VASCO GONÇALVES ANUNCIA AUMENTOS DE PREÇOS
(18/8/74)
Algumas considerações de carácter geral sobre a situação económica e social do País.
1. A pesada herança que nos deixou o regime fascista
Alguns dos principais mitos do regime deposto eram o da estabilidade económica e financeira, e o da ausência de défice orçamental.
Contudo, a verdade era bem outra. Nas vésperas do 25 de Abril a economia portuguesa estava à beira do caos:
1.1. Havia um défice real do orçamento
Todos os anos se apresentava um total de receitas que excedia ligeiramente o das despesas. Mas não se explicava que o saldo só era positivo porque havia emissões da dívida pública, destinadas a cobrir o défice real, e que entravam como receitas.
Era como se um trabalhador contasse como receitas suas não só os seus salários, mas também aquilo que pedisse emprestado.
1.2. A balança de pagamentos, que tinha sido normalmente superavitária em virtude sobretudo do contributo das remessas de emigrantes, apresentava, no final de Abril, um défice superior a 6 milhões de contos.
1.3. Os preços mostravam, em Março, um aumento de 30 por cento em relação a um ano antes.
1.4. Campeava uma especulação desenfreada na bolsa, nos bens imobiliários, etc., sem qualquer benefício para o País.
1.5. A política fiscal sobrecarregava os mais desfavorecidos.
1.6. As despesas militares, com a manutenção de uma guerra que não conduzia, de modo nenhum, a uma solução justa dos problemas do ultramar, atingiam níveis dificilmente suportáveis pela nossa capacidade económica, cerca de 45 por cento do orçamento.
1.7. Verificavam-se grandes despesas com subsídios a alguns bens alimentares, cujos preços haviam subido em flecha no mercado mundial, mas que continuaram a ser vendidos no mercado interno a preços políticos, artificialmente baixos, o que se conseguia à custa de subsídios para os quais não se dispunha de recursos financeiros suficientes. Esses subsídios eram financiados pela Caixa Geral de Depósitos, bancos comerciais e Banco de Portugal, o que significava que se estava a consumir nos prejuízos suportados pelos preços «políticos» de alguns produtos uma parte da poupança nacional tão necessária para o investimento produtivo.
Às dificuldades apontadas atrás há que acrescentar algumas surgidas depois do 25 de Abril:
- Um aumento geral de salários, que era justo e necessário, dados o nível de vida anterior dos trabalhadores e a inflação, mas que cria problemas a uma economia sem base sólida;
- Uma certa retracção injustificada de alguns sectores financeiros industriais, uma diminuição do turismo (reflexo da recessão que a Europa atravessa);
- Uma temporária diminuição das remessas dos emigrantes que, no entanto, se reactivaram posteriormente, atingindo agora níveis bem reveladores da confiança dos trabalhadores portugueses emigrados no futuro do Portugal democrático.
É, portanto, necessário o saneamento da vida económica da Nação.
Entre as questões principais põe-se a do défice do Fundo de Abastecimento, resultante da adopção de preços artificialmente baixos, no mercado interno, de certos bens alimentares, importados do estrangeiro a preços consideravelmente mais elevados.
Como se disse atrás, esses bens alimentares subiram em flecha no mercado mundial.
Os inconvenientes da subida de preços que estavam a ser evitados ao consumidor, à custa de subsídios do Estado financiados pelas instituições de crédito, obrigaram a gastar no consumo aquilo que deveria ser investido na actividade económica reprodutiva, com evidente prejuízo para a Nação, a médio e a longo prazo.
É necessário, portanto, aproximar os preços do valor real dos produtos.
Trata-se de uma operação dolorosa, com reflexos no nível de vida da população, mas indispensável para se evitar um desequilíbrio financeiro demasiado grave.
Assim, torna-se necessário aumentar os preços de certos produtos alimentares, entre os quais avultam o pão, o açúcar e o leite, bem como os adubos e as rações para animais.
Para evitar um maior agravamento do custo daqueles produtos alimentares, os subsídios do Estado continuam, embora em menos volume, e há ainda que aumentar os preços dos combustíveis.
Nestas condições, o défice do Fundo de Abastecimento aumentará ainda de 1 milhão de contos até ao fim do ano.
