Entrevista com vários entrevistados - 25 de Abril, a sua preparação e ligações

ERA UMA VEZ UM MILÉNIO

Entrevista com Costa Gomes, Magalhães Mota, António Reis, Ruben de Carvalho, Nuno Teotónio Pereira e Fernado Rosas
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”

Por Adelaide Marques, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
 
 
Tínhamos anunciado para hoje a presença do engenheiro João Cravinho, infelizmente razões de última hora impossibilitaram a vinda do ministro aos nossos estúdios, mas outro encontro ficou já programado numa conversa a transmitir brevemente.
E continuamos com a história da nossa história que está a aproximar do 25 de Abril de 1974. O ano que antecedeu esta data libertadora foi de grande oposição ao Regime. O governo marcelista aproximava-se do fim.
“Desde que assumi as actuais funções tem sido minha preocupação revitalizar a acção corporativa e acelerar o andamento de tudo quanto respeita á melhoria da situação dos homens que trabalham, seja da função pública, seja do comércio, na indústria ou na agricultura.”
(Intervenção de Marcelo Caetano)
Em 1973, vamos destacar alguns acontecimentos a nível internacional como a assinatura dos acordos de Paris põem termo à guerra do Vietname, nos Estados Unidos Henry Kissinger é eleito novo Secretário de Estado.
Na Argentina é eleito Peron e em Espanha atentado contra o chefe de governo Carrero Blanco e no Chile a 11 de Setembro um golpe de estado de direita liderado por Pinochet derruba o governo de Salvador Allende.
Chile, início de 1973, uma greve de 74 dias nas minas de cobre custou ao governo 75 milhões de dólares. Segue-se a greve dos camionistas, paralisando o sistema de transportes do país, falta o pão e os combustíveis. Esperando reduzir a oposição direitista, Allende nomeou vários generais para o seu gabinete. O exército que se mantivera afastado da política, estava agora no centro das operações. Era o princípio do fim da experiência chilena do socialismo democrático. A 11 de Setembro a marinha chilena ocupa o porto de Valparaíso e prende cerca de três mil habitantes. Pela rádio anuncia-se que uma junta militar chefiada por Pinochet havia substituído o governo constitucional.
Salvador Allende acompanhado por alguns amigos prepara-se para defender o palácio presidencial. Ao começo da tarde, Salvador Allende e vários companheiros foram assassinados pelo exército de Pinochet.
Em Santiago do Chile, ao nascer de um dia de vergonha, o fascismo assassinou Allende. Salvador Allende, morrendo de corpo inteiro.
Nas ruas de Santiago e em todo o Chile, os partidários de Allende ainda resistem em combates contra o exército, combates desiguais e violentos. Os partidários de Allende são mortos, presos e muitos desaparecidos. Chove em Santiago do Chile num amargo de Setembro de 1973.
1973, ano trágico para o Chile, mas de esperança para Portugal. O Movimento dos Capitães consolida ligações, solidariedades e canais de divulgação e informação dentro e fora dos quartéis. Sobre o 25 de Abril, a sua preparação e ligações, os depoimentos de Costa Gomes, Magalhães Mota, António Reis, Ruben de Carvalho e Nuno Teotónio Pereira.
Fernando Rosas - Da parte do que, enfim, viria a ser o MFA, alguém o informou que se ia passar à acção militar?
Costa Gomes - Bom, directamente, ninguém me informou, mas indirectamente, quer dizer, os meus ajudantes, o chefe de gabinete, davam assim algumas deixas, davam umas deixas, mas directamente ninguém me informou.
Fernando Rosas - O senhor sabia que no dia 25 de Abril a tropa ia sair para a rua?
Costa Gomes – Não.
Fernando Rosas - Não sabia.
Costa Gomes - Não sabia, nem o próprio general Spínola sabia. A tropa saiu para a rua a 25 de Abril um bocado precipitadamente por causa do 16 de Março. 16 de Março é que provocou a saída mais rápida do 25 de Abril porque a saída para a revolução só estava projectada para Maio.
Fernando Rosas - Porque é que não aceitou a presidência da Junta de Salvação Nacional, tanto quanto se sabe, vi escrito em vários sítios que foi oferecida pelos capitães?
