Entrevista com Cândida Proença - O Marcelismo e as reformas educativas

ERA UMA VEZ UM MILÉNIO

Entrevista com Cândida Proença e Fernando Rosas
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”

Por Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
 
 
O marcelismo e as reformas educativas é o tema de hoje. Como sempre temos a participação do professor Fernando Rosas e a convidada a professora Cândida Proença.
“Há poucos dias dei conta, em termos sumários, dos trabalhos realizados pelo ministério da educação Nacional no ano passado e disse na altura que não encontrava ao fazê-lo animado de intentos de propaganda. Vinha falar do que se fizera, consciente do enorme esforço que ainda importa desenvolver, perfeitamente conhecedor dos atrasos em que nos encontramos e desejoso de mostrar aos portugueses ...”
(Excerto de uma comunicação do Veiga Simão)
Fernando Rosas - Muito boa tarde Cândida, muito obrigado por esta nova passagem pelo nosso programa. Hoje para falarmos de, ainda de marcelismo, mas também e agora de educação. A primeira questão que gostava de colocar é esta. Há do ponto de vista da história da educação do período há alguma diferença entre o marcelismo e o salazarismo já ele marcado por algumas reformas a nível do ensino. Quer dizer, pode-se falar do marcelismo como autonomia em termos de reflexão sobre as reformas da educação.
Cândida Proença - Muito boa tarde e obrigada por mais uma vez estar entre vós. Será que há realmente essa autonomia em relação à educação no marcelismo. Ora eu penso que não podemos falar duma autonomia completa ou duma mudança muito significativa em relação ao que se passou já no final do salazarismo. No final do salazarismo já tinha havido outras mudanças, nomeadamente com o ministro Galvão Teles, onde tinha havido já no tempo da obrigatoriedade escolar e também nos tínhamos começado a tentar aproximar um pouco da Europa, aproximar não digo bem, mas pelo menos comparar quando entrámos no tal projecto regional mediterrânico, quando se fez a análise quantitativa da estrutura escolar portuguesa. Ora bem. O que é que acontece com o marcelismo? Na verdade nós vamos ter uma reforma muito importante e uma reforma que realmente apresenta uma ideias diferentes, ideias modernas e uma tentativa de modernização do ensino que é a reforma do Veiga Simão.
Fernando Rosas – Mas isso em só em 72.
Cândida Proença - Em 72, aliás o documento só é aprovado em 73, mas o que se passa, era o que eu ia dizer precisamente é que o marcelismo não é só o Veiga Simão, temos de pensa que o primeiro ministro da educação do marcelismo aliás ainda nomeado mesmo nos últimos dias de Salazar [Fernando Rosas - Ainda herdado do salazarismo] Ainda herdado do salazarismo foi José Hermano Saraiva. José Hermano Saraiva que [Fernando Rosas -Além da repressão da greve estudantil de Coimbra, ele fez mais alguma coisa na educação?] Era isso que eu ia dizer. Mais nada, praticamente. A actuação de José Hermano Saraiva limitou-se à repressão desajeitada e como sabemos feroz [Fernando Rosas - Não sei se há repressão ajeitada, mas...] e feroz da luta estudantil das movimentações de Coimbra porque o que se vai, o que tinha ocorrido de tentativa de modernização como disse, ainda foi no tempo de Galvão Teles, Inocêncio Galvão Teles, desde a tecnologia educativa.
Fernando Rosas - Em que sentido apontavam essas reformas da segunda metade dos anos 60?
Cândida Proença – As reformas da segunda metade dos anos 60 apontavam no sentido de um aumento da frequência escolar, da obrigatoriedade, perdão, um aumento da obrigatoriedade escolar, uma tentativa de começar a dar resposta à maior procura do ensino, portanto às pressões sociais que se iam exercendo sobre o ensino e também uma tentativa de modificação dos métodos de ensino, portanto começar a dar resposta à massificação escolar, também uma tentativa dos métodos de ensino, da introdução de novas tecnologias de ensino, criação de um Instituto de Meios Audio Visuais de Ensino e a introdução de novas tecnologias de ensino, a começar a apostar mais um pouco na educação profissional.
