Entrevista com Tenente-Coronel Jorge Mauricio e Major Tomé - Guerra Colonial

 ERA UMA VEZ UM MILÉNIO

Entrevista com Tenente-Coronel Jorge Maurico e Major Mário Tomé
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”

Por João Monteverde, Ana almeida, Paulo Rato, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
 
"O ambiente que se vivia em Mueda era inesquecível. A toda a hora do dia chegavam de avião feridos graves ou mortos. As amputações de membros eram diárias, as emboscadas nos itinerários de acesso e os ataques aos aquartelamentos da zona uma constante. Os pilotos que levantavam voo ao nascer do dia, cerca das cinco horas, e o pessoal do esquadrão que saía para a estrada à mesma hora eram os frequentadores normais das noites de canto e copos. Para animar a festa alguém conseguiu obter, via Movimento Nacional Feminino, um gira-discos e alguns discos. Com esta anormalidade, organizaram-se várias festas para ouvir música quando os emissores de AM e mesmo os de onda curta eram quase inaudíveis".
"Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril" de Salgueiro Maia.
Portugal manteve entre 1961 e 1973 uma média anual de 105000 homens envolvidos nas três guerras coloniais, aproximadamente 54000 em Angola, 20000 na Guiné e 31000 em Moçambique. No conjunto dos três cenários de guerra, entre 1961 e 1974 morreram, em média, 630 militares portugueses por ano.
De acordo com a Associação de Deficientes das Forças Armadas e o Departamento de Psicoterapia Comportamental do Hospital Júlio de Matos entre 30000 e 100000 combatentes ficaram a sofrer de distúrbios pós-traumáticos causados pelo 'stress' da guerra. A guerra colonial continua a ser o tema do nosso programa.
"Uma patrulha da famosa 3ª Companhia de Caçadores Especiais destruiu no extremo noroeste do Distrito de Malange uma das mais importantes concentrações de terroristas.
Graças à pronta e valorosa intervenção duma patrulha comandada pelo alferes Armando Carvalhão, um nome que é já temido pelos bandoleiros que têm tentado infiltrar-se no Distrito de Malange, acaba de ser totalmente eliminado um dos mais importantes centros de concentração e preparação de terroristas, situado no extremo noroeste do Distrito de Malange, a seguir à importante ponte que existiu sobre o rio Kauau, a cerca de 40 km de Sanzapombo. Por informação recebidas por indígenas fieis à pátria ..."
Locutora - E continuamos a história do nosso século e estamos em Portugal nos anos 60 e falar dos anos 60 é forçoso falar da guerra colonial. Connosco para se reportar a esse tempo vamos estar com o major Mário Tomé e com o tenente-coronel Jorge Maurício. Gostava que se apresentasse, senhor tenente-coronel Jorge Maurício.
Jorge Maurício - Portanto, eu sou tenente-coronel de infantaria Jorge Maurício, trabalho desde 1974 na Associação dos Deficientes das Forças Armadas, pertenço aos órgãos sociais, sou presidente da Assembleia Geral Nacional.
Locutora - Major Tomé.
Mário Tomé - Mário Tomé, major de cavalaria, na reforma. Estou praticamente fora do serviço activo desde o 25 de Novembro de 75. Actualmente sou militante político.
Locutora - Bom e vamos então falar da guerra colonial. Trinta anos depois, como é que, como é que a guerra colonial significa para si tenente-coronel Jorge Maurício. O que é que significou.
Jorge Maurício - Bem, significou digamos que uma acção muito sangrenta em relação a todos os nossos jovens, portanto aos jovens de Portugal que naquela altura, todos foram obrigados a ir para a frente de combate e portanto exporem as suas vidas, exporem a sua saúde, portanto a todas as acções violentas que as guerras trazem. Essa guerra para mim continua a ser presente tanto que nós temos cerca de 13500 associados, todos eles deficientes das forças armadas, homens com deficiências de carácter permanente que não obstante a guerra já ter terminado há 23 anos continua no dia a dia a sentir essa guerra porque, obviamente, as suas lesões, as suas amputações, a falta dos sentidos, faz com que eles tenham uma vida mais difícil e obviamente que desta forma não podem esquecer a guerra.
Locutora - Major Mário Tomé, militar de carreira, portanto, preparados, enfim, podiam, pensavam, para tudo, não é, vamos portanto aos anos 60. Portanto, quando começou a guerra como é que a encarou na altura.
Mário Tomé - Encarei-a com todo o entusiasmo natural dum alferes acabado de sair da Escola Prática de Cavalaria e preparado para do ponto de visto psicológico e físico para a guerra, não é.
Locutora - Punha-se na altura a questão de ser uma guerra justa ou injusta.
Mário Tomé - Punha-se não a mim, punha-se a muita gente já, não é. Não só a militantes de esquerda e às pessoas que viviam as coisas mais longe, mas punha-se a uma parte significativa das pessoas, do nosso povo. Para mim nessa altura não se punha ou punha-se talvez duma forma muito intelectualizada, muito distante, através de algumas leituras que já ia fazendo nessa altura, não é, e que até me ajudaram depois, enfim, a toda a uma evolução, mas na altura fui muito entusiasmado para 
Locutora - E foi para aonde?
Mário Tomé - Fui para a Guiné. Fui como adjunto duma Companhia de Polícia Militar e o meu entusiasmo era tanto que fartei-me de escrever cartas para ir para o mato e para ir, enfim, para ir para a guerra concretamente, não é. Porque ali em Bissau onde eu estive naquela altura não sentia a guerra, como eu achava, que a devia sentir, como alferes, empenhado em mostrar as minhas qualidades...
Locutora - E depois foi, chegou a ir para 
Mário Tomé - Depois nas outras comissões fui, claro, fiz quatro comissões. Fiz duas como Comandante de Companhia, uma em Moçambique e outra na Guiné e depois a última, a quarta, fui para Nampula, para ajudante do Comandante Chefe, durante um ano e depois fiquei no Comando Chefe, entre 72 e 74.
Locutora - Tenente-coronel Jorge Maurício quando foi para Moçambique porque esteve em Moçambique. Foi com este entusiasmo com que foi também o major Tomé ou...
