
José Manuel Mendes Calado nasceu em julho de 1949 na freguesia de Benavila, concelho de Avis, distrito de Portalegre. Era filho de Manuel João Calado, carpinteiro, e de Carolina Marques Mendes, operária fabril, ambos lutadores antifascistas, e passou a infância entre a sua terra natal e a cidade de Évora, sempre inserido num ambiente de tenaz resistência contra o regime. Impedido do convívio diário com o pai, preso e exilado político durante mais de uma década, foi criado pela sua mãe, também ela lutadora incansável, tendo sido o primeiro da família a ingressar na universidade, matriculando-se em Coimbra no curso de Medicina. Depois de concluída a formação, regressou ao «seu» Alentejo, onde exerceu a profissão. Faleceu em 1993 em consequência de um acidente rodoviário.
Durante cerca de uma década, iniciada alguns anos antes do 25 de Abril e terminada tempos depois, o Calado – assim o tratávamos em ditadura, e por isso deste modo familiar o refiro, embora a dada altura muitos tenham passado a mencioná-lo pela alcunha carinhosa de «Carpa» – foi um dos estudantes mais conhecidos e singulares, no que de mais elogioso este predicativo pode ter, da academia de Coimbra. O trajeto único que nela traçou merece a todos os títulos uma atenção particular, dado ter-se tratado também de uma das figuras mais notórias da luta estudantil da época. Uma luta que nunca confinou apenas aos interesses próprios dos estudantes, jamais a separando de uma obstinada militância antifascista, anticolonialista e anticapitalista.
O Calado foi um dos «Galifões», grupo de estudantes radicais moradores na República coimbrã do mesmo nome, não alinhados partidariamente – e, por isso, mas também pela permanente atitude libertária, então muitas vezes identificados como «anarcas» – que estavam sempre presentes na primeira linha dos combates da academia, sobretudo nos momentos mais difíceis em que nos protestos contra o regime era necessário encarar a PIDE e a «polícia de choque». De todos eles, o mais notório por ser sempre o primeiro, aquele que jamais escondia a cara, foi sem dúvida o Calado. Recordo-me de o ver, por vezes sozinho, a avançar na dianteira, enfrentando os esbirros do regime com uma coragem física que todos admiravam e servia de exemplo, enquanto muitos estudantes procuravam proteger-se da violência das cargas policiais.
Por outro lado, a forma como os que defendiam a ditadura o encaravam pode ser aferida por uma leitura de alguns dos documentos produzidos pela PIDE-DGS, constantes do processo individual e cedidos pelo seu filho Rui Calado, que o Centro de Documentação 25 de Abril incorporou no arquivo e agora disponibiliza em versão digital. Neles se dá conta de uma vigilância permanente e atenta desse «Calado Alentejano», como num dos relatórios o designa um agente, encarado como perigo para a «ordem pública» e cujos passos eram continuamente observados. A sua figura imponente – «inteiramente vestida de ganga azul» como refere outro PIDE de Coimbra, usando «longa barba e cabelos compridos», assim o descreve um chefe de posto de Évora – aparece nestes documentos como a de um homem sem medo, protagonista em carne e osso dessa resistência estudantil que muito inquietava o regime sobretudo quando se mostrava na rua.
A «ação direta» foi nesses anos finais do Estado Novo o campo de batalha do Calado, do para muitos dos seus contemporâneos inesquecível «Carpa», sendo o seu rosto um dos mais visíveis, e a sua voz de trovão uma das mais sonoras, diante também da população da cidade que se ia cruzando com o universo estudantil, desse ímpeto de corajosa insubmissão que ajudou a derrubar a ditadura e fez nascer a democracia. Por isso lhe devemos gratidão.
Rui Bebiano
Diretor do Centro de Documentação 25 de Abril

