Manuel Lucena

ENTREVISTA COM MANUEL LUCENA
 
Viveu a infância e parte da adolescência em Angola com a família. Quando vem para Lisboa, adere a um movimento monárquico, mais tarde, na Faculdade, descobre-se "mais católico que monárquico" e entra para a JUC. Na crise académica de 62 torna-se conhecido e depois indispensável ao redigir os comunicados da RIA (Reunião-Inter-Associações). É amigo de Jorge Sampaio, Vítor Wengorovious, Nuno Brederode Santos. É, logo a seguir, um dos fundadores da revista "O Tempo e o Modo".
Por oposição à política colonial de Salazar vai para o estrangeiro: viverá alguns anos em Roma, Paris e Argel. Milita na extrema-esquerda como dirigente do Movimento de Acção Revolucionária (MAR), com alguns daqueles amigos e ainda entre outros, Lopes Cardoso, Nuno Bragança, João Cravinho. Até 1968 foi também dirigente da Frente Patriótica de Libertação Nacional.
Nos anos setenta, funda a revista "Polémica" ao lado de Medeiros Ferreira, Eurico de Figueiredo, António Barreto, Carlos Almeida.
Mas quando um dia em Paris é avisado por um amigo que ocorrera o 25 de Abril, a notícia cai no coração de um esquerdista já com muitas dúvidas.
No regresso a Portugal, no verão de 74, é reintegrado no Exército e mobilizado para Cabo Verde, onde não gosta do que vê nem do que ouve. Vindo de Cabo Verde é colocado no Gabinete de Dinamização do Estado Maior do Exército onde trabalha sob as ordens Pezarat Correia e Sousa e Castro entre outros Conselheiros da Revolução. Aí se consuma a sua rotura com o PREC vindo a ser um dos signatários do "Documento dos Nove", de Melo Antunes.
Em 1975 torna-se investigador do Instituto de Ciências Sociais - então chamado GIS -, onde hoje ainda se mantém.
É autor de várias obras sobre a evolução do "deposto regime" e sobre a instauração da democracia.
Tem preferido o estudo à politica activa abrindo um breve parêntesis em 1979/80 para participar na campanha eleitoral da AD e no Conselho Político de Soares Carneiro.
Hoje, foi com um olhar despido de conveniências, batotas ou astúcias, que Manuel Lucena deu esta entrevista.
Mas sempre com a África ex-portuguesa como pano de fundo: não é ela afinal a fonte essencial da explicação para os seus caminhos e comportamentos?
PÚBLICO - Na década de 60, desertou da tropa e exilou-se no estrangeiro por estar contra a guerra colonial. Hoje sabe-se que é um crítico impiedoso da descolonização. O que se passou entretanto?
MANUEL LUCENA - Acho que, passados 20 anos sobre a queda do regime e a descolonização, já era boa altura, de um lado e de outro, para se deixar de enjeitar responsabilidades.
P. - Cada um dos lados atira para o outro, é isso? A esquerda para a direita e vice-versa?
R. - É. De tal maneira que hoje pode dizer-se da direita e da esquerda o mesmo que se dizia só dos reaccionários da Revolução Francesa: não esqueceram nada, não aprenderam e não perdoaram nada... A direita continua com a pedra no sapato da descolonização como se esta fosse exclusivamente culpa da esquerda. Esta - e a meu ver de uma forma um pouco estranha - considera que o regime deposto é o culpado de tudo. A mim, que quando o regime caiu estava do lado da esquerda, esta última posição impressiona-me mais.
P. - Porquê?
R. - Porque nós nos achávamos o sal da Terra, éramos aqueles que trariam se não o paraíso na Terra, pelo menos uma vida substancialmente melhor... Sempre considerei que "noblesse oblige", portanto pareceu-me inaceitável que, às primeiras dificuldades, nos começássemos a esconder atrás dos inimigos e desculpar de tudo com a "pesada herança do fascismo". A descolonização foi uma tragédia em que há responsabilidades partilhadas, da esquerda e da direita. E não esqueçamos que também há o outro lado...
P. - O lado africano?
R. - O lado nacionalista, sim. Não se diga que foi a parte portuguesa a responsável exclusiva, como se não houvesse guinéus, angolanos e moçambicanos! Por isso lhe disse que, ao fim destes 20 anos, talvez fosse uma prova de maturidade reconhecermos que ninguém tinha - nem tem - a verdade e a inocência no bolso.