Jorge Maurício - Sim, exactamente. Convém recordar que nós nos bancos da escola para além do facto de termos à nossa frente o Salazar dum lado e o Américo Tomás do outro, tínhamos nos nossos livros tudo aquilo que era a geografia de Portugal que começava no Minho e acabava em Timor. Tínhamos a História de Portugal, portanto, onde tudo era contemplado também. De maneira que o nosso universo logo desde miúdo é que de facto Portugal era qualquer coisa de muito grande, ia portanto para além das fronteiras. Obviamente quando também saí da Escola Prática de Infantaria para fazer uma comissão como adjunto de Comandante de Companhia eu ia absolutamente com essa noção e mesmo vindo, digamos, a consciencializar-me exactamente daquilo que me acontecia quando depois já de estar ferido conversar com várias pessoas é que de facto os horizontes se abriram.
Locutora - Major Tomé, alguma vez durante a guerra pensou que a guerra tinha que terminar.
Mário Tomé - Sim, pois comecei a pensar, não é. As razões são várias...
Locutora - As guerras todas têm de terminar, não é.
Mário Tomé - Sim, o que é uma guerra, o carácter injusto da guerra, o carácter repressivo, chamemos colonialista assumido. Comecei a senti-lo relativamente cedo por volta de 69, talvez.  Aliás em 79 pedi a demissão. Estava na Guiné, na minha terceira comissão, e pedi a demissão das Forças Armadas que aliás não me foi concedida e portanto comecei com o relacionamento, com o desgaste que a nossa própria vida sofria, não é, e com a influência daqueles quer os soldados que estavam contra a guerra, ou para quem a guerra nada dizia e por influência mesmo daqueles que das Faculdades eram atirados para lá como carne para canhão como eram soldados e que já aqui contestavam quando estavam na Faculdade. Aliás a resistência à guerra colonial foi um dos factores mais preponderantes para os levantamentos da juventude contra o regime, como se sabe, e para as greves académicas e tudo isso e depois muitos deles, ou por castigo ou porque lhes calhava iam parar à guerra. E eles tiveram também, acho eu, acho eu não, isso já está adquirido uma grande influência na transformação da própria mentalidade e das posições dos oficiais do Quadro Permanente, nomeadamente dos capitães, especialmente dos capitães.
Locutora - Tenente-coronel Jorge Maurício, a sua passagem pela guerra foi particularmente dramática, não é, porque foi para Moçambique em que ano?
Jorge Maurício - Eu fui precisamente no final do ano de 71, no dia 30 de Dezembro de 71 e portanto estive em Moçambique até 3 de Maio de 1972. Portanto, era alferes adjunto, comandava um grupo de combate, integrei a Companhia em várias operações e depois numa em que ia sozinho efectivamente, uma mina anti-pessoal rebentou, aliás foi accionada pelo meu guia que ficou amputado de uma perna e eu fiquei um bocado pior também amputado duma perna e portanto imediatamente cego. Foi de facto uma coisa muito violenta. Digamos que eu nem sequer me cheguei a aperceber bem da violência da guerra se bem que me apercebi perfeitamente do rigor daquele clima, do rigor que é um indivíduo andar 30-40km por dia, enfim, com uma mochila às costas, com uma arma na mão, com cartucheiras, com água. Era uma coisa que nós tínhamos de transportar pois isso percebi perfeitamente que a guerra, portanto, qualquer coisa de muito violento, qualquer coisa que nos agredia quer fisicamente, quer psiquicamente. De facto antes de me meter ao silêncio tinha chegado à conclusão que de facto os nossos corpos não foram feitos para fazer guerra, a nossa mente não está preparada para fazer guerra. Tudo isso são violências que portanto, a guerra traz somente violências contra os combatentes.
Locutora - Major Tomé a sua experiência não foi tão dramática. Felizmente, não é, mas também ainda hoje sonha com aqueles tempos.
Mário Tomé - Não, não, nunca sonhei.
Locutora - Não teve qualquer trauma desse tempo.
Mário Tomé - Não. Não tive, não tive. Uma questão de estrutura, uma questão de estrutura. Mas acho que, como dizia um combatente do Vietname, possivelmente muitos dos nossos o disseram, a guerra só acaba quando nós acabarmos porque também fui ferido ligeiramente e tal com uma mina, também como o Maurício. Mas não, como era um oficial do quadro, como não sofri violentamente, apesar do sofrimento que via à minha volta, que eu vi, não é, apesar da violência e da dureza dos combates e das próprias situações em que nos encontrávamos, portanto, por uma questão de estrutura enfrentei aquilo de uma determinada maneira. Felizmente que essa violência e toda essa reacção que tive, foi transportada para o nível da consciência que me permitiu ter um papel que a história me deu.
Locutora - Tenente-coronel Jorge Maurício, segundo dados que eu aqui tenho, foi em Moçambique, foi o teatro das operações onde morreram mais militares em combate. Há alguma explicação para isso.
Jorge Maurício - Essa explicação normalmente quem as tem são os grandes generais, os grandes estrategas. Não sei. Sei que Angola, na altura do 25 de Abril em Angola era o teatro de operação em que portanto estava melhor em termos de... em relação às nossas tropas. Depois Moçambique estava mal e a Guiné estaria muito pior, embora a Guiné estava muito pior mas era um território muito pequeno. A nível de Moçambique, na altura em que eu lá estive em Cabo Delgado digamos que não se podia viver, eram operações a todo o momento, portanto flagelações a todo o momento, Tête também estava muito mal. Na zona onde eu estive no Niassa, era a acção de minas anti-carro, anti-pessoal espalhadas por todo o lado. Porque em qualquer lado um indivíduo podia rebentar uma mina. De facto, talvez tenha sido o teatro de operações onde houve mais mortes e mais feridos precisamente por isso, por ser um teatro de dimensão grande e além disso porque a guerra ali já estava de facto numa fase que não era uma guerra enfim, pouco activa, quer dizer, os homens da FRELIMO tinham bons armamentos, eram bastantes, estavam bem treinados, ao contrário da nossa tropa que muitas vezes não estava convenientemente treinada e o nosso armamento portanto também era inferior.
Locutora - Era um exército que não estava bem treinado para a guerra.
