Melo Antunes

ENTREVISTA COM MELO ANTUNES
 
Texto: Maria João Avillez
Continua um solitário. Vive nos arredores de Lisboa, numa casa branca repleta de livros, com um cão chamado Pompeu. Foi um dos principais protagonistas da revolução de 25 de Abril de 74, se não mesmo o seu inspirador e seguramente a sua alma. Depois, nos anos do PREC, influenciou, decidiu, agiu. Foi sempre polémico, dividiu o país, congregando seguidores e polarizando detractores. Foi alvo de fidelidades e, com igual peso e medida, de ódios. Porque, de uma maneira ou de outra, em Portugal e nas antigas colónias - sobretudo em Angola e Moçambique -, tudo passou por ele. Mas, instalada a democracia e feita a (sua?) descolonização, procurou outras vias e possivelmente outra vida. Trabalhou para a UNESCO, passou a morar em Paris, teve um escritório, viajou muito.
Passados vinte anos sobre a data do 25 de Abril, Ernesto Melo Antunes, hoje com 60 anos, entendeu quebrar o silêncio. E pese embora a sua reserva habitual, e o seu manifesto pouco gosto por exibições e palcos, fez com serenidade - e o auxílio da própria História - andar para trás o filme desses anos. Um filme tão polémico quanto interessante de rever.
Vinte anos depois - e agora reflectindo sobre a necessidade de "uma nova visão do mundo" -, continua um homem cerebral, fugidio, desconfiado. E secreto. Mas porventura ainda mais solitário.
PÚBLICO - Tenente-coronel Melo Antunes, vamos começar pelo princípio. Como foi o seu ambiente familiar, como viveu a sua infância, adolescência, o que foi determinante?
MELO ANTUNES - É uma pergunta surpreendente... Vivi com os meus pais e um outro irmão, o meu pai era oficial do Exército, andei em bolandas. De resto, a minha primeira experiência africana foi em Angola, tinha eu seis, sete anos... Foi logo aí nesses anos de 39, 40, 41, que começou a minha paixão por Angola. Fiz os primeiros anos do liceu em Aveiro, os últimos em Faro, devido às diversas colocações do meu pai.
P. - Nasceu e cresceu num ambiente conservador?
R. - Bastante. Os meus pais eram ambos muito católicos, conservadores, mas vivia-se um ambiente aberto e de grande camaradagem, o que me faz hoje guardar excelentes recordações deles e desses tempos.
P. - Escolheu aquilo a que se chama a "tropa" devido ao seu pai?
R. - Fui um pouco empurrado para aí. Havia dificuldades económicas em casa, outro irmão para educar, etc. Mas havia também a ideia, por parte do meu pai, de que era preciso disciplinar-me um pouco... No final da adolescência, eu mostrava com exuberância as minhas tendências inconformistas... A pressão familiar com a necessidade de um curso rápido conjugaram-se numa situação que de resto aceitei muito bem.
P. - Essas tendências, esse inconformismo, nasceram quando e sobretudo como?
R. - É difícil marcar um tempo ou um detonador... mas lembro-me com nitidez da campanha presidencial de Norton de Matos, teria eu quinze anos, e da animação que ela provocou no liceu. Mas a minha curiosidade nasceu sobretudo pelas leituras que fazia e dentro delas a via literária começou por ser mais forte que a política. Só depois vieram outras descobertas, outras preocupações, noutras áreas, nomeadamente no campo da ciência política.
P. - Já formado pela Escola do Exército, faz diversas comissões de serviço em África, vive a guerra colonial...
R. - Vivi, numa palavra, a experiência mais marcante e decisiva da minha vida, a da guerra colonial, que começou em 63. Fiz três comissões sucessivas. Fiquei assim com uma experiência que fez amadurecer muita coisa que até ao início da guerra tinha sido absorvida por via livresca.
P. - Foi tão marcante que transformou dúvidas ou perplexidades em certezas?
R. - Consolidou convicções e reforçou princípios nos quais acreditava desde jovem.
P. - Quais, por exemplo?
R. - Há 25 anos atrás, eu responderia através de um vocabulário que hoje já não se usa. Por exemplo, a ideia de que era preciso transformar o mundo... Continuo a pensar que é, mas não utilizo a linguagem dos anos sessenta... A ideia que de facto havia - e ainda há! - injustiças fundamentais na nossa sociedade - ocidental, capitalista -, e que uma delas era a situação colonial, foi totalmente consolidada na guerra. E desde essa altura ficou claro para mim que a mudança de regime em Portugal - para a democracia - era fulcral para a sociedade portuguesa. Porque das duas, uma: ou se aceitava implicitamente essa situação ou não se aceitava, o que pressupunha uma recusa radical do modelo que conduziu a ela. O processo de evolução da minha consciência política - e até cultural - deveu-se a esta combinação de factores: de um lado uma extrema curiosidade intelectual, de outro uma experiência concreta que alicerçou convicções e princípios.
P. - Em 69, no termo da sua segunda comissão, tem o seu primeiro gesto público e concreto de acordo com esses princípios: candidata-se às eleições pela CDE...
R. - Estava em S. Miguel e havia nos Açores nessa altura um grupo de gente a despertar para a vida política e social: Jaime Gama, Mário Mesquita, Medeiros Ferreira, para além do mentor - intelectual e político - desse grupo, o Marquês da Praia, António Borges Coutinho. Foi nessa efervescência relativa que se viveu nos Açores face às eleições que redigi um documento - ainda há dias o Mário Mesquita me lembrou isso! -, a "Declaração de Ponta Delgada". Já ninguém se lembra disso... [sorri] Mas negaram-me a possibilidade de me candidatar quando afinal havia outros oficiais nas listas da União Nacional que vieram a ser candidatos! Regressei ao continente e voltei ao Ultramar em 71.