P. - Vamos por partes: se bem compreendo, você fazia, na década de 60, uma determinada avaliação, tendo inclusivamente escrito alguns textos sobre a questão africana. E depois...
R. - Se me está a perguntar se mudei, acho que mudei alguma coisa. Comecei por acreditar, quando era muito novo, na obra colonizadora dos portugueses, no Estado multirracial e pluricontinental. Eram os exemplos que tinha à frente, o meu pai era militar, esteve em Angola muito tempo, eu próprio vivi lá muitos anos. O meu pai e bastantes amigos dele eram pessoas que acreditavam no que estavam a fazer. Costumo dizer que tinham sido mandados para África pelo Eça de Queiroz, um pouco como o Gonçalo da "Ilustre Casa de Ramires". É um livro com que a esquerda, de resto, faz más contas, a esquerda prefere o "Primo Basílio" ou "os Maias" [ri]. Estou-me a lembrar também de uns textos do Aires de Ornelas - lugar-tenente de Sua Majestade -, em que ele diz que a geração de 90 trocou o decandentismo "fin de siècle" e o absinto pela África, enquanto oportunidade de vida activa e enérgica.
O meu pai e as pessoas como ele tinham um ideal africanista, procuravam servir as populações e bastantes vezes conseguiam-no. Por isso considero que se não pode fazer aqueles discursos grosseiros sobre o capitalismo puro e simples, porque essa gente, no mínimo, prestou serviços invulgares, que o capitalismo nunca agradeceu.
P. - Havia aí uma noção quase heróica das coisas...
R. - ... e picaresca ao mesmo tempo. E aí vem outra vez o Eça: aquele paquete, o Índia, que era o nosso melhor navio, mas metia apenas sete polegadas de água por hora! No conceito desse grupo de pessoas, Angola era nossa, embora metesse sete polegadas de água por hora. Ainda me lembro do famoso relatório do Henrique Galvão sobre o mísero estado de Angola em matéria de saúde, educação, etc., e do meu pai a dizer que o Galvão ainda fora moderado, que por lá estava tudo ainda pior! Mas quando anos mais tarde, já depois do início da guerra, e com o Galvão na oposição, eu falei de novo com o meu pai a propósito do tal relatório, ele repetiu-me que ele fora moderado, mas que "só os portugueses é que poderiam melhorar essas coisas". E acrescentou: "Porque, se as colónias se tornarem independentes, vêm para cá estrangeiros, será muito pior, acabará numa tragédia!"
P. - Seja como for, a partir de certa altura, você deixa de dar ouvidos ao seu pai e envereda pela clara oposição ao regime e ao problema de África...
R. - Eu teria querido o mesmo que o meu pai, mas isso já não era possível: tinha passado demasiado tempo, Portugal quase nada fizera...
P. - ... e havia já os movimentos de libertação...
R. - e havia a guerra, a hostilidade internacional, Portugal não iria aguentar. Portanto, relativamente ao que pensara na adolescência, mudei: discordei do prosseguimento da guerra em três frentes que via como um mero adiamento; e pensei que, quanto mais tarde começassem as negociações, pior - o que ainda penso. Mas o modo como as coisas se passaram e, sobretudo, o estado de Angola e de Moçambique 20 anos depois da descolonização impedem que se dê a questão por encerrada.
P. - Justamente, não a encerremos: como se processou a sua reflexão ao longo destes 20 anos?
R. - Ao longo do tempo, o que percebi, ao contrário do que nos ocorria na altura - refiro-me à rapaziada da oposição -, foi que em Angola, Moçambique ou Guiné não havia nações formadas e que esse era o ponto fundamental. Havia, quando muito, nações em formação, o que fazia com que fosse um erro a ideia de que os movimentos de libertação representavam nações. Em resumo: teorizei, por um lado, a inevitabilidade da descolonização - no que estava certo - e, por outro, alinhei na promoção de uma certa rebeldia que até certo ponto se justificava, mas que teve como consequência o facto de, após o 25 de Abril, uma grande parte da juventude começar a gritar "Nem mais um soldado para África!"...
Ou seja, não me considero alheio a esse movimento político-cultural, mas, que diabo, seria ter o rei na barriga achar-nos culpados de tudo! Se calhar fui um dos promotores dessa asneirada, embora já estivesse longe dela no 25 de Abril. Essa palavra de ordem foi de facto terrível.