Mário Tomé - Digamos que havia corpos especiais, digamos assim, os Comandos, Paraquedistas e tal tinham um treino mais intensivo, mais específico, depois as outras Companhias, as outras unidades, chamemos assim, até chamavam a 'tropa macaca' com um certo tom desprimoroso, não tinham razão porque a 'tropa macaca' sofreu muito e teve um grande papel, digamos assim, na guerra que lhe era imposta. É evidente que tinha uma preparação inferior e principalmente isso que o Maurício disse o armamento, quer na Guiné o PAIGC e duma forma muito, muito nítida e em Moçambique também, o armamento começou a ser superior muito cedo e nessa altura já era muito superior ao que levava a que a situação na guerra tivesse de evoluir para aquilo que acabou, por uma derrota militar, que é a minha opinião, quer o Regime, quer as Forças Armadas sofreram uma derrota militar e a derrota militar, eminente, declarada na Guiné, eminente em Moçambique, em Angola não era assim tanto, a derrota militar foi uma causa, uma das causas fundamentais do próprio 25 de Abril, na minha opinião.
Jorge Maurício - Há só aqui também um pormenor que eu penso que convém realçar. É que as nossas tropas por norma faziam dois anos, dois anos e meio em campanha. Digamos quando começavam a ser bons guerrilheiros, quando passavam digamos a conhecer bem a mata e a saberem-se defender e a saber atacar, nessa altura acabava a sua missão e vinham-se embora. Enfim, todos contentes e com muita razão. Agora os guerrilheiros da FRELIMO naquele caso e dos outros partidos, dos outros movimentos de libertação portanto homens que fizeram a guerra, muitos deles, desde o princípio até ao fim. Portanto, eram homens muito experientes e de facto tinham esse aspecto material superior ao nosso e além disso portanto uma grande experiência que nós nunca tínhamos.
Locutora - Portanto, tanto em Angola como Moçambique e Guiné era uma guerra de guerrilhas.
Mário Tomé - Já agora havia aqui um pormenor que eu também queria  colocar que não é despiciente e até às vezes é determinante que era o moral as forças em confronto. Enquanto que as nossas tropas iam para lá como carne para canhão, empurradas e portanto contrariadas, digamos assim, com as famílias que ficavam aqui com o coração na boca, com uma grande angústia, isso reflecte-se depois em tudo, na própria situação deles lá, os guerrilheiros os combatentes dos movimentos de libertação tinham um outro moral, não é. Faziam a guerra por uma necessidade moralmente assumida, conscientemente assumida, uma guerra de libertação enquanto daqui fazia-se, às vezes faziam-se operações para levantar o moral. O que é quase, é contraditório e é quase absurdo. Faziam-se operações para levantar o moral da tropa, a tropa não se deixar deslaçar, digamos assim. Portanto todas as operações que eram feitas, de uma forma geral, o moral das tropas era relativamente baixo comparado com os outros. Estavam na sua terra, com a sua gente e tem uma grande [Locutora - Determinação] determinação para com um objectivo justo, digamos assim.
Jorge Maurício - Se me dá licença. Há ainda uma coisa ao nosso obscurantismo político, quer dizer, à ignorância política do nosso militar opunha-se também uma cultura política que os guerrilheiros tinham porque eles eram treinados em várias bases e todos eles tinham cultura política, uns mais outros menos, mas efectivamente eles sabiam conscientemente o que estavam a fazer, sabiam quais eram os apoios, sabiam o que é que se passava em termos conflitos regionais noutros locais do mundo e pronto, quer dizer, o nosso militar, o nosso soldado não sabia nada disso.
Mário Tomé - Não sabia até porque não interessava que soubesse.
Locutora - Mas havia uma maioria que sabia, uma camada, os alferes milicianos que sabiam, não é, e esses...
Mário Tomé - Sim claro. Eles faziam a guerra porque tinham de fazer. Alguns desertaram e que depois logo a seguir ao 25 de Abril tão mal tratados foram, os desertores. Tiveram grande dificuldade em a sua situação ser devidamente compreendida.
Locutora - Porquê, foram considerados traidores?
Mário Tomé - Eu lembro-me perfeitamente que a seguir ao 25 de Abril aqui, já em 75 ou fins de 74, 75 ainda havia uma grande resistência, ainda havia quem dissesse que esses tipos traíram a pátria. Há para aí outros agora também a falar disso e portanto até os queriam prender. Portanto quando os desertores, independentemente das razões subjectivas, a razão mais objectiva que era o não ir para a guerra que era mais do que justa, não é, tiveram eles próprios um papel importante naquilo que foi a progressão do 25 de Abril que foi a desgovernalização e a desagragação do exército colonial. Estamos a falar do exército colonial, não é. Não nos podemos esquecer disso, não podemos pôr isso de parte.
Locutora - Honra seja feita ao Dr. Mário Soares quando chegou a Portugal foi dos primeiros políticos que referiu que os desertores e os refractários, era assim, os refractários tinham que regressar. Isso eu lembro-me bem.
Mário Tomé - Exactamente. Embora para os próprios, já agora que está aqui o Maurício, ele sabe isso perfeitamente, em relação aos deficientes das Forças Armadas tiveram que lutar muito e sofrer muito para serem reconhecidos enquanto tal.
Locutora - Pois é dessa luta que vamos falar tenente-coronel. Foram esquecidos muito tempo, não é.
