PROGRAMA E ORGÂNICA DO GOVERNO PROVISÓRIO
DECRETO-LEI N.º 203/74, DE 15 DE MAIO (1)
A vitória alcançada pelo Movimento das Forças Armadas Portuguesas, destituindo o regime que não soube identificar-se com a vontade do Povo, ao qual impediu todas as vias democráticas de expressão, permite definir os princípios básicos que esperamos contribuam de modo decisivo para a resolução da grande crise nacional.
Em execução desses princípios, compete ao Governo Provisório:
Lançar os fundamentos de uma nova política económica, posta ao serviço do povo português, em particular das camadas da população até agora mais desfavorecidas;
Adoptar uma nova política social que, em todos os domínios, tenha como objectivo a defesa dos interesses das classes trabalhadoras e o aumento progressivo, mas acelerado, da qualidade de vida de todos os portugueses;
Promover um inquérito a todos os abusos de poder, atentados contra os direitos dos cidadãos ou práticas de corrupção, acerca dos quais sejam apresentadas queixas ou dos quais haja noticia, publicando-se as suas conclusões e entregando-se aos tribunais comuns o julgamento das culpas que vierem a ser apuradas;
Manter, em matéria de política externa, activa adesão aos princípios da independência e igualdade entre os Estados e de não ingerência nos seus assuntos internos, defendendo a paz, alargando e diversificando relações internacionais e respeitando os compromissos decorrentes dos tratados em vigor;
Reconhecer o carácter essencialmente político da solução das guerras no ultramar, lançando uma nova política que conduza à paz, garanta a convivência pacífica e permanente de todos os residentes, e criando condições para um debate franco e aberto com vista à definição do futuro do ultramar.
O carácter transitório do Governo Provisório determina que não poderá proceder a grandes reformas de fundo, nem a alterações que afectem o foro íntimo da consciência dos Portugueses, em particular das suas convicções morais e religiosas.
Os governantes devem ser exemplo transparente de isenção, impondo uma ampla receptividade ao tratamento, pelos órgãos de informação, dos problemas da vida pública portuguesa, pressupondo que o farão de modo responsável e construtivo, reintegrados que estão na sua dignidade de instrumentos autênticos de uma opinião pública democrática. Em respeito a essa transparência perante o País, que vive na esperança, o Governo Provisório não poderá consentir manobras que visem impor-lhe uma tutela extremista de qualquer tipo ou comprometer a genuinidade das decisões que, no quadro democrático, ao Povo pertencem.
Em obediência aos princípios do Programa do Movimento das Forças Armadas, o Governo Provisório actuará dentro das grandes linhas de orientação que a seguir se definem, e cujos fundamentos deverá solidamente alicerçar.
1. Organização do Estado:
a) Publicação urgente de nova lei eleitoral;
b) Publicação da lei das associações políticas; sua regulamentação;
c) Reforma do sistema judicial, conducente à independência e dignificação do seu poder; extinção de tribunais especiais;
reforma do processo penal e demais direito processual; e ainda revisão da legislação relativa à polícia judiciária e ao habeas corpus;
d) Estruturação da Administração Central, de forma a corresponder aos objectivos das novas instituições políticas;
e) Revisão das relações políticas, administrativas e económicas entre o Portugal europeu e o ultramar;
f) Definição da competência dos governadores ultramarinos, dos governadores civis e dos governadores dos distritos autónomos;
g) Extinção progressiva do sistema corporativo e sua substituição por um aparelho administrativo adaptado às novas realidades políticas, económicas e sociais;
h) Revogação do Estatuto do Trabalho Nacional; regulamentação em ordem a garantir a liberdade sindical dos trabalhadores e do patronato; estabelecimento de novos mecanismos de conciliação nos conflitos do trabalho;
i) Fortalecimento das autarquias locais, com vista à participação activa dos cidadãos na esfera política dos respectivos órgãos;
j) Rápida reforma das instituições administrativas.
2. Liberdades cívicas
a) Garantia e regulamentação do exercício das liberdades cívicas, nomeadamente das definidas em Declarações Universais de Direitos do Homem;
b) Promulgação de medidas preparatórias de carácter económico, social e cultural que garantam o exercício efectivo da liberdade política dos cidadãos;
c) Publicação de uma nova lei de imprensa, rádio, televisão e cinema;
d) Garantia da independência e pluralismo dos meios de informação, com salvaguarda do carácter nacional da Radiotelevisão Portuguesa e da Emissora Nacional; montagem de esquemas antimonopolistas em matéria de informação;
e) Definição de medidas que assegurem a seriedade das sondagens à opinião pública.