P. - Porque ela pode ter levado a comportamentos menos ortodoxos dos militares portugueses em África, após o 25 de Abril?
R. - Não vou entrar nisso. Numa entrevista não cabe discutir se foi o abraço de Lusaca ou se foram atitudes da tropa no terreno, se foram civis, se foram militares...
P. - Então, vamos tentar chegar ao essencial...
R. - O que talvez interesse é verificar que, num ponto fulcral, há uma grande continuidade entre o colonialismo de Salazar e a descolonização...
P. - Como assim?
R. - Naquela tão apregoada concepção de que as colónias, quer para serem nossas, quer para deixarem de o ser, "est toto uno". Isto é, Salazar falava do "Minho a Timor" e, aqui, não resisto a abrir um parêntesis e a recordar, a propósito, uma história que nunca mais esqueci: um tio meu, monárquico, um dia em que alguém comparava Salazar aos reis de Portugal, dizia que "Salazar não fazia a mínima ideia das colónias, porque nenhum rei considerara as colónias todas iguais". Havia territórios para dar no dote das princesas, havia entrepostos comerciais e meros postos militares avançados. E, depois, as grandes colónias de povoamento, com outro peso humano e político.
De resto, há um discurso de Salazar, feito um ano antes da queda da cadeira, em que ele reflecte sobre o destino das três Áfricas: a do Norte, onde com o islamismo poderia haver independências anticoloniais; a África branca do Sul, onde isso nunca poderia ocorrer; e depois, ali no meio, uma terceira onde cabia a Guiné-Bissau. Dá a ideia de que andava à procura de uma solução para o caso mais bicudo. Se isto nunca teve continuidade, mostra-nos, porém, que ele teve alguma consciência do problema...
P. - Salazar dizia do "Minho a Timor". Quer você dizer que os descolonizadores também disseram "descolonizar de Cabo Verde a Timor"?
R. - Tentou-se aplicar a mesma chapa: sair rapidamente e em força de todos os lugares para onde se tinha ido rapidamente e... em força! No fundo, de aplicar o mesmo modelo em países que ainda não eram nações, de reconhecer determinados movimentos como únicos interlocutores - ou porque combatentes, ou porque possíveis combatentes -, como no caso de Cabo Verde, onde não havia combates. De rapidamente caminhar para a independência, aplicando a teoria de que Portugal já não era colonialista nem sequer neocolonialista.
P. - Duas soluções unitaristas, com alguns anos de intervalo e, pelos vistos, ambas erradas?
R. - Sim. E isso aconteceu numa altura em que nalgumas colónias, sobretudo em Angola, se dava pela primeira vez depois do início da guerra - e em parte por virtude dela, portanto também devido aos movimentos de libertação - um enorme surto de desenvolvimento. Talvez pela primeira vez, a propaganda do colonialismo português começava a ser algo verdadeira. Daí a minha ideia de que Portugal devia reconhecer uma certa proeminência a alguns movimentos que, irreversivelmente, tinham desencadeado o processo. No entanto, esses movimentos, justamente porque ainda não existiam nações, não estavam implantados na totalidade dos territórios nem representavam a generalidade das populações.
Assim, a independência deveria ter sido deferida e o apoio do Estado português - de que esses movimentos bem precisavam para se implantar sem demasiada violência... - teria como preço obrigá-los a condutas menos absolutistas. Teriam de aceitar a existência de outras forças políticas, mesmo que fossem mais iguais do que elas.
P. - Não acha que é alguma coisa de parecido com isso - ou a semente disso - o que Portugal tentou construir nos acordos de Alvor, em 1975? Até se diz que com boa-fé e boa vontade...
R. - Bem, dessas coisas está o inferno cheio, não é?! Lembro-me de que em Cabo Verde, onde continuei o meu serviço militar após o 25 de Abril, no dia em que soubemos desses acordos houve uma conversa entre sargentos e oficiais-milicianos. Os sargentos, que vinham de Angola, comentaram sem hesitação: "A partir de agora, eles vão-se matar uns aos outros e durante muitos anos..." Era preciso estar-se envolvido de uma determinada maneira no processo político aqui em Portugal para acreditar naquilo em que um sargento conhecedor do terreno nunca acreditou...