P. - Saltando para 73 e para a preparação do MFA: até que ponto e quando se apercebeu que podia passar-se de um movimento meramente corporativo para um movimento essencialmente político?
R. - Esse salto dá-se em meados de Janeiro 74. Até aí eu acompanhara de forma distante toda essa movimentação claramente de natureza corporativa. E a partir de certa altura apercebi-me que era muito possível dar a volta aos acontecimentos. Isto é, dar-lhe um conteúdo político muito mais claro.
P. - Apercebeu-se devido à sua formação, às suas preocupações de natureza política, à sua cultura, que o colocavam numa posição de "vantagem" intelectual e política sobre os outros?
R. - Não se daria o tal salto se não tivesse havido outros oficiais que, mesmo sem grande formação política, tinham a sensibilidade suficiente para compreender o que estava em jogo - uma movimentação de natureza claramente política - e naquilo em que tudo poderia redundar
P. - A queda do regime?
R. - Exacto, o que ficou claro a partir de Janeiro de 74. Houve uma adesão suficientemente significativa para que pudéssemos alimentar a esperança de organizar a queda do regime.
P. - Tem razão de ser a etiqueta que desde sempre lhe colaram de "ideólogo" ou do "político" do 25 de Abril?
R. - Dei uma contribuição não desprezível para a politização do MFA e para que se definissem com a clareza possível os objectivos fundamentais, consagrados posteriormente no programa do MFA, para o qual dei também uma colaboração muito activa. Redigi o primeiro "round", houve depois as alterações necessárias em função dos compromissos indispensáveis. Mas o desencadear do Movimento foi uma movimentação colectiva que se cristalizou em dois ou três objectivos muito simples...
P. - Muito simples - democratizar, descolonizar, desenvolver...? Todos os oficiais compreenderam o alcance esmagador destes três "D"? Tinham a noção da revolução que isso pressupunha?
R. - Tinham a ideia de que se tratava de derrubar o regime, implantar um regime - que isto fique bem claro! - de tipo ocidental, para fazer a descolonização e desenvolver o país. Embora aqui fosse mais confuso, a maioria não sabia muito bem como se iria fazer esse desenvolvimento, havendo a este respeito dezenas de projectos cruzados. Eu tinha absolutamente a noção do que íamos fazer. Mas já agora - de um ponto de vista meramente pessoal -, digo-lhe que estava intimamente convencido de que iríamos ser esmagados.
P. - Pela capacidade de resposta que atribuía ao regime?
R. - Exacto. Apesar de toda a nossa análise, foi espantosa a rapidez e a surpresa... Bastou aquele pequeno abanão. O que eu pensava à partida é que seriam necessários diversos abanões...
P. - Mal o 25 de Abril ecoou, houve da sua parte - e de outros - uma primeira cedência: depositar o poder em Spínola e não em Costa Gomes. Ou não faz sentido colocar as coisas assim?
R. - Sim, faz. Não sei se posso responder-lhe de forma muito convincente para mim próprio... acho que foi o resultado de compromissos. O peso dos "spinolistas" nas FA e no Exército era imenso. Considerou-se que ao general Spínola se atribuiriam as funções de Presidente da República e ao general Costa Gomes a parte militar. Uma divisão que resultava da relação de forças existente. Da minha parte foi uma cedência e grave. Mas as mudanças na História fazem-se através de compromissos por parte dos que têm uma determinada visão dos acontecimentos. Foi para mim uma consequência grande e grave, perante um compromisso grande e grave. Era necessário para atingir o objectivo fulcral...
P. - ... a descolonização?
R. - Nunca desliguei a ideia da democratização da ideia da descolonização, nem isso era possível. A partir de sessenta, quando começam os movimentos de descolonização, há uma lição a reter: só houve descolonização nos casos em que as metrópoles eram democracias políticas. Só depois de termos acesso à democracia política poderíamos descolonizar.
P. - Quando se dá a queda do governo Palma Carlos, entra nos Executivos de Vasco Gonçalves como ministro sem pasta: troca a pele de "revolucionário" pela de ministro. Porque teve que ser? Como viveu isso?
R. - Foi necessário responder a essa solicitação institucional, o que nunca imaginara... Assumi-a como um dever e uma necessidade - detesto essa ideia das pessoas que aceitam cargos como "sacrifícios"... -, e vivi-a como tal.
P. - Ao mesmo tempo, o dr. Mário Soares era titular dos Estrangeiros. Passando agora para a descolonização: não eram duas pessoas a fazer o mesmo? Que fazia e como fazia um, que fazia e como fazia o outro?
R. - Fui justamente ministro sem pasta porque, como o essencial do poder político estava no MFA, e como a tarefa da descolonização transcendia as tarefas habituais de um ministro dos Estrangeiros, foi entendido que alguém do MFA deveria ocupar-se prioritariamente da questão da descolonização. Por exemplo: as conversações com os movimentos da Guiné, S. Tomé e Cabo Verde começaram e acabaram por ser levadas a termo por ele, com uma reduzida participação minha. Ao passo que Angola e Moçambique foi o contrário.
P. - Disse que "foi entendido". Foi entendido por quem?
R. - Julgo que houve pressões para ser eu. A Comissão Coordenadora do MFA estava localizada entre o general Spínola, Presidente da Republica, e o Governo. Uma parte essencial do poder político era dessa Comissão, à qual, apesar de ministro, eu também pertencia. E daí que as acções mais importantes que se desenvolveram no sentido em que a descolonização tivesse uma determinada orientação tenham vindo do MFA e da sua Comissão Coordenadora.