Fernando Rosas – Mas a aposta do Veiga Simão é, em vários aspectos, de mudança significativa a esse nível.
Cândida Proença - Sim, a nível é. A aposta do Veiga Simão é uma aposta de mudança significativa.
Fernando Rosas - Quais são traços mais importantes.
Cândida Proença - Eu diria que os traços mais, os vectores ideológicos da reforma de Veiga Simão seriam três grandes vectores segundo ele. Que era a participação digamos o desenvolvimento e a democratização.
Fernando Rosas - O que é que isso queria dizer?
Cândida Proença – Era isso mesmo. Ora o que é que isto queria dizer. Para já ele o desenvolvimento era uma palavra chave porque ele achava que era necessário adaptar o sistema escolar de modo a que fosse não só um contributo para o desenvolvimento social como desse e para o desenvolvimento económico e social do país como desse resposta às própria pressões sociais que se faziam sentir sobre o ensino e à crescente procura do ensino. Veiga Simão partia do princípio que através do ensino era possível modificar a sociedade e portanto modificando o sistema escolar no sentido duma [Fernando Rosas - Isso é uma corrente republicana] Sim era um conceito que já vinha dos finais do século passado, na grande crise dos anos 90 do século XIX [Fernando Rosas – Nacionalismo, humanista] Exacto, tinha surgido todo um escol intelectual que depois se prolonga pela República e que via no ensino e na modificação do ensino o veículo para a modificação da sociedade e para desenvolvimento social, o desenvolvimento tecnológico.
Fernando Rosas – Mas qual era o efeito. Era o crescimento económico que impunha a reforma ou era reforma que ia fazer o desenvolvimento económico.
Cândida Proença - Acontece que, por um lado, quer dizer Veiga Simão achava que era preciso que o ensino conseguisse dar resposta às necessidades do desenvolvimento económico, mas que ele próprio por sua vez sereia capaz de gerar desenvolvimento económico uma vez que ele iria contribuir para a formação de técnicos, para a formação de quadros. Aliás, a grande preocupação, é por isso que a grande preocupação do Veiga Simão era o ensino superior. As primeiras preocupações dele são a partir do ensino superior que ele diz é preciso modificar a Universidade, não só para conseguir acalmar toda a contestação estudantil que era uma preocupação dele, embora as respostas tenham sido o que se sabe, não é, e portanto não tenham contribuído para satisfazer os objectivos que ele tinha previsto.
Fernando Rosas – A nível do ensino secundário há uma aposta também.
Cândida Proença - Há uma aposta também, mas o que eu quis dizer é que realmente vê-se que há uma preocupação muito grande dele pelo ensino superior e em modificar o ensino superior porque ele achava que era através do ensino superior que ele ia conseguir os quadros, desenvolvimento tecnológico e desenvolvimento científico. Portanto, deixar de ter aquele ensino 
Fernando Rosas – E é a primeira vez, pode-se dizer, em toda a história do Regime em que o ensino superior é objecto duma reforma modernizante, praticamente desde a origem do Regime.
Cândida Proença - Exactamente. É a primeira vez que
Fernando Rosas - Pelo menos a ser considerado como um instrumento ao serviço de uma estratégia de desenvolvimento económico.
Cândida Proença - É a primeira vez que se parte do ensino superior para como estratégia, como veículo de desenvolvimento económico. A nível dos outros níveis de ensino ele detém uma aposta no aumento da escolaridade obrigatória que passa a oito anos. Ele propunha um ensino básico de oito anos, com quatro anos do chamado ensino primário e depois outros anos de dois ciclos de ensino básico que era o dantes se chamava anteriormente ensino preparatório e depois teríamos o ensino secundário com mais dois ciclos de dois anos. Portanto na reforma de Veiga Simão já estavam previstos os doze anos de escolaridae pré-universitária.
Fernando Rosas - Ainda que nem todos obrigatórios.