Jorge Maurício - Sim. O que acontecia é que efectivamente nós tínhamos um país que estava em guerra, mas cá dentro das fronteiras não se considerava que estava em guerra. Havia umas perturbações da ordem pública lá para Angola, Moçambique e Guiné, mas tudo aquilo ia bem e ia acabando. Portanto, os nossos deficientes, homens que ficavam feridos em combate, em campanha ou noutros lados quaisquer, que regressavam a Lisboa, portanto eram metidos atrás dos muros dos hospitais, no caso do anexo do Hospital Militar, nas instalações da Estrela, etc. portanto aí tinham de permanecer até fazerem os seus tratamentos. Depois de estarem tratados, depois de lhes fornecerem uma prótese, ou uma operação, ou uma coisa qualquer, estes homens regressavam às suas aldeias e de facto não havia a nível nacional, quer dizer, nem mesmo nós deficientes tínhamos bem a noção de quantos homens de facto tinham ficado feridos. Portanto, ficaram feridos cerca de vinte mil homens, uns muito mais feridos do que outros, mas são cerca de vinte mil homens que durante aqueles treze anos ficaram com deficiências permanentes tal como também quase atinge o número de oito mil os combatentes que morreram durante estes treze anos de guerra colonial. Os deficientes, de facto, eu há bocadinho já tive oportunidade de dizer isso, nós vínhamos no avião e íamos para a cama de um hospital e o único contacto que nós tínhamos, portanto eram contactos fugazes, assim com o médico e depois era a enfermeira que ia lá para dar uma injecção, que ia lá para dar o pequeno almoço, ou não sei quê, portanto um dia eu por acaso, eu tive uma deficiência muito grande, portanto eu aos 22 anos, 23 anos de idade portanto vi-me cego e amputado e, obviamente, estava desesperado como é natural que todas as pessoas quer dizer, pensem que assim aconteceria. Eu de facto não tive ao pé da minha cama, não tive uma assistente social, não tive um psicólogo, não tive um psiquiatra, não tive absolutamente ninguém. Portanto tinha o cirurgião de em vez em quando ia lá cortar-me mais um bocado aqui, um bocado ali e fora disso tinha portanto um convívio com outros camaradas que também estavam deficientes e na altura já estavam mais recuperados do que eu, mas tudo isto, tudo isto desordenado e quer dizer a confusão, a nossa confusão a nível individual na nossa cabeça, o olhar para o futuro é uma coisa dramática e tanto mais dramática portanto nós a nível da Associação dos Deficientes das Forças Armadas fizemos já um inquérito, uma amostragem bastante válida, cerca de cinco mil casos, chegámos à conclusão que nas Forças Armadas portuguesas durante a guerra serviram, dos homens que serviram na guerra, cerca de 92% eram soldados. Portanto isto nos anos 60 ser soldado era ser um indivíduo, ter a quarta classe ou a terceira classe ou ser analfabeto. Isto corresponde também a dizer que eram homens que antes do serviço militar ganhavam o seu pão na agricultura, ganhavam na indústria, sei lá, ganhavam na construção civil e de um momento para o outro viram-se despojados da sua força, dos seus membros, portanto também estavam nos muros desse hospital a olhar para si próprios e a dizer, agora com este corpo o que é que eu vou fazer. Ora este impasse foi de geração em geração, obviamente que foi-se criando uma amizade em todos os deficientes das Forças Armadas, houve algumas tentativas de levar à Assembleia Nacional, enfim, determinadas reivindicações que foram imediatamente cortadas, houve algumas tentativas também de levantamento de rancho que também foram portanto abafadas e de facto o que libertou os deficientes das Forças Armadas em Portugal como todas as outras categorias de pessoas, todos os outros grupos de pessoas, mas quem libertou os deficientes das Forças Armadas em Portugal, obviamente, foi o 25 de Abril. Sem ele, portanto, nós continuaríamos escondidos, se calhar neste momento já não estávamos escondidos no Hospital Militar, embora ainda lá hajam quatro homens no anexo do Hospital Militar do tempo da guerra colonial ou nós já não estaríamos escondidos nos hospitais, estaríamos escondidos nas nossas casas que foi exactamente aquilo que me aconteceu a mim desde 1972 até que nasceu o 25 de Abril. Depois talvez mais à frente possa falar doutras coisas.
Locutora - O major Tomé, portanto, e o tenente-coronel Jorge Maurício, vocês quando sairam da guerra portanto, sabiam que haviam deficientes. Houve ligação entre vocês.
Mário Tomé - Bom, esse tipo de ligações só foram algumas, foram diferentes.
Locutora - No fundo eram vossos camaradas.
Mário Tomé - Sim, sim. Eles têm um opúsculo muito interessante sobre a história da Associação. Na comemoração dos vinte anos em que dizem, há lá títulos de pequenos capítulos que sintetizam o que se passou com estes deficientes das Forças Armadas. De nós fizeram soldados, De nós fizeram deficientes, De nós se fez o 25 de Abril, De nós fizemos cidadãos. Portanto, soldados, deficientes, De nós se fez o 25 de Abril. De facto a própria situação dos deficientes teve uma grande repercussão nas famílias e o isolamento do exército colonial e do Regime e da própria guerra eles tiveram um papel determinante, uns activo, outros passivo, mas tiveram objectivamente esse papel e depois do 25 de Abril De nós fizemos cidadãos e aí vem o relacionamento. Depois houve, eles não ficaram quietos, não ficaram à espera que fossem ter com eles, eles organizaram-se, lutaram, tiveram que lutar duramente, mesmo depois do 25 de Abril, tiveram que cortar estradas, tiveram que ser perseguidos pelos Comandos, tiveram que ser alimentados durante dias ali junto ao Palácio de Belém pelos soldados da PM. Portanto as relações foram diversas, dependia também das unidades militares, dependia dos militares, dependia dos oficiais, dependia disso tudo, não é. Porque havia vários graus de compreensão do fenómeno político geral, do fenómeno dos desertores, do fenómeno dos deficientes, do fenómeno da sociedade da sociedade em geral, do próprio movimento das Forças Armadas quando se passou depois a chamar, deixou de ser Movimento dos Capitães. O meu ponto de vista, já agora, como estava na PM mesmo que eu não quisesse lembrar-me, eles me lembravam e a Unidade teve um papel na ligação com a Associação dos Deficientes e com a sua luta e tal e portanto um certo orgulho por isso.
Locutora - A guerra colonial vai ser ainda o tema do nosso próximo programa. A acompanhar-nos estarão novamente o major Tomé e o tenente-coronel Jorge Maurício.
Fizeram este programa João Monteverde, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.

(Programa gravado da Antena 2 no dia 5 de Dezembro de 1997)

2ª Parte

Talvez fosse febre, aquele arder de Julho, em Lisboa
O sol esgazeante e bravo. Meio-dia.
João à beira do desmaio.
Uma dor nos olhos que cega
Do alto, na amurada do Uíge,
Esforça-se por distinguir os corpos
Que enformam aquela pequena multidão,
Que se mexe e confunde
Água oleosa batida por ventos sensuais
Bailava, traindo os olhos.
Sempre o calor imperturbável,
O corpo empastado de suor febril
A cabeça cresceu e pesa como nunca.
João não consegue estar lúcido
E, no entanto, sabe que não está louco, ainda.