2. Necessidade da reanimação económica
O Governo considera a reanimação e a expansão da economia como uma tarefa prioritária de todos os portugueses.
A reanimação económica geral é do interesse de todos, qualquer que seja a sua classe social. Esta reanimação não é compatível com o desenvolvimento súbito e injustificado do entesouramento, isto é, o guardar o dinheiro a um canto da gaveta, sem o pôr a render. O entesouramento prejudica a economia portuguesa na medida em que traz dificuldade à política de crédito e, consequentemente, à dinamização da produção.
O Governo tomou medidas e tomará outras para que essa reanimação se torne um facto.
São traços dominantes do Programa de Acção do Ministério da Economia:
- Revisão do condicionamento industrial;
- Incentivos fiscais e financeiros;
- Apoio às P. M. E.;
- Estímulo e garantia aos investimentos;
- Gestão coerente e coordenada das participações do Estado na indústria (criação do Instituto Nacional de Promoção Industrial);
- Interesse nos investimentos estrangeiros com reais efeitos de dinamização da economia e respectivas garantias dadas pelo Governo.
No sector da «Construção Civil» temos algumas dificuldades.
A política da construção do regime anterior estava, errada; havia especulação nos terrenos, nas vendas e nas rendas.
Esta especulação só pode ser combatida desenvolvendo amplamente a construção de habitação social, e estimulando a construção corrente de menor preço.
Vamos pôr em prática uma nova política com dois objectivos simultâneos:
- Reanimar a indústria da construção civil;
- Contribuir para a solução do problema da habitação.
No tempo do regime deposto, em cada 100 casas construídas, apenas 5 eram sociais.
Agora, o Governo vai empreender um vasto plano de construção social, ao qual destinará 5 milhões de contos: 1500 fogos por mês.
O fim das guerras em África conduzirá, no futuro, a libertar verbas importantes.
No entanto, devemos ter em atenção:
- A guerra ainda não acabou, não obstante os nossos sinceros esforços para um cessar-fogo;
- Temos necessidade de manter tropas em África durante o processo de descolonização;
- Despesas de transporte no regresso das tropas;
- Despesas com a descolonização;
- Pagamento de encomendas de material de guerra e de empréstimos contraídos para pagamento de material pelo antigo regime.
As vantagens económicas e financeiras do fim da guerra só se deverão fazer sentir dentro de 2 anos. Contudo, acabar com as guerras de África, é, em si mesma, uma boa e nobre solução para o nosso País e para os povos da Guiné, Angola e Moçambique.
3. Salários e preços
Desde o 25 de Abril verificaram-se importantes aumentos de salários.
A fixação do salário mínimo de 3300$00 representou a imediata e considerável melhoria da situação de muitas centenas de milhares de trabalhadores.
Reconhecemos que há sectores em que se torna difícil a aplicação desse mínimo.
O Governo está a estudar esses casos, em alguns dos quais os próprios trabalhadores mostram grande compreensão.
Mas devemos também ter presente que os salários estabelecidos por lei e os contratos colectivos de trabalho são para se cumprir.
Na sua política de salários e preços, o Governo, de acordo com o Programa do M. F. A., tem sido norteado pela preocupação de atender, prioritariamente, às classes mais desfavorecidas.
Não se pode resolver tudo de um dia para o outro. Foi-se para um congelamento dos salários a partir de certo nível.
Trata-se de um congelamento provisório: o desenvolvimento económico precisa de bons técnicos e especialistas e estes devem ser bem pagos.
Contudo, não podemos arrancar do estádio em que nos encontramos, com salários elevados, idênticos aos de outros países muito mais desenvolvidos que o nosso, nem com horários de trabalho inferiores aos desses mesmos países.
Embora contra sua vontade o Governo não pode, de momento, atender a todas as situações.
O aumento previsto custará ao Estado 5,6 milhões de contos por ano e representa um acréscimo médio de 37,5 por cento do conjunto das remunerações do funcionalismo. Trata-se de um aumento nitidamente superior ao dos preços, que vai melhorar a situação económica real de numerosos funcionários, especialmente os de mais baixos vencimentos. Não se poderia ir mais além, sob pena de se agravar perigosamente o défice orçamental, que já é considerável.