3. Segurança de pessoas e bens:
a) Defesa permanente da ordem pública;
b) Definição de normas para a garantia da liberdade e segurança
em manifestações na via pública e estabelecimento de medidas de salvaguarda do património público e privado;
c) Activação dos meios preventivos dos crimes em geral e, em particular, da corrupção, dos delitos antieconómicos e de todas as formas de atentado contra pessoas e bens.
4. Política económica e financeira:
a) Combate à inflação, através de medidas de carácter global;
b) Revisão da orgânica e dos métodos de administração económica, de modo a dotá-los de eficiência e celeridade de decisão;
c) Eliminação dos proteccionismos, condicionalismos e favoritismos que restrinjam a igualdade de oportunidades e afectem o desenvolvimento económico do País;
d) Criação de estímulos à poupança e ao investimento privado - interno e externo -, com salvaguarda do interesse nacional;
e) Adopção de novas providências de intervenção do Estado nos sectores básicos da vida económica, designadamente junto de actividades de interesse nacional, sem menosprezo dos legítimos interesses da iniciativa privada;
f) Intensificação do investimento público, designadamente no domínio dos equipamentos colectivos de natureza económica, social e educativa;
g) Gestão eficiente e coordenada das participações do Estado, orientada para a defesa efectiva do interesse público;
h) Prossecução de uma política de ordenamento do território e de descentralização regional em ordem à correcção das desigualdades existentes;
i) Liberalização - em conformidade com os interesses do País - das relações económicas internacionais, no domínio das trocas comerciais e dos movimentos de capitais;
j) Apoio e fomento de sociedades cooperativas. Revisão dos circuitos de comercialização, de molde a libertá-los de intervenções e encargos não justificados;
l) Revisão imediata do IV Plano de Fomento, no quadro de uma estrutura participativa, transformando-o num instrumento efectivo de promoção social e desenvolvimento. Revisão da orgânica dos planos de fomento;
m) Reforma do sistema tributário, tendente à sua racionalização e à atenuação da carga fiscal sobre as classes desfavorecidas, com vista a uma equitativa distribuição do rendimento;
n) Adopção de medidas excepcionais destinadas a combater a especulação e a fraude fiscal;
o) Reforma do sistema de crédito e da estrutura bancária, visando, em especial, as exigências do desenvolvimento económico acelerado;
p) Nacionalização dos bancos emissores;
q) Dinamização da agricultura e reforma gradual da estrutura agrária;
r) Auxílio às pequenas e médias empresas;
s) Protecção das participações minoritárias no capital das sociedades;
í) Reorganização dos serviços de estatística, de modo a garantir a objectividade da informação e a permitir a intervenção oportuna na gestão da economia.
5. Política social:
a) Criação de um salário mínimo, generalizando-o progressivamente aos vários sectores do mundo do trabalho;
b) Instituição de sistemas que assegurem o poder de compra das classes desfavorecidas, independentemente das contingências acidentais da prestação de trabalho;
c) Dignificação da função pública, com garantia da sua independência política, e regulamentação do direito de associação do funcionalismo; revisão imediata do sistema de remunerações;
d) Adopção de novas providências de protecção na invalidez, na incapacidade e na velhice, em especial aos órfãos, diminuídos e mutilados de guerra;
e) Definição de uma política de protecção da maternidade e da primeira infância;
f) Aperfeiçoamento dos esquemas de seguro contra acidentes de trabalho e doenças profissionais;
g) Lançamento das bases para a criação de um serviço nacional de saúde ao qual tenham acesso todos os cidadãos;
h) Substituição progressiva dos sistemas de previdência e assistência por um sistema integrado de segurança social;
i) Criação de novos esquemas de abono de família;
j) Medidas de protecção a todas as formas de trabalho feminino e rigorosa fiscalização do trabalho de menores;
l) Criação de esquemas unificados e polivalentes de formação profissional, com participação obrigatória do Estado e do sector privado;
m) Estabelecimento de regimes de participação dos trabalhadores na vida da empresa;
n) Adopção de medidas económicas e sociais destinadas a motivar o retorno dos emigrantes, e de protecção e enquadramento dos trabalhadores portugueses no estrangeiro;
o) Financiamento de equipamentos colectivos, com especial incidência no sector da habitação, conjugado com uma política de solos adequada, de modo a facultar às camadas populacionais de menores rendimentos alojamento condigno e em condições acessíveis;
p) Protecção à Natureza e valorização do meio ambiente.