Costa Gomes - Bom, não aceitei por um motivo simples. De todas as pessoas que estiveram no Ultramar com lugares, enfim, de destaque, sobretudo de Comando Chefe, eu fui o único que nunca tive aqui em Lisboa um escritório, nem um grupo que fizesse a minha propaganda. O Spínola tinha, o Kaulza tinha, usando vários até. Alguns deles inconcebíveis porque a propaganda fazia-se não só através de certos jornais, a “República”, o Rego começou a dar as suas deixas a favor do Spínola, mas havia outros. Bom, havia os jornais da direita que davam sempre um apoio, mais ou menos coberto ou encoberto à continuação da guerra no Ultramar. É claro que aqui havia um grupo, sobretudo de proprietários e capitalistas que não lhe convinha que...
Fernando Rosas - E essa razão é que o levou a não aceitar a presidência da Junta?
Costa Gomes – Foi, foi porque eu estava convencido que o Spínola com as suas ligações aos jornais e aos políticos [Fernando Rosas - Ia fazer a vida negra, no caso do senhor marechal aceitar.] Não, a mim não era isso bem que eu tinha medo. Eu o que tinha, o que estava convicto e isso foi um engano tétrico, é que o Spínola que tinha um apoio maior, muito maior dos políticos do que tinha.
Fernando Rosas - Quer dizer, achou mais conveniente para a nova situação política que ele assumisse a presidência da Junta. 
Costa Gomes – Foi um erro. Eu hoje reconheço que foi um erro político porque é claro que o Spínola tinha uma ideia que era inexequível na altura que era fazer a tal federação dos estados de expressão portuguesa que era impossível e custou muito a convencê-lo a fazer aquele decreto 13/74 que admitia a autonomia e até a independência.
Fernando Rosas - Em que momento é que, e esta é a minha última pergunta, em que momento é que o senhor marechal compreendeu que a hierarquia normal de comando se tinha rompido após o 25 de Abril. Em que momento é que percebeu que qualquer coisa na cadeia de comando tinha sido rota com o movimento militar.
Costa Gomes - Não foi rota, foi separada porque, realmente, eu julgo que a ideia do Spínola de levar por diante a sua ideia política foi o principal motivo para a divisão do MFA e é claro que isso foi prejudicialíssimo a este país. A constituição dentro do MFA de dois grupos, um grupo spinolista e um grupo antispinolista foi terrível porque praticamente começaram a colidir em muitos pontos e isso...
Fernando Rosas - Talvez isso fosse inevitável, em certo sentido.
Costa Gomes - Eu julgo que talvez se o Spínola não tem sido tão obcecado nas suas ideias talvez tivesse evitado porque ele, não sei se o senhor professor sabe, ele por mais de uma vez quis pedir a sua exoneração e eu insistia com ele sempre porque a primeira pessoa a quem vinha comunicar era a mim sempre. Aguenta-te porque estamos metidos num barco em que não podemos recuar.
Fernando Rosas - Senhor marechal e esta vai ser mesmo a última pergunta. Como é que hoje, à distância, meditando sobre a sua experiência de então, como é que hoje classifica e avalia o professor Marcelo Caetano como primeiro ministro.
Costa Gomes - Bom como primeiro ministro eu acho que o professor Marcelo Caetano foi muito fraco, foi muito fraco porque não tinha poder de decisão nenhum. Embora fosse das pessoas mais inteligentes com quem eu lidei, que realmente conseguia apanhar muito bem e sintetizar muito bem aquilo que se dizia numa reunião, o que achei é que depois não tinha força moral para ditar aquilo que acho que devia ter feito.
Fernando Rosas - Não terá sido portanto um homem à altura das circunstâncias.
Costa Gomes - Acho que não, acho que não foi. Foi realmente uma pena porque, de facto, talvez se tivesse arranjado um homem, que não sendo completamente dependente do professor Marcelo Caetano fosse na altura em que o Salazar caiu da cadeira e fez aquele hematoma que praticamente o inutilizou que havia outras pessoas capazes de, com mais energia [Fernando Rosas - Por exemplo] Por exemplo, aquele professor da Faculdade de Medicina, o Miller Guerra.
Locutora – E vamos recordar agora o depoimento de Magalhães Mota
Fernando Rosas – Portanto entra-se na altura em que vocês, uma parte de vós, começam a abandonar a Assembleia. Há o almoço com o professor Marcelo Caetano. Estamos em 72 ou 73. Não sei. Que homem é que vocês encontraram? Que interlocutor é que encontraram nessa altura? Um homem que se aproximava do fim? Um homem combativo? Qual foi...