O Governo acabou por decidir-se, de acordo com o Programa das Forças Armadas, por um critério de justiça social e por uma escala fortemente degressiva, isto é, os maiores aumentos beneficiarem os salários mais baixos. O Governo tem a noção clara que os quadros dos escalões mais elevados têm vencimentos bastante inferiores aos equivalentes das empresas privadas.
E tem também a noção de que precisa do trabalho de funcionários altamente qualificados.
É objectivo do Governo corrigir essas desigualdades logo que possível e na medida dos recursos disponíveis.
A mesma preocupação de justiça social está na reforma fiscal, que acaba de ser decidida, em que se elevam as isenções em diversos impostos e se estabelecem taxas mais progressivas no imposto complementar.
Os aumentos de salários e vencimentos, embora ainda insuficientes e não respeitando a todos os trabalhadores, resolveram já situações mais difíceis.
Infelizmente, apesar das medidas de congelamento de preços, não se está, de momento, em condições de evitar o progresso da inflação, embora se procure limitá-la através da expansão controlada da actividade creditícia.
Como se disse atrás, torna-se necessário e inevitável o aumento de certos preços, quer devido a causas externas, quer devido a causas intentas.
Dentre as causas externas salienta-se: os preços dos alimentos importados subiram nos últimos dois anos, metade a carne, quase para o dobro o trigo, mais de duas vezes o açúcar, três vezes o petróleo e quatro vezes as matérias-primas para adubos.
Dentre as causas internas: a escassez da oferta em relação à procura; a necessidade de aproximar os preços praticados no mercado, dos preços reais, por impossibilidade de manter os subsídios ao nível que se praticava no antigo regime.
Estes aumentos vão agravar a situação da população portuguesa. Trata-se, porém, de medidas de emergência, que pretendem, antes de tudo, acautelar o futuro.
4. Política social
Uma das principais preocupações do Governo Provisório, de acordo com o Programa do Movimento das Forças Armadas, tem sido lançar os fundamentos de «uma nova política social que, em todos os domínios, terá essencialmente como objectivo a defesa dos interesses das classes trabalhadoras e o aumento progressivo, mas acelerado, da qualidade de vida de todos os portugueses» (Programa do Movimento das Forças Armadas, B6b). Os aumentos do abono de família e o seu alargamento a mais de meio milhão de crianças, a continuidade dos benefícios da Previdência no tempo de desemprego, a duplicação das pensões sociais para inválidos e maiores de 65 anos, medidas de ajuda aos desempregados, actualmente em estudo, etc., são exemplos dessas preocupações.
A par da atenção pela situação das camadas mais desfavorecidas, o Governo encara, no quadro de uma política de austeridade que a situação impõe, pôr termo a situações escandalosas de reformas de muitas dezenas de contos, fixando como máximos para pensões o correspondente ao vencimento dos ministros.
5. Medidas imediatas e perspectivas
O Governo coloca como sua tarefa imediata, essencial, resolver os problemas económicos e financeiros mais urgentes que decorrem das modificações políticas realizadas pelo 25 de Abril.
As medidas até agora decididas têm, na sua maior parte, um carácter de emergência.
Muitas delas abrem, porém, uma perspectiva mais larga e estabelecem novas bases e novos critérios para a solução dos grandes e graves problemas económicos nacionais.
Ao procurar-se a solução dos problemas mais imediatos não pode deixar de olhar-se para o futuro.
E esse futuro, o futuro de um Portugal democrático, próspero e independente, exigirá:
- Um desenvolvimento económico que ponha os recursos do País ao serviço da comunidade nacional e que constitua sólida base de independência do País;
- Uma indústria avançada, dinâmica, rendível e competitiva que permita a rápida aproximação de Portugal do nível dos países desenvolvidos;
- Uma agricultura que vença o seu atraso, para o que é indispensável e premente remodelar a sua estrutura;
- Transportes que respondam às exigências de uma economia evoluída.
Conclusões
Procurei focar, de um modo geral, os aspectos mais característicos da presente situação económica e social do País.