P. - Aqui, em Portugal, houve quem acreditasse, antes do mais, porque precisava de acreditar?
R. - Claro, tinham prometido mundos e fundos: uma descolonização exemplar e, sobretudo, a sua articulação com o processo de construção do socialismo... Foi um bocado escandaloso virar-se as costas daquela maneira, enquanto nós aqui pretendíamos instaurar um socialismo mirífico.
P. - Então, e o dr. Soares no meio disso tudo?
R. - Isso é outra questão... Não serei muito terno porque considero que não foi um brilhante descolonizador... Mas a questão com ele é bem mais complicada...
P. - Porquê? Porque era titular dos Negócios Estrangeiros?
R. - Com certeza. Mas começara antes: um dia, talvez em fins de 1973, dirigiu um telegrama ao PAIGC a felicitá-lo quando declarou a Guiné como um Estado independente. Ora, isto punha de imediato um problema: se um dia viesse, como veio a haver, negociações com ele, a nossa margem de manobra ficaria reduzida...
P. - Além disso, por que é que Mário Soares é um problema "mais complicado"?
R. - Olhe, lembro-me de que, uma vez, alguém da direita me disse que "o dr. Soares tinha um dia que ser julgado por causa do seu papel na descolonização". Eu desatei a rir... porque, em Portugal, os portugueses, todos eles, foram, são ou serão um dia "soaristas"... Eu explico: como líder da oposição, foi o primeiro a dar boleia ao Partido Comunista depois do 25 de Abril, defendendo a sua entrada no governo, mas depois contribuiu muito para tirá-lo do poder. Isto é, o dr. Soares depende do ponto de vista em que se esteja... E, se não gostará de me ouvir dizer estas coisas, nunca se recusará nem fugirá a discuti-las... Enquanto político que se opôs com a mesma determinação ao despotismo político de Salazar e ao de Cunhal, enquanto pessoa que sempre fomentou o debate político, a sua função foi muito positiva; como Presidente da Republica e como contrapeso na questão dos poderes, também se lhe reconhece algum mérito...
P. - ... mas na descolonização menos, é isso que quer dizer?
R. - Menos porque ele coincidiu de mais, a meu ver, com a posição da maioria dos portugueses, que não estava assim tão envolvida em África como o deposto regime gostava de acreditar. As pessoas que tinham lá familiares na tropa queriam é que eles voltassem. E muitos que se preocupavam a sério com a questão começavam a ficar cansados com a política colonial do regime. Ora, a verdade é que o dr. Mário Soares interpretou tudo isto de forma excessiva... Não apenas ele, houve também alguns militares.
P. - Agora, antes de se passar para outro capítulo, e para encerrar o problema africano: a sua passagem por Cabo Verde como soldado, a seguir ao 25 de Abril, influenciou ou marcou a reflexão que já fazia sobre a questão colonial?
R. - Cheguei a Cabo Verde em Novembro de 1974 e levava a missão do major Melo Antunes de lhe enviar um relatório acerca da situação no território - estava próximo um acordo entre Portugal e o PAIGC. Mandei-lhe o relatório e enviei cópias ao dr. Mário Soares - ministro dos Estrangeiros - e ao major Vítor Alves, na altura ministro interino da Defesa.
P. - E então? Responderam, interessaram-se?
R. - Os dois últimos acusaram a recepção, e mais nada. O major Melo Antunes nem sei se recebeu, talvez não, alguma correspondência poderia ser censurada. Em Cabo Verde, não tinha havido luta e uma grande parte da população era a favor de Portugal. Se dobrássemos as verbas de apoio ao território - que não eram grandes -, a maior parte da população ficaria muito contente com uma autonomia menor do que a dos Açores...
P. - ... dizer isso é esquecer o PAIGC e a parte de influência - ainda que menor - que apesar de tudo ele tinha...
R. - É verdade que havia a sombra do PAIGC, que se projectava sobre o território; tinha alguns quadros, tinha importância nos estudantes e numa parte dos funcionários, mas a sua implantação deixava muito a desejar. E, no entanto... a solução foi a mesma que para a Guiné, onde a guerra era a mais dura - a entrega do território a um movimento considerado o único representativo. No fundo, a descolonização de Cabo Verde, do ponto de vista político - visto que as nossas possibilidades eram aí maiores -, foi porventura a oportunidade política mais flagrante que se perdeu.