P. - Já contra o general Spínola?
R. - Seguramente já contra o que estava na cabeça do general Spínola e provavelmente com algumas reticências por parte do ministro dos Negócios Estrangeiros, dr. Mário Soares, pelo menos no caso de Angola e Moçambique.
P. - Então havia como que uma "competição"? Isso gerou alguma desconfiança de parte a parte?
R. - Da minha parte não houve esse sentimento de competição com os Negócios Estrangeiros ou qualquer outra pessoa - sem ser o general Spínola e seus assessores. De um ponto de vista estritamente formal, o dr. Soares, enquanto titular dos Estrangeiros, bem como o dr. Almeida Santos estiveram comigo nas principais negociações em Dar es-Salam e Lusaka. Não houve choque de opiniões de fundo e houve colaboração nas conversações.
P. - Em sintonia?
R. - Sobre as questões essenciais, creio que em sintonia. Embora talvez seja este um bom momento para dizer que hoje, passados tantos anos, não posso deixar de confessar a minha surpresa com algumas declarações do dr. Almeida Santos: naqueles fantásticos diálogos televisivos com o dr. Jardim, deu claramente a entender que no caso da negociação com Moçambique ele teria ido com o dr. Soares para Dar es-Salam condicionado mental e politicamente porque o essencial das conversações houvera já sido feito por mim numa anterior deslocação.
P. - Onde fora sozinho?
R. - Com o comandante Almeida e Costa. Donde o dr. Almeida Santos deu azo a outras interpretações...Tanto que o dr. Jardim, com a sagacidade que lhe é habitual, disse logo "pois, foi o Melo Antunes"... Isto é, foi o Melo Antunes o responsável por um mau acordo! O dr. Almeida Santos fez um ar compungido que reflectia bem o que lhe ia no pensamento e na alma. Não sei bem se é o mesmo que vai no pensamento e na alma de Mário Soares, espero que não. Expliquei com toda a clareza, quando vim desses encontros em Dar es-Salam, qual a filosofia subjacente das conversações que deveriam conduzir a um acordo...
P. - ... explicou o quê, exactamente?
R. - ... que o que estava em causa era Portugal reconhecer ou não reconhecer, de maneira clara e inequívoca, o direito de Moçambique e das antigas colónias à autodeterminação e, com todas as consequências, à independência. Se esse era o objectivo político da Revolução, não podíamos tergiversar em questões que eu considerava acessórias. Ora, em relação a esse objectivo fundamental havia um conflito claro com Spínola e com o sector que o apoiava, duas concepções opostas.
P. - Muito depressa "cá fora", isto é, a própria sociedade civil, se apercebeu dessas duas concepções...
R. - Claro! E portanto, o que fez com que esta situação de impasse das duas concepções da descolonização se esclarecesse foram justamente as negociações preparatórias para o acordo de Lusaka, com vista à independência de Moçambique. Foi isso que fez com que, no auge do embate entre Spínola e aquilo que era representado por mim, se fizesse a Lei 7/74, que reconhecia pela primeira vez o direito à autodeterminação e independência. O caminho ficou obviamente facilitado para encontrar soluções concretas para a descolonização.
P. - Um caminho que passou por cima de Spínola...
R. - Ele sentia e vivia obviamente essa questão como algo de dramático. Tanto que não tem nenhuma relutância, em coisas ditas e escritas, em classificar-me - e a outros - como um traidor à pátria.
P. - Que impressão é que isso lhe faz?
R. - Muita. Ele e os que o rodearam são de um enorme primitivismo na forma como apreciam os outros. Ninguém detém o exclusivo do patriotismo, mas sim ideias divergentes sobre a construção do futuro. As soluções que ele defendia - federações, comunidades - eram, ao fim de treze anos de guerra, irrealistas e utópicas. Levi Strauss diz de forma notável que "o maior pecado do Ocidente foi o colonialismo". Sempre pensei que a coisa que melhor poderia honrar a revolução portuguesa era a independência das colónias de uma forma que também as honrasse...
P. - Mas aí...
R. - Sei perfeitamente que tudo seguiu um curso impossível de prever na altura...
P. - ... qual altura?
R. - ... antes de chegarmos à assinatura formal dos acordos de independência. Visto "a posteriori", era impossível ter evitado que se tivesse tornado impossível a presença da esmagadora maioria dos portugueses em Angola e Moçambique. Em parte, essa instabilidade foi marcada pela vontade clara dos novos responsáveis políticos por Angola e Moçambique de afastar os portugueses.
P. - Foi um mau princípio...
R. - ... foi, mas esse radicalismo era inevitável. As elites que chegaram ao poder foram as que andaram de armas na mão na luta de guerrilhas. Sabemos que só o puderam fazer porque tiveram um apoio ideológico quase exclusivo de origem comunista e um apoio logístico e material vindo da União Soviética e do bloco socialista. Ora, em plena guerra fria, em plena disputa de zonas de influência entre a URSS e os Estados Unidos, era inevitável que o poder político nesses países fosse simultaneamente instrumentalizado pela estratégia da URSS, por um lado, e, por outro, que se prosseguisse um radicalismo de afastamento de tudo o que parecesse de influência ocidental, nomeadamente o antigo colonizador. Um dos esforços por nós feitos em todos os acordos foi o de preservar garantias e direitos dos portugueses. Mas uma coisa são os desejos, outra a realidade histórica que se encarrega de escrever a História de outra maneira...