Através dos vários meios de comunicação, a partir da semana que hoje se inicia, os senhores ministros e secretários de Estado explicarão, com mais detalhe, cada um dos aspectos agora tratados. Portugal vive um momento muito particular da sua história, simultaneamente de grande esperança pela liberdade alcançada e de preocupação pela grave crise herdada, da qual urge libertarmo-nos.
É passado o tempo em que o Governo mentia ao povo.
O País tem necessidade de conhecer a sua situação real.
Só assim poderá compreender os sacrifícios e a austeridade que se lhe pedem.
O Governo Provisório tem o dever de tomar a tempo as medidas que se impõem para o saneamento económico, não fazendo política demagógica, e criando assim condições que facilitem o trabalho do Governo que, no próximo ano, há-de ser livremente escolhido pelo Povo Português.
De imediato, estão a ser e vão ser tomadas medidas no sentido de sanear toda uma vida económico-social doente, ao mesmo tempo que se lançam iniciativas cujos reflexos se não farão sentir a curto prazo.
Não podemos convencer-nos que o 25 de Abril tenha gerado a prosperidade e a abastança onde a miséria grassava. Não se passa de um momento para o outro de país dos mais atrasados da Europa para o nível de uma França ou de uma Itália.
É um processo que exige uma devoção e um patriotismo capazes de fazer aceitar a todos, mas a todos, os maiores sacrifícios, quer na austeridade em que teremos que nos habituar a viver, quer no trabalho, muito trabalho, a que temos que nos entregar, tudo isto num clima de verdadeira ordem democrática e de paz social, condições indispensáveis para a reconstrução nacional a operar.
Por outro lado, a política de descolonização em curso não permitirá que se libertem rapidamente os homens e os meios hipotecados, que deixemos de ter encargos neste domínio, os quais ainda hão-de pesar fortemente no nosso orçamento, durante um ou dois anos pelo menos.
A primeira condição para vencer as dificuldades é conhecê-las, é ter bem consciência delas, o que exige, em todos os instantes, uma política de verdade por parte dos dirigentes.
E com base nessa política de verdade e no esforço de todos os portugueses, qualquer que seja a classe social a que pertençam, que se construirá o Portugal democrático, próspero e independente, que desejamos.
SPÍNOLA APELA
PARA A «MAIORIA SILENCIOSA»
(10/9/74)
Na sequência da minha comunicação ao País, de 27 de Julho passado, foi hoje reconhecida por Portugal a independência política do novo Estado Guiné-Bissau.
Vivemos, pois, uma hora de alto significado: a do cumprimento de uma responsabilidade histórica e, acima de tudo, eminentemente humana, celebrando, na emancipação de uma pátria, o nascimento de uma nação em que Portugal se revive.
Neste momento, em que o Mundo se enriquece com o convívio de um novo país de expressão lusa, recordo com emoção todos os portugueses, e tantos foram, que ao longo de cinco séculos doaram com o seu sangue, o seu amor, e a sua esperança, algo de si próprios às gentes e terras da Guiné. Mas nesta hora voltada ao futuro, o meu pensamento vai para os Guinéus, cujos anseios bem conheço e cujo ideal de participação efectiva na vida política, económica e social da nação multifacetada que ambiciona ser, se radica, profundamente, nessa expressão democrática de um humanismo africano a que Léopold Senghor chamou negritude.
O acto hoje firmado traduz, assim, a materialização de um ideário consubstanciado na fórmula «A Guiné para os Guinéus», que o país sabe ter sido inspiradora da acção política do meu governo naquele território; governo a que o povo da Guiné aderiu com entusiasmo dada a autenticidade e o firme propósito de ali se construir, pela via democrática, uma nova sociedade africana verdadeiramente livre e justa - única forma de conduzir com seriedade um processo de descolonização. E que sempre defendi inequivocamente que o acesso dos povos ultramarinos à verdadeira independência, não consente a sua entrega a formas antidemocráticas de governação. Impõe-se, por isso, a tal respeito, algumas considerações.