P. - Guardou esse relatório?
R. - Guardei. Refere episódios reveladores de uma certa indigência política nessa descolonização sobre a qual eu penso, um dia, publicar um livro. Mas não já. Não o escrevi logo porque, apesar de tudo - ao contrário de todas as outras colónias -, prevaleceu ali um certo bom senso na parte final e há boas relações. Por isso, não quis ser o desmancha-prazeres.
P. - Falemos agora do seu percurso, de todas as andanças, políticas e geográficas, em que andou metido: na universidade evidencia-se na luta e na crise académica de 1962; redigia os comunicados da RIA (reunião inter-associações), pertenceu ao MAR (Movimento de Acção Revolucionária); exilou-se por causa da questão colonial, viveu em Paris e em Roma. E, entretanto, estudou como poucos o "deposto regime", como você diz...
R. - Até já me perguntaram se, ao estudar tanto o regime, não tresli...
P. - ... e tresleu?
R. - Bem, há duas coisas: a primeira foi tudo o que acabei de lhe dizer sobre África e o paralelismo ou a consonância entre a colonização e a descolonização. A outra é eu pensar que tem havido um certo prolongamento do corporativismo: o regime não caiu enquanto corporativo, caiu enquanto nacionalista, vinculado às colónias. O corporativismo tinha, portanto, uns certos pés para andar, embora não exactamente daquela maneira. Daí que perante isto, e com as críticas que faço à descolonização, me tenham já perguntado o que é que, ao fim de todo este tempo, me separa do dr. Salazar...
P. - Ah sim?
R. - O problema é o da liberdade política. Com o dr. Salazar, não havia liberdade. Não há liberdade sem risco, e ele fugia do risco como o diabo da cruz! Fugia inclusivamente do risco de ter de nos punir com demasiado rigor, o regime não era sanguinário, ele nem sequer gostava das longas penas de prisão; preferia que tudo se resolvesse com dois ou três anos, mais as possíveis medidas de segurança... Era de um paternalismo intenso, achava que um dia, quando fôssemos grandes e pensássemos como ele, nos poderíamos então exprimir!
O dr. Salazar considerava que os portugueses, ou os latinos em geral, não estavam - como os ingleses - feitos para um certo tipo de liberdades. Por isso, criou um regime que não era sanguinário, muito mais moderado do que os regimes despóticos de direita e de esquerda que proliferaram na Europa entre as duas guerras e mesmo após a segunda. E por isso durou tanto. Todavia, foi exaustivamente repressivo e abafante.
P. - As cartas trocadas entre Salazar e Marcello Caetano é também isso que revelam...
R. - É. A partir de 1934, Marcello dizia-lhe que sem debate político não há política, que assim não, que assim se perderia a juventude, etc. Era também um sistema preventivo: a censura prévia, todas aquelas autorizaçõezinhas que se tinham de ter para tudo e que quase nunca eram dadas...
P. - Entretanto, surge Marcello Caetano. Você estava fora; como "viu" isso, de longe?
R. - Eu levei a sério a "renovação na continuidade". Uma parte da oposição achou - ou esperou - que ele fosse levado a mudar. Tiveram essa esperança, e penso que o dr. Mário Soares também a teve. A outra oposição, mais à esquerda, tinha a ideia de que a renovação era pretexto. Como aquela famosa frase do Leopardo: "Mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma".
P. - Mas você acreditou?
R. - Tentei interpretar. E pensei que renovação era manter o sistema corporativo: passar de um corporativismo autoritário para um de associação, compatível com uma progressiva instauração das liberdades políticas. E dei com muita gente - fui um deles - com medo de que Marcello levasse a água ao seu moinho. Sobretudo quando deu a ideia de tocar de certo modo na questão colonial...
P. - ... não passou dessa ideia...
R. - Houve um artigo contra a revisão constitucional de 1971, cujo autor foi Adriano Moreira, que tinha alguma razão quando dizia que Marcello Caetano, ao tocar nos símbolos e nas palavras, começava a minar as bases de sustentação do Estado Novo.
P. - Como soube do 25 de Abril?
R. - Um amigo apareceu-me em casa, em Paris, onde eu vivia, e disse-me que teria sido o Exército com Marcello contra Américo Thomaz. Mas afinal não. Em vez de uma mudança gradual, íamos entrar na instabilidade política.