6. Política externa:
a) Respeito pelos princípios da independência e da igualdade entre os Estados e da não ingerência nos assuntos internos de outros países;
b) Respeito pelos tratados internacionais em vigor, nomeadamente o da Organização do Tratado do Atlântico Norte, bem como pelos compromissos assumidos de carácter comercial e financeiro; contribuição activa no sentido da manutenção da paz e segurança internacionais;
c) Intensificação das relações comerciais e políticas com os países da Comunidade Económica Europeia;
d) Reforço da Comunidade Luso-Brasileira em termos de eficiência prática;
e) Manutenção das ligações com o Reino Unido, o mais antigo aliado de Portugal;
f) Continuação das relações de boa vizinhança com a Espanha;
g) Reforço da solidariedade com os países latinos da Europa e da América;
h) Manutenção da tradicional amizade com os Estados Unidos da América do Norte;
i) Estabelecimento de relações diplomáticas e comerciais com todos os países do Mundo;
j) Renovação das históricas relações com os países árabes;
l) Revisão da política de informação no estrangeiro;
m) Apoio cultural e social dos núcleos portugueses espalhados pelo mundo;
n) Definição de uma política realista para com os países do Terceiro Mundo;
o) Participação e colaboração activa com a ONU e, em geral, com os organismos de cooperação internacional,
7. Política ultramarina:
a) Reconhecimento de que a solução das guerras no ultramar é essencialmente política, e não militar;
b) Instituição de um esquema destinado à consciencialização de todas as populações residentes nos respectivos territórios, para que, mediante um debate livre e franco, possam decidir o seu futuro no respeito pelo princípio da autodeterminação, sempre em ordem à salvaguarda de uma harmónica e permanente convivência entre os vários grupos étnicos, religiosos e culturais;
c) Manutenção das operações defensivas no ultramar destinadas a salvaguardar a vida e os haveres dos residentes de qualquer cor ou credo, enquanto se mostrar necessário;
d) Apoio a um acelerado desenvolvimento cultural, social e económico das populações e territórios ultramarinos, com vista à participação activa, social e política de todas as raças e etnias na responsabilidade da gestão pública e de outros aspectos da vida colectiva;
e) Exploração de todas as vias políticas que possam conduzir à paz efectiva e duradoura no ultramar.
8. Política educativa, cultural e de investigação:
a) Mobilização de esforços para a erradicação do analfabetismo e promoção da cultura, nomeadamente nos meios rurais;
b) Desenvolvimento da reforma educativa, tendo em conta o papel da educação na criação de uma consciência nacional genuinamente democrática, e a necessidade da inserção da escola na problemática da sociedade portuguesa;
c) Criação de um sistema nacional de educação permanente;
d) Revisão do estatuto profissional dos professores de todos os graus de ensino e reforço dos meios ao serviço da sua melhor formação;
e) Ampliação dos esquemas de acção social escolar e de educação pré-escolar, envolvendo obrigatoriamente o sector privado, com vista a um mais acelerado processo de implantação do principio da igualdade de oportunidades;
f) Criação de esquemas de participação de docentes, estudantes, famílias e outros sectores interessados na reforma educativa, visando, em especial, a liberdade de expressão e a eficiência do trabalho;
g) Definição de uma política nacional de investigação;
h) Fomento das actividades culturais e artísticas, designadamente da literatura, teatro, cinema, música e artes plásticas, e ainda dos meios de comunicação social, como veículos indispensáveis ao desenvolvimento da cultura do Povo;
i) Difusão da língua e cultura portuguesa no Mundo.
Definido, pois, o programa do Governo Provisório, necessário se torna estabelecer a orgânica deste, de modo a assegurar a articulação entre os diversos departamentos da administração pública, em ordem a permitir a eficiente execução das tarefas cometidas.