Fizemos, em Portugal, uma revolução para acabar com cinquenta anos de regime de partido único; temos pois a plena consciência do que tal regime representa na opressão de um povo. Não se compreendem, por absurdo, regimes de partido único numa estrutura democrática. Temos de excluir tais regimes da arquitectura política portuguesa, e não poderemos coerentemente admiti-los no nosso processo de descolonização. Por isso, ao transmitir a soberania do novo Estado para o PAIGC, fazemo-lo na convicção de que aquele partido saberá honrar as responsabilidades assumidas ao ser-lhe conferido o reconhecimento da representatividade do povo guinéu. Confortam-nos, neste aspecto, as afirmações dos responsáveis do novo Estado de que saberão despir-se de ambição própria e não permitirão a alheia. E estou certo de que saberão defender a democracia do país agora nascido contra quaisquer novos colonialismos, preservando e respeitando a pureza de instituições africanas verdadeiramente representativas, e construindo, de facto, uma Guiné eminentemente democrática e progressiva, em clima de perfeita liberdade e justiça social. Porque se assim não for, resultarão não só traídas as esperanças dos Guinéus como ainda frustrados os ideais que presidem à descolonização a que metemos ombros.
Entra assim no contexto das nações um novo Estado de língua portuguesa. Enche-nos de orgulho este renascer de um povo africano, o qual representa o início de um frutuoso convívio de Portugal no Mundo do século XX, e o prelúdio esperançoso de uma Comunidade de Nações de língua portuguesa em que se consubstancie o mais amplo espírito de portugalidade.
Mas o processo de descolonização não consiste, como alguns levianamente pensam, em transferir pura e simplesmente o poder para as organizações partidárias que sustentaram a luta armada contra o anterior regime português. E é exactamente na autêntica conceptualização daquele processo que tem de centrar-se a nossa atenção, para que esta hora seja efectivamente digna da História. Ao defendermos a liberdade de opção política e a sua consequente afirmação institucionalizada e representativa; ao pretendermos a estruturação de sociedades em moldes que permitam a implantação de sistemas verdadeiramente anticolonialistas; ao lutarmos pela liberdade da democracia pluripartidária, haverá talvez quem considere essa intransigente tomada de posição como embaraço ao processo de descolonização. Penso, porém, que o que está verdadeiramente em causa, para esse sector, não é a descolonização em si mas a oportunidade da apropriação do poder por certas ideologias e os seus correspondentes regimes totalitários. E defender os territórios africanos do risco dessa nova escravidão é uma obrigação de consciência para a qual alerto todos aqueles que militam na ideologia democrática.
Terá assim de distinguir-se entre uma descolonização autêntica e o apressado abandono à satelização por terceiros; isto é, entre uma descolonização autêntica e a entrega das populações dos territórios africanos ao arbítrio de novas ditaduras. E a salvaguarda destes aspectos reclama cuidadosa avaliação dos pressupostos em que se fundamenta o nosso conceito de descolonização, em ordem a que não possamos ser amanhã acusados de haver traído os ideais da autodeterminação, da independência e da democracia. Ninguém de boa-fé poderá, por isso, pensar que a descolonização se consubstancia no facto de a bandeira portuguesa deixar de flutuar em territórios de África. A descolonização só atingirá o seu termo quando estiverem em pleno e eficaz funcionamento instituições democráticas, que salvaguardem os interesses de todos os cidadãos. Cabe aos homens que suportaram a luta armada e vão agora assumir as responsabilidades do poder político não vacilar nesta segunda fase de descolonização, agora que satisfizemos o imperativo de parar o derramamento de sangue e a exaustão de recursos humanos e materiais a que a guerra nos conduzia num caminho sem regresso.
E no momento em que, na Guiné, essa nova fase passa para a responsabilidade do PAIGC, resta-me formular votos para que o seu esforço na descolonização da Guiné seja tão honesto como foi o meu, em ordem a que o lema «A Guiné para os Guinéus», a que os africanos daquelas terras tão claramente aderiram, possa, em breve, ser inequívoca realidade, no respeito pela liberdade e pela justiça.
Na época que se avizinha de aliciante construção do novo país, afirmo o inabalável propósito de Portugal, correspondido pela República da Guiné-Bissau, estabelecer e desenvolver relações fraternas de cooperação activa, nos domínios social, cultural e económico, na expansão da língua comum, no contacto entre as nossas culturas e no frutuoso intercâmbio de cidadãos, sempre numa base de igualdade e reciprocidade de interesses, e de respeito mútuo pela dignidade e soberania de dois Estados livres e independentes.