P. - No 25 de Abril, em que esquerda estava? Com quem?
R. - Encaminhava-me para a saída da extrema-esquerda...
P. - E como é que lá entrou? Por onde, por que porta e porquê?
R. - Muitos anos antes. Cheguei a Portugal com 16 ano, vindo de Angola. Um amigo do meu pai encaminhou-me para um movimento monárquico - Frente de Juventudes Tradicionalistas - e ainda escrevi uns artigos no "Debate". Depois, tornei-me mais católico do que monárquico, estive na JUC. Depois da crise académica de 1962, passei a militar na extrema-esquerda, muito diferente das de 1969. Mas isso não tem relevância, só teria se eu o quisesse negar... Como não quero, não tem interesse. Quando se aproximou o 25 de Abril, estava já com algumas dúvidas. E com apreensões devido a estar-se a difundir, na juventude e na oposição, o tal clima que veio a desembocar no "nem mais um soldado para África". Por outro lado, a oposição radical não concebia a descolonização como um negócio político...
P. - E você discordava? Porquê?
R. - Por considerar que havia demasiada proximidade entre nós e os movimentos de libertação, assim uma espécie de convicção de que os interesses do povo português coincidiam automaticamente com os desses movimentos. Parecia-me prudente marcar uma firme distância mesmo em relação a homens como Amílcar Cabral, que admirei profundamente.
P. - Conheceu-o no exílio?
R. - Não, dos nacionalistas mais importantes só conheci o Mário Pinto de Andrade, com quem passei uma noite a discutir em Argel.
P. - Esta conversa tem andado aos saltos e, sobretudo, sempre com África pelo meio... Estávamos no 25 de Abril, você já não era de extrema-esquerda; qual era o problema essencial nesse tempo?
R. - O problema capital que se põe nessa altura é que não há poder português - e Sá Carneiro teve a noção disso quando quis antecipar a eleição do Presidente da República.
P. - Foi sobretudo o Partido Comunista que produziu e encenou esse vácuo de poder aqui?
R. - O PCP tentou pôr o pé nas estruturas sindicais e corporativas, nas câmaras, nos "media", etc., mas com alguma prudência. Quanto à revolução, os comunistas começaram por ser mais prudentes do que o PS, cuja esquerda tinha o freio nos dentes.
P. - Já lá vamos ao PS. Entretanto, como viu o papel do general Spínola?
R. - Antes do 25 de Abril, sobretudo no governo da Guiné, teve imaginação política. Depois não...
P. - Mas reconhece-lhe o esforço ou a tentativa desse esforço?
R. - Reconheço, sim. Mas, aí, lembro-me do cardeal de Retz, quando diz que "a arte política é a capacidade de distinguir entre o extraordinário e o impossível"... Spínola não propôs nada de viável entre o federalismo e a retirada a correr. E, quanto a Portugal, não tomou a liderança de algumas reformas económicas e sociais, e o seu erro capital foi ter dito que esperaríamos um ano pelas eleições. E que só a Constituinte poderia proceder a essas reformas. Por isso, perdeu toda a força cá dentro. Ainda me lembro de o ter visto na televisão a falar, um dia em Évora e outro em Santarém, e de a praça vir abaixo mal ele dizia: "Portugueses!" Isto em Junho ou Julho de 1974... É evidente que não teve talento nem arte política. Tal como não houve reacção forte, nenhum reformismo preventivo, da parte das classes dominantes, que foram para o matadouro de cabeça baixa, com algumas reacções meritórias pelo meio, por exemplo as das pessoas que fundaram a CAP e a CIP.
P. - E agora o PS?
R. - Ah, o PS estava eivado de esquerdismo, em parte por nossa causa...
P. - Mas o dr. Soares lutou contra isso com unhas e dentes, lutou, aliás, na vida inteira...
R. - Lutou, sim senhor! Ele, aliás, estava nessa altura partilhado entre um defeito e uma virtude: o defeito era seguir o exemplo da esquerda francesa e sonhar para Portugal coisas parecidas com o Programme Commun e com o que ocorreu na França e na Itália do pós-guerra... A virtude foi ter compreendido, desde muito cedo, que Portugal era um país ocidental... Travou uma grande luta...
P. - No que foi muito ajudado, de resto...
R. - ... e algumas dessas ajudas vieram de amigos meus - Vítor Cunha Rego, António Barreto, Medeiros Ferreira -, mas, apesar disso, viu-se grego para cavalgar o PS! E isto até 1989. Não por acaso, a revisão constitucional - que necessita do PS - só foi possível em 1989 no que toca às nacionalizações, à construção do socialismo, à sociedade sem classes, etc.