Nestes termos, a Junta de Salvação Nacional decreta, para valer como lei, o seguinte:
ARTIGO 1.°
1. O Governo Provisório é constituído pelo Primeiro-Ministro, pelos Ministros sem pasta e pelos Ministros das seguintes pastas:
a) Defesa Nacional;
b) Coordenação Interterritorial;
c) Administração Interna;
d) Justiça;
e) Coordenação Económica;
f) Negócios Estrangeiros;
g) Equipamento Social e Ambiente;
h) Educação e Cultura;
i) Trabalho;
j) Assuntos Sociais;
l) Comunicação Social.
2. Poderão ser designados Ministros sem pasta, até ao limite de quatro, a quem serão confiadas as atribuições referidas no artigo 14.°, n.° 5, da Lei Constitucional n.° 3/74 (*).
(*) Esta Lei encontra-se publicada neste número do Boletim.
ARTIGO 2.º
1. Ao Primeiro-Ministro compete:
a) Convocar e presidir às reuniões do Conselho de Ministros, sem prejuízo da competência reconhecida, nos termos constitucionais, ao Presidente da República;
b) Coordenar e fiscalizar a execução da política definida pelo Conselho de Ministros;
c) Assegurar o princípio da colegialidade;
d) Representar o Governo perante os demais órgãos de soberania.
ARTIGO 3.º
Compete ao Ministério da Defesa Nacional assegurar a ligação entre o Governo e as Forças Armadas, através do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, e, designadamente, equacionar a política global de defesa, tendo em atenção as perspectivas do desenvolvimento social e económico da Nação e por forma a que nessa política seja integrada a acção militar.
ARTIGO 4.º
1. Compete ao Ministério da Coordenação Interterritorial ocupar-se dos assuntos respeitantes às relações entre Portugal europeu e os territórios do ultramar.
2. No Ministério da Coordenação Interterritorial são criadas a Secretaria de Estado da Administração e a Secretaria de Estado dos Assuntos Económicos.
ARTIGO 5.º
Ao Ministério da Administração Interna compete ocupar-se dos assuntos relativos à administração local, ordenamento do território e manutenção da paz social.
ARTIGO 6.º
1. O Ministério da Coordenação Económica compreende as seguintes Secretarias de Estado:
a) Finanças;
b) Planeamento Económico;
c) Indústria e Energia;
d) Agricultura;
e) Comércio Externo e Turismo;
f) Abastecimento e Preços.
2. No Ministério da Coordenação Económica é criado o lugar de Subsecretário de Estado das Pescas, que ficará integrado numa das Secretarias de Estado, a designar pelo Ministro.
3. Na Secretaria de Estado das Finanças são criados os cargos de Subsecretário de Estado do Orçamento e de Subsecretário de Estado do Tesouro.
ARTIGO 7.º
1. O Ministério do Equipamento Social e do Ambiente compreende as seguintes Secretarias de Estado:
a) Obras Públicas;
b) Transportes e Comunicações;
c) Habitação e Urbanismo;
d) Marinha Mercante.
2. No Ministério do Equipamento Social e do Ambiente é criado o cargo de Subsecretário de Estado do Ambiente.
ARTIGO 8.°
O Ministério da Educação e Cultura compreende as seguintes Secretarias de Estado:
a) Administração Escolar;
b) Assuntos Culturais e Investigação Científica;
c) Desportos e Acção Social Escolar;
d) Reforma Educativa.
ARTIGO 9.°
1. O Ministério dos Assuntos Sociais compreende as seguintes Secretarias de Estado:
a) Saúde;
b) Segurança Social.
2. São desde já integrados na Secretaria de Estado da Segurança Social todos os serviços de previdência e assistência.
ARTIGO 10.º
Ao Ministério da Comunicação Social compete ocupar-se dos assuntos relativos à política de informação, através da coordenação dos órgãos respectivos, em ordem à consecução dos objectivos previstos no programa do Governo Provisório.
ARTIGO 11.º
A delimitação da competência e a distribuição dos diversos serviços pelos vários Ministérios e Secretarias de Estado serão definidas pelo Presidente da República, sob proposta do Primeiro-Ministro.
Visto e aprovado pela Junta de Salvação Nacional em 15 de Maio de 1974.
Publique-se.
O Presidente da Junta de Salvação Nacional, António de Spínola.
(1) Este Decreto-Lei foi tornado extensivo às províncias ultramarinas pela Portaria n.° 338/74, de 24 de Maio.