P. - Acabou de me descrever de forma linear e límpida o contexto em que se iria desenvolver a descolonização. Justamente devido ao seu conhecimento desse contexto, não lhe parece que tudo foi feito de forma expedita e demasiado rápida? Como se houvesse uma urgência?
R. - Se não estivéssemos a viver uma revolução, teríamos a obrigação - e até as condições - para fazer a descolonização ao ritmo adequado, uma passagem com equilíbrio e estabilidade. Essa revolução não só foi de toda a sociedade civil como das próprias Forças Armadas, nomeadamente as que estavam em Angola e Moçambique. A exigência de ser rápido numa solução concreta vinha não só da população em geral como em particular daqueles com os quais teríamos que contar se quiséssemos fazer as coisas como se estivéssemos em democracia política: ter umas FA que garantissem uma determinada política externa. Não se trata de dizer - como já se disse - que o Exército "abandonou ou entrou em desordem" nas antigas colónias, mas sim de ver que era impossível que eles lá continuassem a combater... à espera que em Portugal se dessem as transformações políticas conducentes à democracia...
P. - Descreveu há pouco o contexto internacional que iria emoldurar a descolonização, acaba de descrever o nacional. Insisto: não era possível, sabendo de antemão a realidade dos dois contextos, ter tido menos pressa? Menos precipitação?
R. - Não, acho que não era possível. E não houve nenhuma intenção de precipitar os acontecimentos. Voltando atrás: o que imaginámos com o MFA foi o derrube do regime e a implantação da democracia. Mas o que estávamos a fazer era um golpe de Estado, um pronunciamento. Nem eu, nem ninguém, imaginou que esse golpe de Estado fosse horas depois uma revolução, porque o país se incendiou de norte a sul. As massas transformaram um golpe militar clássico - só que, neste caso, de esquerda - num movimento revolucionário. A partir daí, e sem perder de vista objectivos fundamentais, tivemos de navegar à vista. Não há outra explicação para as coisas.
P. - Ainda hoje vigoram em certos sectores duas teses muito interessantes: a primeira, que o vosso golpe de Estado era de origem comunista; a segunda, que ele foi aproveitado horas depois pelo Partido Comunista.
R. - O Movimento desenvolveu-se de forma quase milagrosa, sem contactos com os partidos que existiam clandestinamente. Havia contactos meramente pessoais com gente dos partidos. Lembro-me, por exemplo, de ter trocado muitas impressões com Sotto Mayor Cardia - era amigo pessoal dele - sobre o que estava em gestação, disse-lhe que o regime só cairia por via militar, uma tese que defendia há anos. Eu participava nessa altura com o PS na redacção do programa que foi aprovado depois, na Alemanha. Colaborei nos capítulos da Defesa e Negócios Estrangeiros.
P. - E no PCP?
R. - Não conhecia ninguém na altura a não ser pessoas que lhe estavam ligadas, alguns intelectuais, etc. Mas nunca houve uma conspiração com os partidos para desencadear a revolução, ela foi autónoma e estanque. Mas não é segredo para ninguém que o único partido com uma estrutura organizativa e operacional era o PC - que de resto penso eu que ficou também muito surpreendido pelos acontecimentos... Mas não há duvida de que beneficiou do facto de ter o prestígio que tinha pela condução, durante décadas, da resistência ao regime.
P. - Então não se espantou com o cariz e o caminho que muito depressa tomaram as coisas?
R. - Era inevitável que assim fosse. Mas achei que tínhamos capacidade de resistir à tentação óbvia de o PC se tornar a força hegemónica. Daí que começassem logo as confrontações no MFA, no Governo, nas várias instâncias do poder. Os governos de Vasco Gonçalves foram o terreno de luta entre moderados e radicais, ligados quer ao PC quer à extrema-esquerda. Toda a história do poder político em Portugal desde o II Governo Provisório até ao fim do Verão quente foi a história dessa confrontação.
P. - E entretanto apercebeu-se de que teria que fazer face ao seu camarada e primeiro-ministro Vasco Gonçalves. Quando começaram a fabricar o "Documento dos 9"?
R. - Essa incompatibilidade - entre o que eu representava e o projecto de Vasco Gonçalves, muito próximo do PC - tornou-se claríssima na altura em que dirigi o Programa Económico e Social, em Sesimbra, no final de 74, o qual lhe provocou uma enorme crispação, por não atingir nenhum dos objectivos dos sectores ligados ao PC e ao gonçalvismo. Lembro-me perfeitamente que entre Janeiro de 75 e o Verão desse ano, eu era bombardeado todos os dias por camaradas e civis que, face à desordem existente, apelavam a um acordo entre Vasco Gonçalves e eu, porque a salvação do país passaria por isso. Apesar do meu carinho por Vasco Gonçalves, a vida era o que era, não havia já acordo possível, não se compatibilizava um projecto totalitário com um de democracia liberal. Eu - que como sabe defendia uma solução socialista para Portugal... - defendia aquilo que tempos depois o Pierre Maurois, à semelhança, de resto, de todos os partidos socialistas europeus nessa época, fez em França.
P. - Mas o Programa de Sesimbra era já muito mais moderado que isso...
R. - Assumi com clareza o facto de estar mais à esquerda que esse projecto - que era da minha responsabilidade -, porque o achei uma solução adequada à situação portuguesa. No dia 11 de Março de 75, rasgou-se o papel. Fizemos o "Documento dos 9", redigi-o no meu gabinete das Necessidades em três ou quatro horas e em pouco tempo o texto transformou-se na Magna Carta dos Moderados!