Cândida Proença - Oito obrigatórios, mas já teríamos doze anos de escolaridade pré-universitária. Não estava era previsto, como é evidente, a unificação que depois se verificou, não é.
Fernando Rosas - Não havia unificação.
Cândida Proença - Havia unificação até ao oitavo ano depois continuava separado. E há uma aposta também na 
Fernando Rosas – A reforma chegou a entrar em vigor?
Cândida Proença - Quer dizer, a reforma vai começar nalgumas escolas a entrar em experiência, em regime experimental em 72/73 e depois em 73, no ano lectivo de 73/74 iria começar a partir do primeiro ano, não é, a partir do ensino básico. Como é evidente acontece depois o 25 de Abril e a reforma não será cumprida, embora em alguns aspectos algumas coisas que ocorrem depois do 25 de Abril têm uma certa inspiração ainda da reforma Veiga Simão, claro totalmente diferente, até nos próprios objectivos de ensino porque embora se fale de democratização, extremamente limitada, já vimos que não é possível falar de democratização. Digamos que o termo democratização do ensino era um termo muito querido ao Veiga Simão, um termo muito recorrente nos seus discursos, mas a democratização para ele era o conseguir uma escola de massas, portanto alargar a escola a todos os estratos sociais e igualdade de oportunidades para todos os alunos, igualdade de oportunidades, independentemente dos estratos económicos, isto é, através dos Serviços Sociais, do chamado IASE, Instituto de Serviço de Acção Social Escolar, ele iria, seria a forma de colmatar as dificuldade económicas dos alunos que não poderiam portanto frequentar, embora o que é verdade é que a reforma quando propõe os oito anos de escolaridade não nos fala nada dos seguintes quatro anos na gratuitidade desse ensino também. Aí é omissa como é omissa noutros pontos. Como eu estava a dizer apesar de falar nessa e apesar de pensar que seria possível democratizar a sociedade só com isto, a partir só disto, não é, quando não havia como nós sabemos nem sequer as liberdades mínimas estavam garantidas. Uma sociedade toda ela completamente fechada, numa sociedade onde não havia liberdades como era possível falar-se em democratização da escola, para mais com as próprias, a relação educativa que também ela própria não seria democratizada, não é, e as práticas democráticas na escola também estavam afastadas.
Fernando Rosas - E o que é que acontece com o Veiga Simão com a Mocidade Portuguesa?
Cândida Proença – Ora, com a Mocidade Portuguesa também vão existir grandes transformações. Isto é, o Veiga Simão não acaba com ela, mas vai torná-la voluntária o que quer dizer que é praticamente passar-lhe uma certidão de óbito. Portanto quem ainda não tinha como até à altura ainda não tinha havido coragem para acabar com a Mocidade Portuguesa. O Galvão Teles tinha tentado mexer-lhe, tinha-lhe retirado apenas aquelas concepções de para militar, de instituição para militar, mas o Veiga Simão ao torná-la voluntária é passar-lhe uma certidão de óbito.
Fernando Rosas - Pretendia transformá-la numa espécie de clube de juventude.
Cândida Proença – Pois. [Fernando Rosas - Férias, recreio] Um clube para jovens, onde os jovens pudessem reunir-se e ter determinadas actividades não escolares, não é, não propriamente curriculares de modo que isso era e também há outro aspecto que foi muito criticado pelos ultradireitistas do Regime porque a reforma do Veiga Simão foi muito criticada e mesmo boicotada dentro do Regime foi 
Fernando Rosas - Boicotada em que termos?
Cândida Proença - Boicotada em que termos, por exemplo, em termos dos serviços, dos próprios serviços centrais, em termos dos próprios serviços, embora ele tenha também reorganizado o Ministério, mas em termos dos próprios serviços foi extremamente boicotada. Depois foi criticada, criticada pelos ultras do Regime, não é, criticada na imprensa, no ´Novidades´, para já, com o pretexto de que se ia retirar Deus das escolas, criticada e ao que não podiam aceitar os ultras que era o facto da disciplina de Organização Política e Administrativa da Nação ter-se tornado optativa. O Veiga Simão dizia que iria ser
Fernando Rosas – E quanto a tirar-se deus das escolas, qual era o problema?
