Coleções - Legislação - Spínola dá posse aos governadores coloniais (11/6/74)

SPÍNOLA DÁ POSSE AOS GOVERNADORES COLONIAIS

(11/6/74)

Acabam de tomar posse dos altos cargos de governadores de Angola e de Moçambique, respectivamente, o general Silvino Silvério Marques e o dr. Henrique Soares de Melo. 
Vão VV. Ex.a dar início às suas funções em hora de viragem na vida política do País, hora transcendentemente complexa com especial relevância para o problema ultramarino.
A Nação tem vivido intensamente nos últimos tempos a questão africana, acompanhando-a através da informação, mas elaborando imagens desfocadas de que resultam interrogações, incertezas, e quantas vezes até compreensíveis receios. Contam-se nesse número todos quantos, europeus e africanos, em África, nasceram ou se fixaram e que haviam escolhido a autêntica portugalidade como filosofia de vida informadora do estatuto social de sua livre opção. Daí que se afigure imperioso definir, sem equívocos, a nova linha de rumo da Nação Portuguesa em política ultramarina, linha que pautará a conduta política do Governo Provisório na ordem interna e externa, num momento em que o Mundo tem os olhos postos em Portugal. Tal circunstância exige dos governantes uma lúcida noção da responsabilidade internacional que os seus actos e palavras envolvem, reclamando uma acção política solidamente fundamentada na lógica e na coerência, e iluminada por princípios morais universalmente aceites.
O ponto fulcral do nosso ideário repousa sobre o conceito de autodeterminação, que se impõe clarificar, em ordem a que à sua volta não possam continuar a tecer-se as especulações que tanta perturbação e dúvida têm lançado.
Começarei por afirmar que não tenho, para mim, o conceito de autodeterminação como aplicável apenas aos territórios africanos; no quadro conceituai em que me situo, o Movimento de 25 de Abril foi, no fundo, a retomada daquele direito pelo povo português. Assim, entendo por autodeterminação o exercício da capacidade dos cidadãos de uma sociedade para elegerem o estatuto por que hão reger-se, a soberania que desejam reconhecer e a forma de vida em comum que pretendem prosseguir - enfim, para praticarem actos decorrentes de uma vontade individual ou social livre e conscientemente formada.
Penso ser desnecessária, por evidente, a afirmação de que o exercício de tal capacidade pelas sociedades só é legítimo quando resulte da síntese de capacidades individuais, síntese impossível de obter desde que procurada à margem de qualquer arquitectura sociopolítica que não promova a participação e a afirmação de todos. Não existe por isso autodeterminação sem democracia; e não existe democracia quando as decisões políticas são tomadas a coberto de pretensas e especiosas distorções da legitimidade representativa. Vivemos quarenta e oito anos em tal clima de falsa representatividade. E se nos foi legítimo sacudir quem nos dirigia sem nos consultar, não parece que possa ser legítima, nem moral, nem coerente, a aparente despreocupação com que por vezes se é tentado a aceitar de outros a mesma equívoca representatividade.
Assim como não podemos dissociar autodeterminação de democracia - não existindo a primeira à margem das motivações democráticas, tão-pouco podemos dissociar autodeterminação de independência política, pois que, na essência, um povo independente é aquele que, democrática e autodeterminadamente, escolheu e votou as leis por que deseja reger-se. O reconhecimento do direito dos povos à independência política é, desse modo, redundante, pois se encontra implícito no conceito de autodeterminação, desde que se aceitem as consequências desta, sejam elas quais forem.
Este ponto resulta particularmente relevante, porquanto, no nosso tempo, independência política não é apenas um simples processo de gemiparidade; é já passada a época em que o conceito de independência de um Estado se encontrava ligado à vassalagem ou suserania do seu chefe. No mundo moderno, só existe verdadeira independência política se esta resulta de uma autêntica autodeterminação e só pode haver autodeterminação em clima de livre e perfeito funcionamento das instituições democráticas.
Temos, assim, de concluir que, não se encontrando tais instituições em funcionamento nos territórios ultramarinos, e estando por isso as suas gentes ainda privadas de formas eficazes de expressão e de participação, o que hoje se entende por independência imediata seria a mais gritante negação dos ideais democráticos universalmente aceites e nos quais se inspirou o Movimento das Forças Armadas. O direito dos povos à autodeterminação, com todas as suas consequências, não se compadece de forma alguma com a Imposição, a esses povos, de opções em que não participaram.
À luz desta axiomática, o direito das populações dos territórios africanos a autodeterminarem-se não pode deixar de nos conduzir ao desenvolvimento de um programa de descolonização, centrado em quatro pontos: restabelecimento da paz; reconstrução e desenvolvimento acelerados; implantação de amplos esquemas democráticos de participação e de uma acelerada regionalização das estruturas políticas, económicas e sociais; e recurso à consulta popular como fórmula final de corporização dos princípios enunciados.
É evidente que a solução do problema passa pelo restabelecimento da paz; e aí se não chega desde que as partes em luta não concordem no cessar-fogo, com vista a atingir-se uma plataforma de entendimento sobre a qual as partes fundamentem a sua decisão de deixar de combater. O que está em causa, ao negociar-se um cessar-fogo, não é o destino de um povo, nem o seu regime político, nem os chefes a que haja de passar a obedecer. O que está em causa, ao negociar-se um cessar-fogo, não é a vida, os bens, nem as consciências da maioria que, sem embargo das suas tendências, se não empenhou directamente nos combates, O que está em causa, ao negociar-se um cessar-fogo, é a legitimidade do ideal em que se fundamentam os objectivos que animaram as partes em luta; e, como tal, a viabilidade de, passando da confrontação armada para a solução política, ser deixada a decisão final à consciência de todos os interessados, democraticamente constituídos. Aliás, seria moralmente e humanamente destituída de fundamento outra interpretação; pois se foi a causa do povo que esteve em litígio durante a luta, é ao povo, agora soberano, que cabe tomar opções.