P. - Um processo demasiado lento?
R. - Aos poucos, Portugal foi-se conformando com os dados da Europa ocidental... Primeiro na política - o que ficou feito com a revisão de 1982. Depois, na parte económica, com a revisão de 1989. Mas, por outro lado, pode dizer-se que, entretanto, uma série de coisas que nos ficaram da revolução e paralisaram o sistema económico e social se foram agravando e, por isso, a nossa entrada na CEE - tal como já o disseram a CIP e a CAP - foi coxa. Justamente porque, antes, não se fez essas reformas. Uma moeda com dois lados... A morte de Sá Carneiro teve muita importância: talvez tivesse sido o homem capaz de conjugar a democracia política com uma mais rápida resolução dessas coisas e, de caminho, com uma entrada menos subserviente na CEE.
P. - Em que Portugal é que vive hoje?
R. - Não sei em que Portugal. Sei que vivo num país em que, dantes, a soberania residia em "a nação" e hoje reside no povo. Vive-se mais democraticamente, com maior abertura cultural e de acordo com o princípio da soberania popular. Mas o dr. Salazar tinha alguma razão quando dizia que o fim da nação imperial acarretaria não só a questão da redefinição, mas também a da independência....
P. - Esse problema existe hoje?
R. - É óbvio que sim. Por muito que não haja hoje nenhum país totalmente independente, há os mais rijos e os mais moles, e nós estamos mais moles... Numa palavra: se os portugueses vivem hoje melhor e estão menos resignados, mais reivindicativos, a nação, essa, escapa-me um pouco.
P. - A última actividade política que se lhe conhece é a participação na campanha de Soares Carneiro, na AD...
R. - Você está-me a fazer uma pergunta parecida com a inicial: de desertor a crítico da descolonização e, agora, da extrema-esquerda para o general Soares Carneiro...
P. - É o seu percurso... Aí pelo meio, entre uma coisa e outra, houve também o abandono do socialismo ou não?
R. - É verdade que abandonei a teoria do socialismo, deixei de ser socialista. Quando ainda o era, tinha uma ideia do país, do que fazer dele. Hoje, se os portugueses estão mais vivos, Portugal, depois da descolonização, não sei se o está. Os meus amigos que citei há pouco deram, todos, contribuições magníficas, ao longo destes anos, para a construção da democracia. Mas o facto de eu ser, entre todos eles, o único que tinha raízes em África fez-me ficar um bocado pendurado, deixei em certa medida de saber o que fazer. Como não tenho grande talento para os partidos, embora os ache indispensáveis, o meu caso só se agravaria se me embrenhasse na política.
P. - Mas alguma coisa andou a fazer na AD e nas eleições de Soares Carneiro...
R. - Quando Sá Carneiro apareceu e, depois, Soares Carneiro, achei que havia uma hipótese de entrada mais rápida, e com mais carácter, numa democracia de tipo ocidental, que acho necessária e que, na altura, ainda não estava segura. Por isso participei na campanha da AD em 1979, perto dos reformadores, e depois fiz parte do Conselho Político do general Soares Carneiro.
P. - Mais carácter?
R. - A nossa integração europeia, que começou por ser a promessa de um maná, arrisca-se agora a tornar-se a integração possível. É como a descolonização, que começou por ser "exemplar" e, depois, também passou a "possível". Mas desta vez não poderemos culpar o deposto regime.
P. - Para terminar: você e alguns dos seus amigos, ex-esquerdistas, enganaram-se em quase tudo?
R. - Enganámo-nos em muita coisa, mas também aprendemos. Queríamos um socialismo mirífico: científico, artístico e libertário... E achávamos que o internacionalismo seria uma coisa entre nações [ri]... nações livres e que nunca poderia prejudicar a nossa.
P. - E, internacionalmente, o que queriam para Portugal?
R. - Uma independência nacional efectiva, ou seja, algo insubordinada perante a lógica férrea dos blocos - houve até uma certa tentação neutralista -, e que Portugal andasse na Europa mais pelo seu pé do que pela mão dos outros. Nisto, pouco conseguimos. Não é bem a mesma coisa do que termo-nos enganado.