Cândida Proença – O tirar-se Deus das escolas, eles consideravam que a reforma retirava Deus das escolas por causa do problema dos programas, por causa e também por causa do causa porque havia um outro problema que era uma disciplina de ciências humanas que passava a substituir a disciplina de História e Geografia de Portugal no ensino básico e então até há um parecer da Câmara Corporativa que põe sérios reparos a esse programa e há mesmo deputados que acusam o programa de marxista de maneira que houve uma tentativa dos ultras de mudar o programa com a própria oposição do ministro. Isto ainda antes do 25 de Abril portanto quando o programa estava a começar a ser posto em prática, não é. Portanto havia toda essa 
Fernando Rosas - Vai acabar o ensino da religião e moral católicas nas escolas.
Cândida Proença – Não, o ensino da religião e moral católica não vai, mas é um ensino que é facultativo também, não é.
Fernando Rosas - E toda aquela parafernália herdada do Carneiro Pacheco, livros únicos.
Cândida Proença – Não isso acaba também.
Fernando Rosas - Acaba com o Veiga Simão.
Cândida Proença – Os livros únicos até já tinham acabado mais cedo, já na década de 60, na sua tentativa de modernização da segunda metade da década de 60 também já os livros únicos tinham acabado, embora continuasse a haver um número restrito e limitado de livros.
Fernando Rosas - Acha que a democratização do acesso ao ensino aos níveis secundário e superior, quiçá, se pode considerar que se inicia nesse período.
Cândida Proença – Eu acho que não. Eu acho que não. Quer dizer, há realmente o que se nota é uma pressão maior sobre o ensino. Quer dizer há um certo desenvolvimento nos anos 60, não é, como ocorre por todo o mundo ocidental e realmente há uma maior procura do ensino e há a chegada ao ensino superior e ao ensino secundário de estratos sociais que até aí não chegavam lá. [Fernando Rosas - Mas por virtude da própria dinâmica] Mas por virtude da própria dinâmica social. E portanto não propriamente por efeito da reforma do Veiga Simão que essa nem se chega a fazer sentir o efeito, não é, porque ela é só, como eu digo, só vai ser posta em prática no ano lectivo de 73/74 é o novo ano no qual vai ocorrer o 25 de Abril de modo que não é propriamente por efeito da reforma, mas sim por efeito do próprio desenvolvimento e da própria pressão que se ia sentindo sobre o ensino que aliás naqueles quatro anos que antecedem a reforma tem um crescimento muito acentuado.
Fernando Rosas - Portanto, nos primeiros anos dos anos 70.
Cândida Proença – Exacto, e finais da década de 60 e princípios de 70.
Fernando Rosas – Pode-nos dar alguma ideia de grandeza numérica sobre essa explosão.
Cândida Proença – Há uma explosão muito grande. O próprio Veiga Simão faz o balanço e ele diz que nos últimos quatro anos, portanto ele faz um balanço em 73, ele diz que nos últimos quatro anos, a nível de escolas, tinham sido criadas 6400 escolas primárias, 180 escolas do ciclo preparatório, 280 postos da tele-escola, 79 liceus, 51 escolas técnicas e nove escolas do magistério e mais que o número de alunos que tinham entrado de novo no sistema tinha ultrapassado, portanto naqueles quatro anos tinham entrado mais 100 000 alunos novos no sistema de ensino nos vários graus.
Fernando Rosas – Como é que o sistema reage. Esse sistema porque estamos a falar do ensino primário, estamos a falar do ensino secundário, do ensino preparatório como então se chamava que era um ensino habituado a pouca frequência, a professores com longas carreiras estabilizadas, a escolas de pedra e cal, quer dizer, dá-me ideia que isso rebenta pelas costuras.
