DUAS CONCEPÇÕES DE SANEAMENTO
A POSSE DO PRESIDENTE
DA COMISSÃO NACIONAL DE INQUÉRITO (9/10/74)
SENHOR CONSELHEIRO
Pela investidura de V. Ex.a, Sr. Conselheiro Fernandes Costa, na respectiva Presidência, fica neste momento finalmente constituída a «Comissão Nacional de Inquérito» criada pelo Decreto-Lei n.° 396, de 28 de Agosto último.
Numa das nossas leis constitucionais, dimanadas do Movimento das Forças Armadas, ou seja o Decreto-Lei n.° 203/74, de 15 de Maio, determinou-se que competia ao Governo Provisório:
«Promover um inquérito a todos os abusos de poder, atentados contra os direitos dos cidadãos ou práticas de corrupção, acerca dos quais sejam apresentadas queixas ou dos quais haja notícia, publicando-se as suas conclusões e entregando-se aos tribunais comuns o julgamento das culpas que vierem a ser apuradas.»
Este preceito constitucional inspirou-se manifestamente em disposições similares do «Programa de Democratização da República» de 1961, a pretexto do qual a generalidade dos seus subscritores percorreu a via sacra dos cárceres do regime deposto.
Em cumprimento dessa obrigação constitucional, foi pelo Governo Provisório promulgado o Decreto-Lei n.° 396/74, que cria a «Comissão Nacional de Inquérito».
Nesse Decreto se confere competência à «Comissão Nacional de Inquérito» para averiguar do fundamento de quaisquer queixas sobre os abusos de poder ou práticas de corrupção económica ocorridos durante a Ditadura.
A experiência mostrou que a instituição da «Comissão Nacional de Inquérito» corresponde não só a um anseio de justiça social, como também a uma necessidade prática. Basta dizer que só no Ministério da Justiça de 25 de Abril até hoje deram entrada cerca de 4 mil exposições e reclamações contendo queixas de abusos de poder, injustiças ou irregularidades, cuja apreciação tem sido feita apesar da carência de meios e estruturas. Noutras instâncias e Ministérios, sobretudo na Presidência da República e Presidência do Conselho, muitos outros milhares de queixas têm sido recebidas.
Criou-se assim um mecanismo institucionalizado para acorrer a uma verdadeira necessidade colectiva.
A presidência de V. Ex.a Senhor Conselheiro Fernandes Costa, e a personalidade dos seus colaboradores, Senhores Drs. Rui Cabeçadas, Ana Prata e Alberto Costa, são a garantia de que a obra a realizar será uma obra de justiça, dentro da estrita legalidade democrática, que para todos nós, servidores da justiça, é um ponto de honra criar e consolidar. A criação da democracia firma-se pela prática da democracia.
E a democracia exige leis justas e instituições adequadas para as fazer respeitar.
Dentro em breve o Ministério da Justiça publicará o seu «Plano de Acção», já aprovado em Conselho de Ministros, para que todos sobre ele se possam pronunciar. Uma das suas propostas é a criação do «Provedor da Justiça», inspirado no ombudsman escandinavo, que visará fundamentalmente assegurar a justiça e a legalidade da administração através de meios informais.
A V. Ex.a, Senhor Dr. Fernandes Costa, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, magistrado dos mais distintos que me foi dado conhecer e admirar ao longo da minha vida profissional, resta-me agradecer, em nome do Governo Provisório e em meu nome, o ter acedido a dar o seu contributo para a obra comum de Justiça e Liberdade, que terá de ser necessariamente uma obra de todos nós.
1 Discurso do ministro da Justiça, Salgado Zenha, ao dar posse ao conselheiro Fernandes Costa.
«SANEAR A VIDA PORTUGUESA»1
O ano de 1975 será um ano de profunda reestruturação da sociedade portuguesa.
Torna-se necessário que em todos os sectores seja encontrada a resposta adequada à construção do País que queremos. Resposta encontrada em liberdade. Liberdade que significará intransigência com processos sedimentados ao longo de anos e anos de utilização da força e da mentira contra os interesses do povo português.
Sabemos que a liberdade é a necessidade tornada consciência. E sabemos bem que, em muitos lugares da nossa terra, não será possível ultrapassar a situação de deficiente esclarecimento cívico e as dependências económicas, sociais e mentais, de modo a obter, desde já, uma criativa participação de todos os portugueses na construção do País.
Temos igualmente experiência dos efeitos profundamente negativos de um regime político como o anterior, na capacidade política das camadas da população mais favorecidas económica e socialmente.
Atentos a estas dificuldades, impõe-se um esforço bem determinado para concretizar o programa que o M. F. A. apresentou à Nação em 25 de Abril. Esforço que, nas palavras lúcidas do Presidente da República, afirme prudência, ousadia, firmeza.
Prudência amplamente justificada pela complexa conjuntura nacional e internacional em que navegamos. Ousadia e firmeza para consolidar as vitórias já alcançadas e encaminhar o País decididamente na procura e realização de uma sociedade, onde a justiça social não seja uma promessa, mas uma realidade vivida.
A substituição de estruturas corruptas, degradadas, depauperadas é um passo decisivo na vida portuguesa. O saneamento da vida pública (e privada) corresponde a uma necessidade fundamental de que todos temos consciência.
Não se trata, apenas, de afastar homens por os conhecermos comprometidos com o regime fascista. Os crimes cometidos por esses homens serão julgados com a firmeza que a dimensão da afronta feita ao povo português exige. Além disso, interessa e é urgente uma eficiente reestruturação dos quadros e dos serviços que permita programar e efectivar as medidas necessárias ao progresso do País.
A administração pública não poderá ser dirigida, nos escalões de decisão, por homens que transigiram com sistemas anteriores. Tal não significa que o seu trabalho e as suas qualidades não tenham interesse na reconstrução do País. Porém, esses homens, embora ideologicamente não fascistas, não reúnem as condições psicológicas e sociopolíticas indispensáveis a quem vai determinar as profundas reformas que o País necessita. Não basta dizer-se democrata, é preciso ser revolucionário, para que um português encontre dentro de si a energia e a vontade para tarefa de tal envergadura. Apenas colocando nos postos de decisão elementos interessados numa profunda reestruturação da vida portuguesa, será possível reorganizar os serviços, aproveitar a capacidade dos técnicos e interessar no processo todos os trabalhadores.
O saneamento implica o afastamento dos indesejáveis, a reconversão dos trabalhadores por níveis de competência, a estruturação dos serviços em termos científicos.
O saneamento impõe uma ética revolucionária que mobilize todos os trabalhadores portugueses para a transformação da sociedade, transformação que não será fácil, porquanto o ponto de partida não é famoso e as circunstâncias internas e externas certamente imporão sacrifícios.
Confiamos no futuro do nosso país. Estamos certos de que, apesar das dificuldades, nós, o povo, encontraremos as soluções adequadas aos nossos problemas e conseguiremos erguer na nossa Pátria a prosperidade, a justiça e a felicidade a que temos direito.
Forças Armadas, partidos políticos, organizações de trabalhadores, temos o dever de nos empenharmos profundamente na construção de Portugal.
A análise critica, a luta serena mas firme pelos nossos direitos, a procura de soluções, que sirvam as largas camadas mais desfavorecidas da população, constituirão a sociedade em que nos encontraremos. Um povo com as necessidades tornadas consciência. Um povo em liberdade.
1 Editorial do n.° 8 do Boletim do M.F.A.