Na obediência a estes princípios se têm conduzido as negociações em curso. E os resultados positivos que se obtiverem não poderão deixar de traduzir, da nossa parte, a garantia total de que o ideário prosseguido pelos partidos emancipalistas poderá ser institucionalizado na paz e na democracia, e de que as pessoas dos seus partidários serão respeitadas e os respectivos chefes integrados nos governos locais. Assim, o cessar-fogo corresponderá, do nosso lado, ao reconhecimento do ideário daqueles Movimentos, e as formais garantias do início de um processo de descolonização, a desenvolver por fases. Aliás, a luta armada nasceu do erro de se haver negado as populações ultramarinas o inalienável direito moral à autodeterminação, direito que a luta armada propugnou. Chegou-se finalmente ao seu formal reconhecimento; e daí a negociação não ser uma transacção pura e simples, mas sim o facto que sela esse reconhecimento e estabelece o entendimento quanto ao processo do seu exercício. Poderão assim estar tranquilos os partidos com que estamos negociando o fim da guerra, na certeza de que, na essência dos conceitos que nos informam, os seus ideais são os nossos; liberdade de opção, progresso e bem-estar para as populações ultramarinas, em clima do mais lato exercício do seu direito de autodeterminação.
Para tanto, irá acelerar-se o processo de descolonização, ao ritmo que as nossas capacidades permitirem. Ritmo tanto mais acelerado quanto mais ampla for a participação das forças em presença, desde que congregadas para o fim comum que nos propomos: o progresso e o desenvolvimento dos territórios do ultramar, e, paralelamente, a liberalização e a regionalização das estruturas em ordem à perfeita participação dos diversos grupos populacionais e das várias correntes de opinião. Encaramos, para tal, a necessidade de continuar a mobilização nacional, agora, porém, totalmente transportada do plano militar para o plano cívico. E então, o potencial humano e material até aqui em processo de desgastante consumo numa guerra sem finalidade, transformar-se-á em força de trabalho e factor de construção do progresso e bem-estar, em reforço de laços sociais e humanos, e em garantia de que o processo de descolonização prosseguirá, de acordo com a vontade popular democraticamente afirmada.
Assumiremos inequivocamente essa responsabilidade, e cumpri-la-emos. E então os territórios africanos serão, finalmente, o que as suas populações desejarem. Mas tal só será possível desde que, em paralelo com as tarefas de reconstrução e desenvolvimento, se acelerem a regionalização das estruturas e a tomada de consciência política das populações. Por regionalização de estruturas entendemos a chamada de africanos a todos os níveis de decisão político-administrativa; e por tomada de consciência política, o fomentar do desenvolvimento de correntes de opinião que polarizem tendências em torno de todas as opções possíveis. Haverá assim que desenvolver, lá como aqui, um processo de formação das motivações democráticas que hão-de traduzir a vontade popular. Só então, naturalmente, sob a vigilância da própria consciência moral do povo e de quem quer que dela duvide, as populações daqueles territórios decidirão do seu destino, contando sempre com o nosso esforço, em ordem a preservar todos os vínculos morais, culturais e económicos que, para além dos estatutos políticos, podem ligar os povos e os Estados.
A luta armada como processo de resolução do nosso problema africano teve fundamento enquanto outra foi a ética política do poder estabelecido. Não vemos que haja agora no espírito dos homens lugar para outras intenções que não sejam as de um amplo debate de ideias e de um esforço comum no sentido da formação de sociedades democráticas, harmónicas e progressivas, exprimindo-se e realizando-se na plenitude dos seus direitos. Federação, confederação, comunidade, ou simples coexistência de Estados totalmente independentes, são fórmulas finais que aos povos do Ultramar, e só a eles, compete decidir. Não seremos nós, fiéis ao ideário de 25 de Abril, que trairemos a força da razão que desde esse dia nos assiste ao garantir o direito de os povos decidirem sobre os seus destinos.
Julgo ter definido inequivocamente os princípios em que se apoia a filosofia política do Movimento das Forças Armadas em relação ao problema do ultramar. Continuaremos fiéis a esta linha de pensamento. E tenho fundada esperança de que depressa, mas sem pressa, o ultramar descolonizar-se-á, agora com a colaboração de todos. Apelo para quantos até aqui combateram não o Povo Português, mas o seu regime, e cujas razões de luta terminaram. Apelo para a sua consciência democrática e para o seu sentido moral, na certeza de que não irão agora trair os ideais por que lutaram, substituindo-se ao povo que, agora, já tem vontade e voz.
Poderão pois estar tranquilos os africanos que se mantiveram neutros, porque não lhes será negado, por essa razão, o direito de optar. Poderão estar tranquilos os africanos que se nos confiaram e ao nosso lado combateram, tendo já feito a sua opção. E poderão estar tranquilos os europeus que chamam à África a sua terra e ali se sentem cidadãos como quaisquer outros; não os abandonaremos na cobarde procura do fácil e na demagógica busca da popularidade. Poderão também estar tranquilos quantos vêm lutando pelo direito à autodeterminação, pois que a sua vontade será respeitada pela vontade das maiorias. A todos garantiremos que nessa hora grande serão chamados, sem excepção, a dar o seu voto. Essa hora já não vem longe, mas até lá teremos de percorrer aceleradamente o caminho que devíamos ter percorrido nos últimos 50 anos. Assim nos entendam e nos ajudem o mundo, e os portugueses de sã consciência e recta intenção.