Embaraça-se nos tentáculos do polvo
A multidão uivante, espasmódica
Lisboa ao fundo, postal quieto, enorme.
O navio atracado, as escadas de acesso, altas e trémulas
Enchem-se de soldados
As mãos a abanar com fúria, com tristeza,
Olhos vermelhos como peixe-rei.
Os gritos da multidão lá em baixo
A morrerem de afastamento e de cansaço.
O cais de Alcântara sucumbira sob a inundação
Das lágrimas ensopadas a lenço
Por entre carteirinhas de cigarros Paris
Que as senhoras MNF distribuíram
Maquilhadas de compaixão patriótica
Álamo de Oliveira, Os anos da guerra
“Senhores ouvintes, mais uma vez a Emissora Nacional regista a partida de um contingente de militares com destino ao Ultramar português. Neste momento grave, esta hora difícil para a nação, o Exército dá o seu contributo, a sua juventude, os seus melhores oficiais e os seus melhores graduados, pessoal altamente treinado para a defesa da integridade deste Portugal que se pretende uno e indivisível, para a sua defesa em todas as partes do mundo onde existe a terra portuguesa. A esta partida assiste, já assistiu a outras, o Ministro do Exército, brigadeiro Mário Silva que ao chegar ao cais era aguardado pelo sub-secretário de Estado do Exército, o chefe e sub-chefe do Estado-Maior do Exército, o governador militar de Lisboa, os comandantes das regiões militares e directores das armas. Após ter passado revista ao contingente militar…”
(Reportagem radiofónica)
“O armamento dos Movimentos de Libertação era superior ao nosso em qualidade. Por exemplo, os lança-granadas foguete RPG2 e RPG7 eram armas terríveis de fácil transporte e pontaria e nós nunca tivemos arma para lhes fazer frente, para além da bazuca de difícil manejo e transporte. Mesmo ao nível da elementar espingarda, a kalashnikov demonstrou ser mais eficiente e mais prática do que a nossa G3. Face à sua menor dimensão, menor peso e munições também mais leves, era uma arma mais apta ao tipo de guerra. Ao contrário do que tinha encontrado na Guiné, onde as evacuações eram rápidas e eficientes, em Moçambique, na zona de Macumia, só havia evacuações entre as 6 horas e as 15 horas. Depois, como o sol se punha pelas 17 horas, depois das 14 horas os helicópteros já não tinham capacidade de ida e regresso com a luz do sol, não tinham capacidade de voo nocturno. A alimentação consistia em dobrada liofilizada que ao ser recuperada em água deitava um cheiro nauseabundo, capaz de tirar o apetite mesmo ao mais esfomeado. Bacalhau, conservado na maior parte das vezes em latas com cal, tipo caixão. Atum e salsichas para acompanhar com arroz e massa. A batata e os vegetais era raro aparecerem. Carne, só a caça pois a congelada também não aparecia. Face ao facto de na Companhia só existirem três frigoríficos a petróleo, marca Zero, para cerca de 160 homens. Bebidas frescas só ao nascer do dia. As que tinham passado a noite no único frigorífico destinado aos bares. Numa zona infestada de mosquitos, mosquiteiros existiam para quem os pagasse do seu bolso. A preocupação com os feridos graves e estropiados era tal que só em 1 de Março de 1973 é criada a pensão de sobrevivência, mas continuaram sem apoio de psiquiatras ou assistentes sociais que acompanhassem a sua adaptação à nova situação. Na prática, a única coisa que havia era o espírito de sacrifício e o amor à pátria que se mostrava madrasta.”
Salgueiro Maia, Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril
“Entrevistador - De que terra é que tu és?
Entrevistado - Santa Gombanguião
Entrevistador - Então conta lá o que é que tu sabes.
Entrevistado - O que eu sei dizer mesmo uma vez é que uma vez o siôr pastor Santos Barroso estava eu na igreja.
Entrevistador - Onde é que é essa igreja?
Entrevistado - A igreja em Gombanguião
Entrevistador - Sim. Diz lá.
Entrevistado - E diz por ele que devem trabalhar para estar limpos, mas vocês devem trabalhar muito bem porque isto amanhã vai ser nosso.
Entrevistador - E depois?
Entrevistado - Nós dissemos, como pode ser nosso? Ele amanhã vai deixar. Nós já estamos habituados com eles. Nos abonam as coisas, temos o resto das coisas. Casas já temos.
Entrevistador - Quem são eles?
Entrevistado - São os nossos brancos. Nós vivemos aqui em Gombanguião.
Entrevistador - Sim. Diz lá mais.
Entrevistado - Está bem, vocês são burros. Vocês são burros, isto ainda não é coisa suficiente. Vocês são burros.”
Entre 1961 e 1973, Portugal manteve uma média anual de 105 mil homens envolvidos nas três guerras coloniais, aproximadamente 54 mil em Angola, 20 mil na Guiné e 31 mil em Moçambique. Pela televisão e rádio, os militares nas colónias africanas enviavam para os familiares mensagens de Natal.
“Para Lassales, em Coruche, vai falar seu filho Alves. Para meus pais, esposa, mano e restante família, amigos com votos de Feliz Natal, Bom Ano Novo com muitas felicidades.
Para António Vieira Lopes, em Vale do Cão, vai falar seu filho, o seu filho Lopes. Para meus pais e restante família, amigos, madrinha de guerra, com votos de Feliz Natal, Ano Novo com muitas felicidades.
Para Vila Nova de Ourém vai falar o seu filho Mário. Para meus pais e mais restante família, amigos com votos de Feliz Natal, Bom Ano Novo com muitas felicidades.”
‘Adeus e até ao meu regresso’. Mas quantos não regressaram? E quantos foram os que regressaram mutilados, feridos, perturbados? Com o major Tomé e o tenente-coronel Jorge Maurício da Associação de Deficientes das Forças Armadas vamos continuar a falar da guerra colonial. O tenente-coronel Jorge Maurício começa por nos falar da solidariedade e apoio que os deficientes receberam ao terminar a guerra.