Voltar-nos-emos, agora, para a descolonização de outros territórios portugueses. Não creio que valha a pena referir as linhas essenciais do pensamento que nos enforma e que o País sobejamente conhece. Um Governo de transição será em breve instituído em Moçambique e foi já divulgado pela Junta de Salvação Nacional o programa de acção sobre Angola, do qual não nos afastaremos pois temos a certeza de ser o que melhor defende a independência e a democracia naquele território.
Julgo ser este o momento para deixar bem claro que o Presidente da República tem plena consciência do que é e do que não é democracia, do que é e do que não é descolonização. E, como tal, não consentirá que, em nome da liberdade e da democracia, o povo português volte a ser escravizado, ou que, em nome desses mesmos princípios, se abandonem milhões de seres humanos ao risco de uma escravidão semelhante àquela de que nos libertámos. Doutro modo, não cumpriríamos o Programa do Movimento das Forças Armadas.
Por isso mesmo, nesta hora em que Portugal renasce como País e no mesmo passo entram no Mundo novos países de expressão portuguesa, afigura-se-me pertinente transplantar para o quadro interno, onde enfrentamos as mesmas ameaças e os mesmos riscos, as preocupações que nos assistem no processo de descolonização. Não retirámos da era colonial a capacidade para prosperar economicamente, nem os recursos que propiciaram a outras potências o estatuto de nações desenvolvidas e altamente industrializadas. O encontro com a nossa responsabilidade histórica exigirá, assim, enormes sacrifícios em futuro próximo. Haveremos de aguçar o engenho, explorar e multiplicar recursos, e desenvolver amplamente todas as iniciativas. Isto, se quisermos sobreviver como nação livre e construir a nova sociedade que os Portugueses desejam ser.
Herdámos um país doente. E passada a euforia dos primeiros dias da libertação, temos de constatar que continuamos a atravessar uma grave crise, que nos torna vulneráveis a aventuras extremistas.
Assiste-se ao assalto sistemático dos centros de decisão, públicos e privados, por grupos à margem de toda a ordem jurídica e até institucional. Os processos democráticos de decidir e votar vêm sendo eliminados ou mistificados no procedimento comum, em ordem a permitir a coacção, a ameaça e até a violência dos oportunistas.
O Programa do Movimento das Forças Armadas, por cuja execução o Presidente da República é supremo responsável perante a Nação, é bem claro ao reservar para as instituições democraticamente eleitas a realização das reformas fundamentais da sociedade portuguesa. Mas, apesar disso, encontramo-nos perante um processo de evolução tal que corremos o risco de se criarem situações de facto susceptíveis de radicar futuras situações de direito sem audição do povo português. Há que reconhecer, sem margem de dúvida, que as sociedades políticas modernas têm evoluído num sentido de raiz socialista; mas o socialismo não pode entender-se como construído à custa da liberdade e da dignidade humanas. Temos, em todo o Mundo, sobejos exemplos das formulações possíveis desse socialismo para podermos distinguir as que são verdadeiramente democráticas das que são apenas uma forma eufemística da exploração do homem por um Estado totalitário.
Sou dos que aceitam como autenticamente democráticas quaisquer formas de socialismo desde que em liberdade, isto é, desde que enquadradas em regimes de pluralidade de opinião e de responsabilidade do Poder perante a vontade expressa dos cidadãos. O próprio conceito de justiça social que propugno radica-se no respeito pela função social da propriedade e pela justa repartição da riqueza. E essa justiça social jamais será alcançada por outra via que não seja a da intervenção socializante do poder do Estado na distribuição dos rendimentos, segundo um leque de opções onde cabem diversos sistemas executórios e diversas conceptualizações, desde a via orçamentaria à política fiscal e à orientação da economia, sem prejuízo da participação da iniciativa privada no desenvolvimento nacional. E tem de aceitar-se, democraticamente, que possa haver, dentro desse leque, as correspondentes correntes de opinião com os seus aderentes e simpatizantes.