Magalhães Mota – Não. A noção que eu guardo não era de quem queria a luta, manifestava alguma preocupação sem evidenciar muito em relação a que houvesse um processo de saídas sucessivas. Penso que ele não quereria isso e queria expor algumas queixas. No fundo ele achava que não o tínhamos ajudado e que nos tínhamos colocado tão imediatamente numa posição de oposição que não lhe tínhamos dado sequer margem de manobra. No fundo era e era mais uma posição recriminatória do que uma posição combativa.
Fernando Rosas - Mas dentro do outro campo, há muitas deserções. Digamos que aquele bloco pró-marcelista inicial vai-se desfazendo, não são só os liberais que saem, mesmo a nível económico, muitos dos jovens tecnocratas que tinham, começam a sair nessa altura. Vocês tinham articulação com esses jovens técnicos. Salgueiro...
Magalhães Mota - Sim, sim, sim. Quer dizer, o João Salgueiro [Fernando Rosas - O Rogério Martins] era do nosso tempo, estava na SEDES, connosco todos na prática. O Xavier Pintado também tinha boas ligações connosco, eu era chefe de gabinete do Rogério Martins e fui-o até Setembro de 71. Saí na altura da revisão constitucional [Fernando Rosas – Essa componente sai também por razões políticas, no seu entender? Ainda que não tão explícitas como hoje] Acaba por ser também o verificar que o sistema também aí não ia evoluir.
Fernando Rosas – É porque o próprio Ministro da Economia e Finanças, o Dias Rosas, que era o que tinha no seu gabinete grande parte desse, na sua equipa, grande parte desses homens ele também se vai demitir em relativa rotura, ou pelo menos pessoal, com o Marcelo Caetano. Acha que isso arrasta os outros ou não?
Magalhães Mota – Não. Eu penso que já havia antes alguns atritos entre os Secretários de Estado e o Ministro, mas aí nós nessa altura, para além dos contactos com os Secretários de Estado e havia mais com quem lidávamos, o Dr. Martins dos Santos que estava no Fomento Ultramarino e que tinha muito boas relações com o general Spínola, o professor Veiga Simão deu-nos alguma cobertura, o Ministro da Marinha do tempo, que é hoje o almirante Pereira Crespo. [Fernando Rosas - Um homem da maçonaria.] Exacto. E que nos dava apoio e que por exemplo patrocinou, ainda que discretamente, algumas deslocações à Guiné na altura das negociações para a candidatura do general Spínola.
Fernando Rosas - A SEDES, vocês pensaram como um partido da oposição? Como uma oposição disfarçada?
Magalhães Mota - A SEDES [Fernando Rosas - Mas o Regime pensou.] O Regime claramente pensou, o Regime claramente pensou e assustou-se. Quer dizer, aquelas reacções pelo aparecimento da SEDES foram particularmente significativas. Aliás apareceram dois tipos de análise em relação à SEDES. Eram muito curiosas. Era um grupo que pensava que, ligada à extrema direita do Regime, que pensava que tínhamos ali um cavalo de Tróia e portanto aí é o Regime ser minado por dentro porque já tinha ali um embrião de um partido e depois havia também muita gente, inclusivamente amigos nossos, que pensavam que ia haver sim uma evolução do Regime, mas com características de um liberalismo tecnocrático, mas que eles também não queriam, não queriam.
Locutora – As palavras são agora de António Reis.
Fernando Rosas – Se pudesse resumir, brevemente, o que é que era, em termos de inserção social, o Partido Socialista nas vésperas do 25 de Abril.