Tenente-coronel Jorge Maurício - Eu pessoalmente, portanto eu assim que o meu comandante de Companhia, o meu comandante de companhia de Moçambique chegou, portanto o tenente-coronel Martins Lopes, a primeira coisa que ele fez em Portugal foi procurar-me a mim e um outro solado que também teve um acidente, também ficou amputado de uma perna. A Associação dos Deficientes das Forças Armadas conseguiu, portanto fundou-se logo em 14 de Maio de 74, passado três semanas do 25 de Abril. Nós depois mais tarde, viemos a tomar o Palácio da Independência, onde estivemos durante 19 anos. Palácio da Independência esse onde ontem parece que houve assim uma espécie, não sei, para mim é assim uma espécie de vergonha nacional. Quer dizer, nestes dias ainda gritar-se viva o Salazar, acho que é um bocadinho deprimente e outras coisas que por lá aconteceram quanto a mim tristes, tristes coisas.
Locutora - A memória dos homens é curta.
Tenente-coronel Jorge Maurício - É, parece que sim, mas foi nesse palácio. Nunca tiveram outra memória, se calhar. Bom, mas quer dizer, portanto, nós ali naquele palácio e naquele salão nobre, nós todas as terças-feiras, pelo menos, nos juntávamos toda a noite a discutir e eram duzentos, trezentos, quatrocentos homens a tentar ver o que é que nós necessitávamos porque as nossas deficiências são muito diversas. Uns são cegos, outros são amputados, nas mãos, outros nas pernas, outros estão em cadeiras de rodas, são paraplégicos ou tetraplégicos, estão na cama, outros têm doenças internas. Enfim, é uma multidão de deficiências, todas elas díspares. Então começámos com muita facilidade a organizar a nossa legislação, o pedido da nossa legislação. Tivemos que, a determinada altura, para vencer… Ah, antes disso, a ADFA depois negociou com o Ministério da Defesa Nacional, na altura era ministro o senhor general Firmino Miguel, portanto na altura tenente-coronel Firmino Miguel, negociámos o decreto-lei 43/76 que veio a sair depois em 20 de Janeiro, mas nós tivemos sempre a ideia daquilo que necessitávamos. Quer dizer, nós sabíamos que lei é que queríamos, a única coisa que a Defesa Nacional teve de fazer foi colocar os pontos e as vírgulas. Quer dizer, dar uma ordenação jurídica àquilo porque os deficientes das forças armadas sabiam exactamente o que é que queriam, o que é que era justo e o que era digno e posso dizer e posso afirmar isto em todo o lado que, até hoje, e eu estou há 23 anos na Associação, nunca houve um governante, nunca houve uma entidade militar que dissesse assim: Vocês estão a pedir isso, mas isso é injusto. Toda a gente sempre concordou com a justeza das nossas reivindicações porque efectivamente elas são claras, são claras aos olhos de toda a gente, mas nós para conseguirmos que o decreto-lei 43/76 saísse, efectivamente tivemos que ir para a rua, mostrar as próteses, as bengalas, as cadeiras de rodas, etc. para que a força da opinião pública que foi extraordinária na altura, que nos apoiou inequivocamente, foi preciso a força da opinião pública, foi preciso a força dos militares, dos deficientes militares na rua, foi preciso a compreensão e a solidariedade total dos militares que estavam no activo, independentemente dos lugares, dos postos, enfim, dos cargos que ocupavam. Portanto, tivemos uma solidariedade total para que saísse esse tal decreto 43/76, portanto em 20 de Janeiro, mas esse decreto saiu amputado porque nós quando pedimos legislação, quando trabalhamos na legislação era para que, efectivamente, todos os homens que durante o período da guerra colonial se deficientaram fossem abrangidos como combatentes de guerra porque, quer dizer, dentro daquele azar que é um indivíduo ficar deficiente, fica deficiente na frente de combate, quer dizer, mas eu tenho uma reparação, digamos que moral e pecuniária, que dá-me para ter uma vida digna. Mas se eu tivesse tido o meu acidente e tivesse a mesma deficiência, mas tivesse o azar de ter sido num acto de serviço, eu não tinha praticamente nada. Quer dizer, eu recebia tanto como um funcionário público que, portanto, tem uma determinada pensão porque tem um acidente no ministério, ou num carro do ministério ou uma coisa qualquer. Portanto, nós continuamos ainda a ter homens abrangidos pelo estatuto da Aposentação Pública e, de facto, aquilo dá-lhes uma pensão miserável, é autenticamente uma pensão miserável e, além disso, dá-lhe condicionalismos terríveis, como por exemplo, o homem que é deficiente em serviço, tem uma pensão, sei lá, por exemplo, de 30 contos, trabalhou a sua vida toda na função pública, ele acaba de se reformar, quando se reforma, ele tem que negar uma das pensões, só pode ter uma. Então opta por aquela que entende, portanto, pela maior. Quer dizer, a maior normalmente é a do rendimento do trabalho, portanto é aquela resultante dos anos de serviço que fez e ele é obrigado a deitar fora aquela indemnização que tinha por ser deficiente que, no fundo, é uma indemnização que ele acaba por gastar porque um deficiente tem efectivamente gastos extras, tem necessidade de gastar mais dinheiro do que o cidadão normal, que não é deficiente e depois temos ainda os homens que, estando-se a preparar para a guerra, ou até no intervalo da guerra. Conheço, por exemplo, um associado nosso na Associação que é o Armindo Roque, esse homem esteve numa zona terrível da Guiné, teve um mês de férias, conforme todos tínhamos, veio aqui para Portugal e andou com um carro, absolutamente desvairado, por todo o lado, teve um brutal acidente de automóvel e ele não teve uma única pensão. Eu só pergunto se esse homem não estivesse na guerra, se ele tinha andado daquela maneira conforme andou no carro e todos esses acidentes que se deram a caminho do quartel, do quartel para casa, a caminho das manobras, isto e aquilo. Há imensas pessoas, até acidentes dentro do quartel, que ficaram feridas, outras em instrução, que efectivamente têm um código de deficientes muito injusto porque, efectivamente, há uma coisa que nós, há bocadinho, estávamos a falar do nosso soldado estava menos motivado. Sim, estaria menos motivado politicamente, mas o nosso soldado, em combate, dava tudo e mais alguma coisa, durante as caminhadas, durante…, enfim, todo o nosso soldado, de facto, por aquilo que eu me apercebi, portanto era um soldado absolutamente extraordinário. E não há dúvida que devido aquele obscurantismo político que havia, quando os soldados portugueses juravam bandeira, juravam mesmo e estavam dispostos a correr aqueles riscos que se dizia…
Locutora - Iam conscientemente? Iam, sabiam para o que iam?
