um Governo sem outro programa que não seja o de actuar dentro das grandes linhas de orientação definidas em obediência aos princípios do programa do Movimento das Forças Armadas já legislativamente consagradas.
Constituem-no homens das mais diversas tendências e das mais diversas ideologias, mas todos irmanados no desejo de servir, até ao limite das suas forças, a causa da Democracia e da Liberdade e de imprimir à nossa vida social, política e económica novos rumos que a situem na hora presente.
Há problemas de extrema urgência a decidir com coragem e com determinação. Acima de todos, deverão colocar-se o da guerra do ultramar, que é o mais dramático e o mais candente. O do nosso equilíbrio económico, que exige esforços, sacrifícios e compreensão em que todos temos de irmanarmo-nos. O da situação das massas trabalhadoras, que constituem a maioria da nossa gente. O da paz social, que é imprescindível manter, pondo fim a excessos que a libertação dum povo sufocado durante quase meio século subitamente fez explodir. Quem nunca conheceu a liberdade não pode, porventura, aperceber-se, senão após a experiência que vai iniciar-se, de que ela a todos impõe uma autodisciplina que a não leve a ofender a liberdade alheia. Dessa lição não carecemos nós, os homens da minha geração, que a vivemos e que a perdemos para só agora a recuperar em toda a plenitude. Mas assim como transmitimos o facho da nossa fé e não deixámos que ele se extinguisse, também esperamos que esta noção fundamental seja compreendida e cada um aguarde, paciente e disciplinadamente, a realização das suas aspirações.
Uma revolução faz-se num dia, uma alteração das estruturas sociais é obra que exige longo estudo e longa ponderação.
Aqui está o Governo Provisório para iniciá-la e para prossegui-la, mas só poderá fazê-lo num clima de paz, num clima de harmonia que prefere ver espontaneamente estabelecido.
Sabemos que há muitos clamores para que se exerça justiça, em relação aos que hajam praticado actos que caiam na sua alçada. Mas a justiça por definição tem de ser serena e tem de ser imparcial. Não é sobre o ódio que se cria um novo mundo que todos desejamos. A justiça há-de passar; a justiça mas não a vindicta privada que nos faria reverter a um clima a que as Forças Armadas puseram termo. Nisso se empenhará também o Governo Provisório, que nas longas diligências que levaram à sua constituição já se mostrou inteiramente identificado na obtenção destas finalidades e que constitui, com que prazer o digo, dentro da sua heterogeneidade um corpo que considero exemplar.
Estamos aqui a um tempo pela vontade popular e pela vontade das Forças Armadas, unidas numa realização maravilhosa, em que se revelou subitamente a alma profunda duma Grei.
Há apenas uni mês, éramos exilados, uns dentro, outros fora do País, que tanto amamos e cujo trágico destino nos amargurava. Os longos anos de dor silenciosa dão-nos a consciência de que fomos agora chamados a tentar remediar erros que não cometemos, e que não podíamos sequer apontar. Isto faz que todos nós assumamos o poder com o espírito de dádiva total.
Por mim, a poucos meses do limite de idade, ponho ao serviço do meu país as forças de quem não pode, nem deseja senão paz de consciência. Ajudar-me-á com o entusiasmo da sua mocidade o Senhor Ministro sem pasta Dr. Sá Carneiro, a quem solicitei que desempenhasse a função específica de Adjunto do Primeiro-Ministro e que aceitou o encargo. Tanto como na sua, tenho plena confiança na lealdade, na devoção e na competência de quantos aceitaram acompanhar-me. Passou a era das personalidades e chegou a era das ideias. Servimos a Democracia para servir Portugal num dos momentos mais trágicos, mas mais gloriosos da sua História.
Façamo-la estritamente unidos, com plena fidelidade a V. Ex.ª, Senhor Presidente da República, que neste momento encarna o Povo português e a quem endereço, nessa qualidade e como chefe incontestado e glorioso das Forças Armadas, que abriram o caminho da Salvação Nacional, em meu nome, em nome do Governo Provisório, as mais respeitosas saudações.