Deste modo, a construção de qualquer arquitectura política só será legítima se processada pela via harmoniosa das instituições democráticas, isto é, no respeito pela vontade das maiorias, a quem se assegura plena liberdade de opção. Nas sociedades humanas verdadeiramente democráticas, as transformações devem ocorrer sem saltos bruscos nem convulsões, que contêm em si próprias o germe de novas ditaduras, da direita ou da esquerda. A maioria silenciosa do povo português terá pois de despertar e de se defender activamente dos totalitarismos extremistas que se digladiam na sombra, servindo-se das técnicas bem conhecidas da manipulação de massas para conduzir e condicionar a emotividade e o comportamento de um povo perplexo e confuso por meio século de obscurantismo político. Mas a consentir-se um clima anárquico de reivindicação incontrolada, em nítida ultrapassagem das responsabilidades aos diversos níveis e em clara usurpação de direitos alheios, o País mergulhará nos caos económico e social, que só a sectores minoritários poderá aproveitar.
A responsabilidade que assumi perante a Nação impõe uma tomada de posição perante o abuso de liberdade de alguns em denegação flagrante da liberdade de todos. Impõe uma tomada de posição perante a perspectiva de uma depressão económica, a despeito da teorização de soluções de cujos efeitos práticos o País começa a descrer face à crescente crise de desemprego, à alta exagerada do custo de vida, à insegurança civil e social, a casos já verificados de negação da liberdade de trabalho, e, de um modo geral, ao descrédito em que começam a cair as instituições. É chegado o momento de o País acordar para a realidade que somos, para o que queremos ser e para o futuro de anarquia a que nos querem conduzir certos inspiradores políticos. Chegou a hora de se assumirem e de se exigirem responsabilidades, saneando por igual o dirigente inepto ou corrupto, o funcionário venal, o trabalhador parasita e improdutivo, e o político oportunista, autocrático ou demagogo.
O Movimento das Forças Armadas orienta-se para uma autêntica devolução de Portugal a instituições representativas do pensar e do querer dos Portugueses. E não tenhamos dúvidas a este respeito: ou o compreendemos e somos capazes de levar a bom termo o processo de democratização do País, ou nos espera um futuro de miséria, de sangue e de escravidão.
Os regimes extremistas só a extremos podem conduzir. E agora que uma revolução triunfante derrubou o regime fascista, convém recordar que o fascismo é uma filosofia política assente na trilogia «um povo, um partido, um chefe», sintetizando toda uma axiomática limitativa da expressão democrática. E se, como tal, a axiomática fascista tem de banir-se definitivamente, bom será que o povo português seja alertado contra todos os regimes que naquela trilogia se inspirem.
O povo português tem o direito de exigir que seja mantida intacta a sua liberdade de escolha do regime político que desejar; e tem o direito de exigir que imperem as leis justas e equitativas que garantam a todos o respeito pelas pessoas, pelos bens, e pelos legítimos direitos consagrados na ordem jurídica prevalecente. E o Presidente da República o supremo fiel do cumprimento do programa de democratização consagrado pelo Movimento das Forças Armadas, responsabilidade da qual não abdicará, usando os meios constitucionais que lhe foram confiados. Para tanto, far-se-ão cumprir as leis já formuladas, não consentindo no seu flagrante desrespeito; e acelerar-se-á a promulgação de outras leis fundamentais, cujo retardamento se vem reflectindo tão perniciosamente na situação actual.
Não será consentido que a reacção de uma extrema-direita ou o oportunismo de uma extrema-esquerda impeçam a liberdade pela qual lutámos e cuja salvaguarda foi inequivocamente assumida pelo Presidente da República; mas uma liberdade que o seja de facto, onde a livre expressão e os meios legítimos de solução dos conflitos e de participação política se processem de acordo com as regras do jogo democrático. O Presidente da República continuará a ser o intransigente defensor da democracia e da verdadeira democratização. Disso poderão estar certos os que manifestam as suas apreensões quanto à evolução política do País; disso poderá estar certo todo o povo português.
E no momento em que se ultima o quadro legal da proclamação da independência de um povo, independência que eu próprio comecei a preparar em 1968, formulo votos sinceros, com um misto de emoção e de orgulho, de que os Guinéus continuem na construção de uma Guiné eminentemente livre e democrática, tão livre e democrática quanto desejamos seja também o Portugal de amanhã.