P. - Entretanto, falha a tentativa de fazer uma aliança entre vocês e a extrema-esquerda de Otelo, passando por cima dos gonçalvistas, através do governo Fabião. Como me disse uma madrugada o Vasco Lourenço, "o Fabião borregou!".
R. - Esse Governo era um remendo que Costa Gomes, com a sua habitual perspicácia, tentou fazer para conseguir uma transição suave do gonçalvismo para outra coisa que ele não sabia bem qual era. O que ele pretendia era apaziguar as tensões sociais e sobretudo as militares. O essencial das clivagens passava pela confrontação entre o Grupo dos 9 e o gonçalvismo, mas ia passando pelo conflito e confrontação com o CPCON e Otelo, cada vez mais radicalizados. Costa Gomes quis evitar uma guerra civil, inevitável no caso de confrontação aberta. O governo Fabião é a tradução de um acordo entre a extrema-esquerda e os moderados para marginalizar os sectores ligados ao PC e Vasco Gonçalves. Quero fazer justiça a Costa Gomes, que procedeu com tacto e evitou muitas coisas. Para utilizar a expressão feliz e castrense de Vasco Lourenço, Fabião borregou - tenho estima e consideração por ele - porque não foi homem que estivesse à altura, assustou-se. Tanto que punha como condição a não oposição - a neutralidade - do PC, o que era teórico, já não se estava aí.
P. - Chegamos ao 25 de Novembro. Foi a derrota de quem?
R. - Foi um mal menor, mas fomos bem sucedidos: existia a permanente ameaça da inversão dos acontecimentos por parte dos sectores otelistas. Havia os SUV [Soldados Unidos Vencerão], a indisciplina total dos pára-quedistas, uma imensa efervescência no Exército. A derrota foi dos sectores anarquizantes e uma machadada forte nos radicais próximos do PC.
P. - Ainda hoje não lhe perdoam - e não só a direita mais direita - a sua ida à TV logo a seguir, dar a mão ao PC...
R. - Fui o bombo da festa durante meses, se não anos, e em grande parte devido a isso... O que me incomodou não foi a reacção desses sectores, estão no papel deles, mas sim a dos sectores mais liberais da sociedade portuguesa. Durante muito tempo, não perceberam que a minha iniciativa política - na linha do que eu defendera sempre - visava a todo o custo evitar afrontamentos graves: não se podia desconhecer que o PC tinha ao tempo um apoio social muito forte. Em função da ideia do pluralismo político e da democracia política, o nosso combate ao comunismo tinha de ser feito com as armas da democracia, não o podíamos marginalizar...
P. - Mas justamente o PC não usava essas armas...
R. - Mas era aí que a superioridade do sistema democrático se tinha de manifestar: utilizando as armas da liberdade para conter a tentativa do PC de conquistar o poder por meios antidemocráticos. A nossa aposta com a História revelou-se correcta.
P. - Voltando agora de novo a África e à descolonização: acreditou na bondade dos Acordos de Alvor?
R. - Acreditei que os movimentos de libertação estavam a negociar de boa-fé para um resultado concreto que se obteve num período de transição com um governo misto, com Portugal e eles os três, um exército nacional único que entretanto se deveria constituir, etc. Aliás, o recente Acordo de Bicesse acabou por enfermar do mesmo mal.
P. - Qual foi?
R. - Partir do princípio que havia completa boa-fé nos intervenientes... Mas a história que se seguiu aos Acordos de Alvor mostrou que cada um deles - todos separados ideologicamente, politicamente, no plano dos interesses, etc. - considerou esses acordos como uma plataforma de conquista do poder.
P. - Houve então um erro de avaliação?
R. - Cometemos um erro fundamental: não previmos a hipótese de que, com o instrumento jurídico que eram os Acordos, se iria desencadear essa luta pelo poder, e termos aceite uma data para a independência antes de criadas as condições que pelo menos atenuariam a possibilidade dessa luta, nomeadamente o exército único. Devíamos ter lutado para que essa data fosse definida quando essas condições políticas estivessem criadas, sobretudo a fundamental, o fim dos exércitos "privados". Erro que por falta de análise correcta do que correu mal no Alvor se repetiu afinal em Bicesse.
P. - E quem é que falhou então no Alvor?
R. - Eu pessoalmente, por exemplo. Como chefe da delegação, assumo essa responsabilidade. Aliás, hoje interrogo-me se nas condições de há 18 anos havia a possibilidade dessa previsão. Mas aceito a responsabilidade de não ter previsto o desenrolar de uma luta pelo poder até ao extremo e que, logo, teria sido necessário negociar mais cerradamente as condições para a marcação de uma data para a independência. E isso, tínhamos condições para o fazer.
P. - Não considera que o próprio espírito do acordo estava à partida inquinado, "subvertido" pelo facto de haver uma conivência explícita entre o MFA e o MPLA?
R. - Não existia demasiada conivência.
P. - Cumplicidade?
R. - Poderia haver uma maior simpatia de largos sectores do MFA pelo MPLA. Naquela altura havia uma aproximação em termos ideológicos entre o que o MPLA representava e o que o MFA no seu conjunto e em Janeiro de 74 representava, quando não tinham ainda sido definidas as tais grandes linhas de clivagem no seu interior. Sem duvida portanto que existia uma empatia maior...
P. - O que deu força ao MPLA...
R. - Não. O que ficou definido e claro foi uma linha de "neutralidade activa". Isto é, equidistância em relação aos partidos, porque éramos parte integrante do processo. Mas não há nada de historicamente verificável que leve a pensar que o processo correu como correu porque houve cumplicidade activa entre MPLA e MFA. De resto houve em Angola durante esse tempo uma Comissão Coordenadora do MFA com um papel activo e importante no sentido dessa neutralidade. O que até gerou incompreensões... Mas eu só tenho a louvar o esforço desses homens.