Tenente-coronel Jorge Maurício – Sim, sim e assumiam e assumiam e eles quando estavam na instrução, eles sabiam que se estavam a preparar para a guerra e estavam a dar o máximo de si na instrução para que depois, portanto nos locais mais difíceis, depois na frente de combate tivessem melhores saídas. Agora, de facto a Associação dos Deficientes das Forças Armadas continua a lutar com este grande problema. Nós temos uma série de legislação, um pacote legislativo com várias pequenas peças, que nem sequer são caras ao Estado, devidamente aprovadas pelo Ministério da Defesa Nacional, mas que estão na Secretaria de Estado do Orçamento à espera, à espera. Quer dizer, já passaram N ministros pela Defesa Nacional, já passaram N Secretários de Estado, só que, de facto, esse problema nunca mais é resolvido. Quer dizer, nós já dissemos a um Secretário de Estado, ele na altura não gostou, também não interessa dizer quem foi o Secretário de Estado, em que nós dissemos: Senhor Secretário de Estado dá-me a ideia que o Ministério da Defesa está a tentar resolver estes casos pela via biológica. O senhor Secretário de Estado não aceitou, mas nós estamos fartos. Já há 23 anos que acabou a guerra, muitos de nós estamos feridos há 30 anos, há 25 e mais e de facto, quer dizer, a Associação dos Deficientes das Forças Armadas tem um controlo dos seus associados desde que a Associação foi fundada até agora já morreram 900 sócios e a triste realidade é que a média de idades dos sócios que morreram foi 49 anos. Portanto, nós sabemos da nossa velhice precoce, nós estamos absolutamente conscientes que a nossa vida, em princípio, será mais curta, mas isso tudo também nos ajuda a revoltarmo-nos, a revoltarmo-nos contra aqueles que, enfim, não se preocupam nada que os nossos assuntos estejam na gaveta, têm todas as calmas como se tivessem todo o tempo do mundo para resolver aquilo que não está resolvido. Não sei, penso que a Associação dos Deficientes das Forças Armadas, depois deste ministro, deste Secretário de Estado tomarem conta das ocorrências, do que é que se passa, do que é que lá está, nós efectivamente, os deficientes, não estarão muito mais tempo calados e quietos porque é impossível tolerar mais tanta demora dos governos. Em contrapartida, eu devo dizer, porque isso é absolutamente justo, que nós temos tido das entidades militares, quer da Armada, quer do Exército, quer da Força Aérea, o máximo apoio. Portanto, os militares continuam a ser absolutamente solidários connosco, continuam-nos a apoiar perfeitamente, mas aí nós já tememos alguma coisa. Se algum destes camaradas militares novos me estiver a ouvir, que me perdoe, mas eu tenho receio que quando os nossos generais passarem a ser homens que não foram à guerra, quando os nossos coronéis passarem a ser homens que não foram à guerra, eu não sei o que é que acontecerá aos deficientes das forças armadas. Nós temos muito medo porque, em 1929, Salazar arranjou um código de inválidos que era um documento óptimo, era um decreto, era uma lei óptima para salvaguardar os interesses dos inválidos de guerra, esses homens ao longo da vida foram vendo, passo após passo, cortados os seus benefícios, os seus direitos e chegaram ao 25 de Abril na humilhação absoluta, ganhavam uma pensão de 100 escudos por dia. Essa pensão em 29 era muito dinheiro, aí eram considerados como inválidos de guerra, eram considerados, enfim, como homens, como compatriotas, mas depois o governo de Salazar abandonou-os e eles viveram e morreram na pior das misérias. Nós não vamos admitir que isso aconteça connosco.
Locutora - Major Mário Tomé, o que é que tem a acrescentar ao que disse o tenente-coronel.
Major Mário Tomé - A primeira questão, já agora, temos que discutir também um bocadinho. Eu acho que ficou, pelo que ele disse, ficou claro que a solidariedade com os deficientes não foi assim tão grande como ele começou por dizer, não é. Eu compreendi, quando ele avançou por aí, mas depois vê-se que não, porque houve, de facto, quando foi preciso. Isto é importante porque, para que a memória não seja curta, das pessoas que nos estão a ouvir. Eles tiveram que sair para a rua, eles tiveram que cortar estradas, ruas, tiveram que cercar o Palácio de Belém, tiveram que ir para a Assembleia da República mostrar as próteses, como ele disse, para que aqueles que estavam no poder e era o MFA que estava no poder e eram os partidos, pronto, democráticos que estavam no poder se apercebessem ou, pelo menos, fossem obrigados a ver. Portanto, essa é uma questão que… parece que… Pronto, é assim mesmo, ainda hoje eles consideram que as coisas não estão como deve ser e não estão, com certeza. Em relação às transformações dentro das Forças Armadas, é um tema. Eu acho que o que é necessário, primeiro, é que o poder político seja obrigado a responder adequadamente, primeiro. Segundo, que as próprias Forças Armadas evoluam e quer a hierarquia quer o próprio governo estão a dificultar isso, evoluam num sentido… Há interesses… Há os deficientes que estão organizados, mas há os interesses dos militares que estão agrupados, há os interesses que têm que ter direito à sua própria associação, à sua própria maneira de estar e isso ajuda a que as próprias Forças Armadas se democratizem e tenham outra perspectiva das coisas e estejam mais prontas e adequadas para entender isto e até a terem um papel positivo que, de vez em quando vão tendo, na elaboração das políticas de defesa e que tem a ver com todos estes casos. Isto assim para acrescentar ao que ele disse. Não é para acrescentar, foi um comentário. O que ele disse, de facto, foi…