António Reis - O Partido Socialista nessa altura era, sobretudo, um partido de quadros intelectuais, de profissões liberais, de alguns estudantes e com algumas poucas extensões no movimento sindical e operário, dalgumas elites operárias e sindicais, sobretudo, na zona da grande Lisboa, mas era sobretudo portador duma ideia e duma alternativa em termos programáticos e estratégicos para Portugal. Todos nós tínhamos consciência de que uma vez em democracia, uma alternativa como aquela que nós representávamos facilmente seria capaz de captar a adesão de muitíssima gente. Também não vamos exagerar o que era a força do Partido Comunista nessa altura e os outros movimentos tinham. O Partido Comunista teria alguns escassos milhares de militantes na altura e por outro lado sobretudo nós tínhamos uma visão da História muito centrada na Europa da altura e sabíamos que um país como Portugal, fazendo parte desta Europa, necessariamente teria de caminhar para um modelo que não se afastaria muito do modelo das democracias parlamentares da Europa, embora muitos de nós quiséssemos explorar ao máximo aquela margem de originalidade que uma revolução como a nossa poderia permitir nesse contexto, mas apesar de tudo o modelo da democracia parlamentar era um modelo em que todos acreditávamos e estávamos convencidos de que esse modelo poderia permitir uma implantação e um apoio eleitoral vasto no Partido Socialista.
Locutora – O 25 de Abril segundo Ruben de Carvalho.
Ruben de Carvalho – Quem toma o comando, quem toma a orientação, quem toma a iniciativa não é a hierarquia militar comum, como teria sido se fosse um caso, por exemplo, com se desenhava na hipótese dum “putsch” do Kaulza de Arriaga, mas é, digamos, um número muito grande de jovens oficiais que introduz, imediatamente, uma subversão da própria estrutura militar o que do ponto de vista político já é em si significativo. Depois vem o programa, vêm os objectivos, digamos a postura inequívoca no sentido duma democratização do Regime, etc. Portanto, não estamos perante um “putsch”, mas atenção, eu julgo, enfim, não sou só eu, que a não se ter verificado no próprio dia 25 de Abril a erupção popular que se verificou, a evolução poderia ter sido diferente porque o que acontece [Fernando Rosas – Isso que não estamos perante um “putsch”, estamos perante um movimento militar] Em qualquer dos casos é um movimento militar e é legítimo afirmar que se não há esse levantamento popular, na prática, a componente mais à esquerda e mais democrática, digamos assim, do MFA, vamos lá, os capitães poderiam ter ficado numa situação de muito maior instabilidade face à tentativa de apropriação do movimento pela hierarquia tradicional das forças armadas e portanto configurar um processo completamente diferente. O que acontece é que esta erupção popular, este levantamento popular forneceu ao MFA e aos capitães, digamos, a força e a legitimidade política para poder prosseguir de facto com o desmantelamento do aparelho militar que se consubstancia desde logo, por exemplo, na questão da PIDE, onde como se sabe o general Spínola era contrário ao saneamento dos generais.
Locutora – E vamos terminar estes depoimentos sobre os acontecimentos que antecederam o 25 de Abril com Nuno Teotónio Pereira.
Fernando Rosas - Como é que os católicos progressistas se relacionaram e viram o surgimento da chamada ala liberal do marcelismo?
Nuno Teotónio Pereira – Bom, digamos assim em conjunto, vimos o aparecimento do Marcelo Caetano com a sucessão do Salazar com alguma expectativa, expectativa que é benevolente, mas passado pouco tempo posso dizer que a maioria de nós já tinha perdido essa expectativa, mas houve alguns elementos que apostaram, apostaram de facto numa renovação do Regime. Posso falar do Alçada Baptista, por exemplo, e sobretudo no José Pedro Pinto Leite que era uma pessoa muito marcada, tinha sido um estudante de Direito do Marcelo Caetano e muito marcado pelo Marcelo Caetano e esse portanto tornou-se convicto dessa posição. Depois também tínhamos ligações com o Sá Carneiro e com outros elementos da ala liberal. Com o Miller Guerra, por exemplo, também, mas a maior parte, sobretudo os mais activos, rapidamente se desencantaram daquela renovação do Marcelo Caetano e eu lembro de uma vez que encontrei, por acaso, na rua o Sá Carneiro, quando vinha a Lisboa instalava-se no Hotel Tivoli, no Hotel Tivoli jardim que é um pouco por trás, encontrei-o na avenida da Liberdade e ele disse-me: Acabou-se, o Regime não tem emenda.
Locutora - Os acontecimentos que antecederam o 25 de Abril de 1974 com depoimentos de Costa Gomes, Magalhães Mota, António Reis, Ruben de Carvalho e Nuno Teotónio Pereira. A colaboração foi como sempre de Fernando Rosas.
Fizeram este programa Adelaide Marques, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
 
(Programa gravado da Antena 2 no dia 5 de Junho de 1998)
Transcrição: Ireneu Batista