P. - De qualquer maneira, a deterioração da situação levou-o a intervir, ainda como ministro dos Negócios Estrangeiros, no Verão de 75, numa viagem que fez propositadamente a Luanda... para além das suas múltiplas conversações com Kissinger e mesmo com Gerald Ford.
R. - O MPLA violava claramente os Acordos. É verdade que houve provocações inacreditáveis da UNITA e da FNLA. Falei com Agostinho Neto e as coisas não correram bem, tanto que durante bastante tempo tive dificuldades de contacto com elementos do MPLA mais ligados a ele. O MPLA aproveitou-se da provocação da FNLA - apoiada pelo Zaire e sectores americanos que desejavam fazer de Angola um campo de confrontação com a URSS -, mas por de trás do MPLA havia a URSS e parte do campo socialista (o grande carregamento de armas que chegou na altura para o MPLA vinha da Jugoslávia). É verdade quando se diz que Angola foi esse campo de confrontação entre as duas potências. Era já assim impossível manter o espírito dos Acordos.
P. - O que o leva lá é a tentativa de proceder a outro tipo de acordo, desta vez o MPLA, a UNITA e Portugal sem a FNLA?
R. - Para evitar a guerra civil. Pareceu possível juntar a UNITA de Savimbi com o MPLA de Neto. A FNLA avançara com forças militares, mercenários e forças zairenses, além de agentes da CIA, até quase ao Caxito, perto do assalto final a Luanda. Na qualidade de ministro dos Estrangeiros, e após consultar por telefone o Presidente da República para Lisboa, fiz uma reunião com os comandos militares e instruiu-os para que as forças militares portuguesas se opusessem a todo o custo à entrada da FNLA. Coisa que fizeram e bem. É que quando houve situações politicamente claras e correctas a tropa de modo geral portou-se honrosamente.
P. - Tentou assim a aliança entre a UNITA e o MPLA?
R. - Sim. Falei com o Savimbi em Luanda e Lusaka, com o Agostinho Neto em Luanda, etc. Mas o que separava aqueles movimentos era tão profundo que mesmo perante situações que aconselhavam soluções pragmáticas como esta foi impossível o acordo. E a prova de que a nossa análise estava correcta foi que a FNLA perdeu rapidamente expressão e os restantes dois começaram uma interminável guerra civil. Nós não tínhamos legitimidade para fazer mais.
P. - O que faz perder a legitimidade?
R. - Termos aceite um termo para a presença portuguesa e aceitar uma data limite para a independência. Que tudo isto tenha redundado num reforço dos sectores ligados à URSS é um facto, mas não foi o resultado de uma política deliberada da nossa parte.
P. - Mas continua a haver, ou melhor, nunca deixou de haver a ideia em certos sectores - e estou a pensar, por exemplo, em sectores do Partido Socialista, e não apenas na direita - de que houve da vossa parte essa deliberação política...
R. - Por isso lhe tenho estado a responder desta forma. Que a extrema-direita tenha as opiniões que quiser, é-me indiferente. Mas dá-me amargura pensar que há sectores do PS que assim pensam. Isso revela uma incompreensão do que ocorreu e talvez pouca atenção ao desenrolar dos acontecimentos. Porque há uma tendência em certos sectores da sociedade civil - e não só do PS - para considerarem os militares os bodes expiatórios de tudo o que de mal aconteceu, nomeadamente os militares com algum parentesco ideológico com eles próprios. Bem, há aqui coisas que só Freud poderia explicar, eu poderia tentar mas não me atrevo. Julgo por isso que vale a pena deixar bem claro que se houve um evoluir da situação que objectivamente favoreceu o campo comunista, isso verificou-se contra a nossa vontade.
P. - Qual era a sua opinião de Savimbi?
R. - Nunca gostei de Savimbi, a opinião que retenho dessa altura é a de que ele era muito arrogante e convencido, com uma sede insaciável de poder.
P. - E Agostinho Neto?
R. - Era um homem cheio de ideias generosas, com um passado de luta antifascista e anticolonial. Mas duvidava que ele fosse capaz de conduzir aquele processo tão complexo.
P. - E entretanto, chegaram os cubanos a Luanda...
R. - Ao contrário do que foi dito, a presença dos cubanos dá-se com o excelente pretexto dado ao campo comunista, que foi a invasão - até perto de Luanda - das forças sul-africanas, sendo já manifesto o conluio entre elas e a UNITA. Os campos estavam definidos. E por isso digo - após fazer todas as críticas ao processo e às forças em presença - que fosse qual fosse o grau de dependência política e material de Angola - através do MPLA - á URSS, Portugal só teria a ganhar para o campo da liberdade e da democracia com o facto de termos tentado manter uma ponte com Angola tal como estava...
P. - O que o leva a defender isso?
R. - Era a única maneira de desvalorizar ou esvaziar a influência comunista que, tal como a Historia provou, foi desastrosa para Angola e para todos os que receberam essa influência soviética. Teríamos sido nós os protagonistas de uma iniciativa política por parte do Ocidente e em particular dos Estados Unidos para ajudar Angola a libertar-se dessa influência.