Tenente-coronel Jorge Maurício – Nós estamos a ser até um bocadinho poetas. Se os nossos governantes perguntassem ao povo se, efectivamente, queriam que nós estivéssemos na situação onde estamos ou se queriam que, efectivamente, estivéssemos na posição em que a ADFA quer que os deficientes estejam, obviamente que a resposta seria lógica. Quer dizer, inclusivamente acontece isto. Quer dizer, agora estamos com um problema entre mãos terrível, o problema do ‘stress’ de guerra. A mim nunca me passou pela cabeça que pessoas que andavam na guerra, depois faziam a sua vida normal, depois de terem acabado a comissão, que depois mais tarde vinham a sofrer. Mas o que é verdade é que temos imensos homens com ‘stress’ de guerra que foram homens que saíram da guerra, trabalharam, casaram, tiveram filhos e hoje perdem o emprego porque não vão trabalhar, divorciam-se e são postos fora de casa ou põem as mulheres fora de casa porque têm uma relação péssima com a família, com a mulher, com os filhos, com toda a gente. Quer dizer, isso acontece, é um drama. Quer dizer, nós estamos, continuamos ainda a demorar muito tempo a encarar este problema. Este problema já foi encarado pelos Estados Unidos da América. Portanto, em que o ‘stress’ de guerra é considerado, conforme em muitos outros países, o ‘stress’ de guerra é considerado. No nosso país ainda não há legislação para isso, nem seque consta da nossa tabela nacional de incapacidades e estamos perante homens que sofrem muito, o sofrimento não é só dos homens que estão amputados, ou dos homens que estão numa cadeira de rodas, ou dos homens que estão cegos. Quer dizer, os homens que não conseguem descansar, nem de dia nem de noite, os homens que estão absolutamente perturbados, esses talvez sejam os homens que sofrem mais. Quer dizer, eu sempre disse, dentro da minha vida de 23 anos na Associação em que nós não falamos muito das deficiências uns dos outros, mas somos obrigados em muitos momentos a estar a analisar a deficiência. Quer dizer, a pior deficiência ainda é a deficiência mental e nós efectivamente temos camaradas nossos que existem e nem sequer sabem que existem e temos camaradas nossos que ficaram terrivelmente doentes da mente, mas a doença deles é, por exemplo, uma esquizofrenia, uma esquizofrenia, portanto, que é uma doença portanto endógena, mas que, por vezes há qualquer coisa que a faz aparecer mais cedo e neste caso é aquela exposição ao perigo eminente, uma exposição aqueles horrores da vida na frente que levou a que esses homens, em vez de serem esquizofrénicos aos 30 anos de idade, acabaram por ser aos 21, aos 22 e temos um número infindo de homens que efectivamente… Clinicamente a gente sabe que a doença não foi apanhada na guerra, mas nós também sabemos e temos a certeza que a doença foi agravada na guerra.
Locutora – Como última pergunta, não é uma pergunta, é mais um apelo. Vocês que estiveram na guerra colonial e que viveram esses tempos dramáticos, deixem aqui uma mensagem a quem nos esteja a ouvir.
Major Mário Tomé - A mensagem que eu deixaria ou que eu deixarei é esta. É porque as mensagens… Eu tenho que deixar de acordo com os tempos, não é, com as circunstâncias. É que, em primeiro lugar, o 25 de Abril foi uma necessidade absoluta do povo português que a assumiu como tal e condenou, duma forma explícita na rua, em todo o lado, consciente e emotivamente, a guerra colonial que era, à partida, uma guerra criminosa, mesmo perante já a legislação internacional da altura durante o século. Hoje é o século do povo. A guerra colonial era já uma guerra criminosa, foi uma guerra de opressão e de repressão e portanto o 25 de Abril foi um momento alto da nossa história em que não sei se alguma vez o povo português participou tão activamente e tão entusiasticamente num acto histórico como aquele, não é, numa transformação tão profunda e portanto o 25 de Abril deixou marcas profundas nesta sociedade que as terá que as desenvolver. Não poderá deixar que elas voltem para trás. Há aí agora umas vozes que aparecem, vão aparecer no dia 1 de Dezembro, em frente ao palácio da Independência. É de pessoas que estão fora da história, que estão viradas para si próprias, estão viradas para o passado e que nada têm de novo nem de bom, mesmo que venham dizer que é Portugal que está a vender-se ao estrangeiro. Eu também posso ter essa opinião nalgumas questões e em muitas delas, mas não é por aí, não é por aí. É pelo aprofundamento de tudo aquilo que o 25 de Abril nos deu, das conquistas sociais, das conquistas democráticas, da liberdade e de dizer um rotundo não à guerra, àquela e a todas.
Locutora - Tenente-coronel.
Tenente-coronel Jorge Maurício – Ora o que eu tenho a dizer em poucas palavras é que, para mim e para os deficientes das Forças Armadas, o 25 de Abril foi o acto nacional libertador. Estávamos, efectivamente, metidos num gueto e pudemos de lá sair graças ao 25 de Abril. Graças a ele, aos políticos que regressaram a Portugal e a todos quantos, até hoje, têm ajudado a construir uma democracia sólida. Eu peço a todos os jovens do nosso país, mesmo aos militares, que sejam grandes agentes da paz, que em cada pessoa neste país que exista um combatente a favor da paz. Portugal, penso que deve estar, em termos militares, em operações de carácter humanitário, ajudar outros povos, portanto a resolver as suas diferenças, as suas questões, mas que nós o façamos sempre com muita responsabilidade, que sintamos sempre que, efectivamente, não estamos a fazer guerra, estamos a fazer paz.
Com mãos se faz a paz se faz a guerra
Com mãos tudo se faz e se desfaz
Com mãos se faz o poema e são de terra
Com mãos se faz a guerra e são a paz
Com mãos se rasga o mar
Com mãos se lavra.
Não são de pedra estas casas, mas de mãos
E estão no fruto e na palavra as mãos
Que são o canto e são as armas
E cravam-se no tempo como farpas
As mãos que vês nas coisas transformadas
Folhas que vão no vento, verdes harpas
De mãos é cada flor, cada cidade
Ninguém pode vencer estas espadas
Nas tuas mãos começa a liberdade
Locutora - A guerra colonial foi tema de cinco programas. Os anos 60 continuam na próxima semana para falarmos do movimento estudantil de 1961, como sempre com a colaboração do professor Fernando Rosas e o convidado doutor Medeiros Ferreira.
Fizeram este programa Ana Almeida, Maria dos Anjos Pinheiro, Paulo Rato e Esmeralda Serrano.

“ERA UMA VEZ UM MILENIO”. Em tempo de mudança, a história do século XX. Ciência, literatura, arte, filosofia, política.

(Programa transmitido na Antena 2 no dia 12 de Dezembro de 1997)
Transcrição Ireneu Batista