P. - Foi isso que foi explicar aos americanos nas conversas com Kissinger e Ford nesse Verão?
R. - Foi isso mesmo. Mas, o defeito é meu, nunca consegui convencer Kissinger da bondade desta tese.
P. - Porquê? Que defendia ele?
R. - Defendia que havia dois blocos e que nos tínhamos de bater numa confrontação irredutível. Se tinha razão na irredutibilidade dos campos, a minha tese era de que era necessário retirar à União Soviética capacidade de influência nas zonas mais pobres do mundo, porque era aí justamente que tinham um caldo de cultura para singrar. O papel dos Estados Unidos como potência dominante no Ocidente era, juntamente com a Europa - com a sua vocação histórica de relação com África - e América Latina, recuperar essas áreas em nome de outros valores. Isto implicava um esforço brutal na mudança de relações Norte-Sul e uma nova ordem mundial à roda de outra concepção das relações Norte-Sul. Foi por causo disto que durante anos fui, ridiculamente, chamado de terceiro-mundista. Hoje parece-me que Deus Pinheiro e agora Durão Barroso defendem teses semelhantes num contexto histórico muito diferente... Mas naquela altura era aqui que a Europa e os Estados Unidos se deviam ter batido...
P. - Kissinger e Ford limitaram-se a dizer-lhe "não", é isso?
R. - A obsessão deles era saber o grau de dependência de Neto em relação à URSS. Disse-lhes que ele era de formação marxista e que todas as suas simpatias iam para lá. Mas eu estava também muito convencido do forte lado nacionalista dele e privilegiava esse lado em relação ao marxista. Deviam pois apoiá-lo para dar azo a um projecto nacionalista libertado das cangas ideológicas.
P. - Paralelamente, mantinha conversações com os soviéticos...
R. - Sim, em mais do que uma ocasião. As principais foram com Gromiko, ministro dos Estrangeiros da URSS, durante uma visita oficial àquele país. Tratou-se da minha parte de tentar convencê-los a não transformar Angola e em geral os antigos territórios coloniais em terreno privilegiado de confrontação entre as grandes potências. O que se passava, então, em plena guerra fria, é que se a confrontação total e radical entre as superpotências era evitada, sobretudo pela dissuasão nuclear, ela era transferida para as regiões do mundo em que, após a eclosão de movimentos revolucionários de libertação nacional, as rivalidades estratégicas e as lutas de influências entre os "grandes" encontravam terreno fértil. Era fazer a guerra por cadáveres interpostos, como eu costumava dizer...
P. - Gromiko também não atendeu à bondade desse tese?
R. - Ele não entendeu a minha linguagem. Que sentido fazia, para uma grande potência imperial, o discurso da defesa dos grandes equilíbrios mundiais, não à custa da criação de vassalos e dependentes, mas sim pelo estímulo de verdadeiras independências, depois de fechado o ciclo das lutas armadas de libertação nacional?
P. - Entretanto, há a independência. Portugal não reconheceu logo o Governo de Luanda...
R. - Não, contra a minha opinião. E fez mal. É certo que o MPLA obtivera a supremacia, tanto na capital como na maior parte do território, pela força das armas. Mas a verdade é que, primeiro a FNLA, com o apoio do Zaire e americanos, e depois os sul-africanos, apoiando já o projecto de conquista do poder pela UNITA, tinham tentado neutralizar o MPLA. Por outro lado, qualquer observador minimamente atento da realidade angolana sabia que o MPLA era a força dominante no plano político e social, por ser exactamente o lugar geométrico das aspirações mais profundas de liberdade e independência, com diferentes raízes históricas e culturais e atravessando os mais diversos sectores e camadas da população, independentemente, inclusive, das origens étnicas. A radicalização do MPLA em torno de uma ideologia dá-se depois, quando confrontado com a necessidade de se impor, face a adversários com poderosos apoios. Portugal teria contribuído eficazmente para uma maior independência do MPLA relativamente à URSS se tivesse reconhecido o Governo de Luanda antes de qualquer outro país.
P. - Porquê?
R. - Porque teria evitado um longo período de crispação e desconfiança nas relações entre os dois países se tivesse agido com mais pragmatismo e sentido realista do interesse nacional e dos verdadeiros interesses de Angola.
P. - Timor. A sua intervenção em Timor confinou-se ao seu encontro em Roma com Adam Malik em Outubro de 74?
R. - Praticamente, sim. Esse encontro teve como objectivos principais obter da Indonésia, no imediato, a libertação de prisioneiros portugueses detidos pela UDT, a seguir às confrontações que tinham assolado o território. Em seguida, e numa perspectiva política de fundo e de mais longo prazo, tratava-se de obter a garantia da neutralidade da Indonésia no processo político da descolonização de Timor. Para os indonésios, a preocupação maior parecia ser a questão da "manutenção da lei e da ordem". Na verdade, para eles, o que era importante era impedir a contaminação "revolucionária" de Timor ao território indonésio. De qualquer modo, Adam Malik prometeu tudo e não cumpriu nada. Ainda hoje, de resto, estou convencido que não cumpriu porque os generais indonésios não deixaram. Da nossa parte, comprometemo-nos no envio de tropas frescas para restaurar a ordem e garantir um processo democrático de consulta à população. Foi o que começámos a preparar logo a seguir ao encontro de Roma, mas que não prosseguiu porque, entretanto, deu-se a invasão de Timor e o processo foi bruscamente interrompido.
P. - Voltando ao político Melo Antunes, naqueles anos do PREC, alguma esquerda europeia olhou-o como uma espécie de farol ideológico. Não considera que houve aí uma parte de falhanço seu, embora ele não seja desligável do falhanço da própria esquerda?
R. - É uma pergunta que levaria a vastíssimas considerações... A esquerda falhou? Aí está uma premissa que nos levaria muito longe... Julgo que, antes de mais, o que é indiscutível é o falhanço do modelo comunista, com a estrondosa derrocada, nos países do Leste europeu, e em especial na União Soviética, do modelo de sociedade directamente deduzido do marxismo-leninismo. O estalinismo, isto é, a visão totalitária do mundo e da vida dos homens, parece não ter sido uma aberração insidiosamente introduzida na "pureza" inicial da doutrina, mas sim algo que resultou necessariamente da própria doutrina. Assim sendo, a crise do pensamento e da cultura marxistas é uma crise total, que atinge não só a forma de organização das sociedades políticas mas também, e principalmente, os fundamentos da crítica radical do capitalismo. É por esta via que a esquerda, mesmo a esquerda que sempre se reclamou de democrática e sempre se opôs à violência do totalitarismo, entrou em crise ao mesmo tempo que se produzia a ruína do comunismo. Mas ter entrado em crise não é sinónimo, para a esquerda democrática, de ter falhado. Falharam, sim, algumas das suas principais referências ideológicas...
P. - Algumas, mas não todas?
R. - Algumas, mas nem sequer todas, vindas da crítica marxista do capitalismo. Contudo, parece tornar-se hoje relativamente claro que o "mercado" é como que um "estado da natureza". Se assim for - e tudo parece indicar, na História, que as sociedades humanas se organizam em torno do que, para simplificar, podemos chamar de "relações mercantis" -, se assim for, repito, à esquerda democrática está aberto, no plano tanto teórico como prático, o campo imenso da descoberta dos valores que introduzam uma racionalidade nova no interior da "desordem capitalista"... É que natureza não significa necessariamente ordem. Ela é, também (ou principalmente?), desordem, caos, acaso, etc. Com isto quero dizer que para a esquerda não se trata apenas de corrigir os chamados excessos do capitalismo, ou de pôr um freio à violência do capitalismo selvagem. Como não se trata também apenas de introduzir mais "social" onde se verificam excessos de "economicismos", tecnocráticos ou não...
P. - ... o desafio é muito maior...
R. - ... muito maior porque implica a descoberta de uma nova "visão do mundo", assente em novos valores filosóficos e culturais, e numa nova ética das relações humanas. Aceitar, pelo menos provisoriamente, a economia de mercado como inerente à condição humana não implica aceitar, sem crítica, o sistema de valores que lhe é subjacente. A esquerda tem esse papel histórico: reformar a sociedade e o mundo - não podendo, ao que parece, transformá-los de alto a baixo, como pretendia o jovem Marx das teses sobre Feurbach -, reformar, dizia, em nome de um "humanismo" que seja capaz de integrar todos os aspectos da enorme complexidade e diversidade do mundo e da vida.
P. - É esse o papel que cabe então aos partidos socialistas?
R. - Um papel primordial. A eles compete a tarefa pioneira de desbravar o caminho que conduza a um novo tipo de relações entre os homens - agora que já sabem que não é pela via da colectivização, ou do dirigismo económico, ou das nacionalizações, etc., etc., que se chega a um mundo mais perfeito. E será, talvez, através de uma prática reformadora, que tenha em conta a enorme diversidade e riqueza de contribuições teóricas acumuladas ao longo de toda a História conhecida dos homens, que será possível, a pouco e pouco, construir a tal nova "visão do mundo" de que lhe falava antes, e que não tem de ser, fatalmente, um sistema de ideias fechado, com uma lógica de imposição dogmática. Bom [ri], mas agora me dou conta que já falei de mais... Embora isto não seja mais do que um despretensioso ponto de partida para um diálogo mais alargado que poderemos vir a ter mais tarde.
P. - Hoje Portugal é europeu: que sentido e que destino?
R. - Aqui também o tema é vasto... limitar-me-ei a referir alguns aspectos salientes. Para mim, Portugal não faz sentido sem a Europa, desde que esta não ponha em causa a especificidade do modo de ser português ou, se quiser, a identidade cultural dos portugueses...
P. - ... será isso possível?
R. - Por enquanto, é uma incógnita, não se conhecendo ainda com clareza quais os modelos institucionais que hão-se presidir à ideia da união política. Tenho para mim que o federalismo não é o modelo mais adequado à preservação das culturas nacionais. Isto porque a forma federal incentivaria a existência de um centro (hegemonizado pela Alemanha) e de periferias claramente subalternizadas, a que Portugal obviamente não escaparia. Neste aspecto, eu privilegiaria a forma confederal, por ser muito maior a autonomia de cada Estado-Nação, sem pôr em causa certos objectivos comuns, como a moeda única, a economia integrada, uma política externa, de defesa e de segurança, comum. De qualquer modo, a União Europeia é uma grande ideia, que terá de ser aprofundada à medida que se vai construindo e que terá de enfrentar corajosamente contradições e dificuldades imensas.
P. - Uma dessas dificuldades, se não a maior, é a definição de uma política externa comum...
R. - Exacto. As dificuldades neste campo têm sido patentes (basta ver a impotência europeia face à crise dos Balcãs), minando gravemente a confiança dos europeus na União. Muitíssimo mais haveria a dizer. Mas não gostaria, contudo, de terminar sem esta nota, para mim essencial: nas condições do mundo de hoje, desaparecida (ou pelo menos excepcionalmente atenuada) a ameaça de confrontação entre as grandes potências, a União Europeia é o maior garante da paz, da segurança e da estabilidade na Europa. No futuro, muita coisa, incluindo a paz, dependerá do modo como se efectuar o alargamento da Comunidade ao restante espaço europeu.
P. - O que faz hoje?
R. - Vivo em Portugal, estou reformado.Vou ganhando a minha vida como consultor de várias empresas, a maior parte estrangeiras. Mas vivo sobretudo dos meus livros e para os meus livros. E para alguma coisa que vou escrevendo...