Cândida Proença – Completamente. É a altura da construção a eito dos pré-fabricados, não é, os primeiros são da década de 60, é a altura da entrada para o sistema de uma série de, portanto da procura de docentes a todo o custo sem formação, não é, sem formação porque não se conseguia dar resposta à necessidade de docentes e formação porque, por exemplo, na análise quantitativa da estrutura escolar que tinha sido feita primeiro entre os anos 50 e 59 e depois a evolução já vinha até anos 60-61, tenho também aqui alguns números que nos podem dar uma ideia. Por exemplo, em 50-51 nós tínhamos 14800 alunos no ensino primário, em 60-61 já eram vinte e quatro mil trezentos e tal e previa-se que em 74 já fossem 47800. Isso em todos os graus de ensino. O técnico também estaria a crescer a muito mais de 1500 passaria para 13500.
Fernando Rosas - Mas a entrada na Universidade não cresce na mesma proporção.
Cândida Proença – Não cresce na mesma proporção. Está-se a notar primeiro um grande crescimento no ensino secundário, liceal e técnico e possivelmente depois esse crescimento ir-se-ia repercutir no ensino superior.
Fernando Rosas - De qualquer maneira há uma democratização do ensino no sentido em que há muito mais gente a participar no ensino, a entrar no sistema de ensino. Provavelmente por virtude também de algumas das reformas dos anos 60. Agora há sempre uma coisa que me mete uma grande impressão nesta política do Veiga Simão que é como se fosse possível desenhar uma reforma, no caso da Universidade, que é de facto a primeira vez que se encara a reforma da Universidade e não é pequena coisa o que eu estou a dizer porque são 48 anos de regime. Quer dizer, em meio século é a primeira reforma da Universidade. Como é que é possível, quer dizer, a ideia de é possível reformar a Universidade independentemente da política. Ou seja, o Veiga Simão, actual Ministro da Defesa, mandou os gorilas para as faculdades. Permitiu que as associações académicas fossem sistematicamente encerradas, uma a uma. Ninguém conhece lhe nenhuma reacção pública contra a invasão da polícia de choque, os espancamentos e contra as torturas que os estudantes sofreram na PIDE. O ministro Veiga Simão nessa altura não reparou. [Cândida Proença – Permitiu que todas essas coisas ocorressem.] E como é que não obstante se pode falar numa reforma de democratização do ensino. Ou seja, dá a ideia que pode haver um projecto não democrático de democratização da Universidade. Era isso que estava em causa, um projecto não democrático de democratização da Universidade, um projecto que correspondesse às necessidades de crescimento do capitalismo, mas com eficiência mas sem democracia. Acha que há sistemas desses?
Cândida Proença – Eu penso que não. Agora eu não acho que tenha havido democratização do ensino. Quer dizer, eu acho que a democratização do ensino foi apenas um termo de expressão, ficou apenas a nível do discurso e, aliás, mesmo nesse caso ambíguo, não é, porque como muito bem disseste, passa-se toda essa, todos esses ataques à própria vida democrática das instituições dentro das escolas, dentro das universidades e também a outro nível. Por isso eu não penso que seja possível. Aliás, e não penso que o ensino possa democratizar a sociedade numa sociedade que em si não é democrática porque primeiro há uma estreita relação entre a escola e a política, há uma estreita relação entre a escola e a sociedade e não é de maneira nenhuma possível ter um ensino democrático, ter uma universidade democrática num regime político que não é democrático, que está fechado a qualquer participação democrática e às liberdades individuais. Não é possível de maneira nenhuma e não só por este aspecto, mas a reforma de Veiga Simão estava também, em si, à partida também completamente coartada pelo próprio sistema, isto é, isso exigiria um grande investimento. Ora na altura 40% das despesas públicas era para os tais investimentos não reprodutivos que era a outra batalha que não a da educação. [Fernando Rosas – Numa fase de início de contraciclo que era muito difícil fazer.] Já estávamos numa fase de queda, não é, já se estava numa fase descendente e não era possível.
Fernando Rosas – Porque chega-se ao paradoxo de que temos a boca cheia de reforma do ensino e as universidades todas fechadas. As associações todas encerradas, dezenas de estudantes presos, uma coisa um pouco paradoxal. Quer dizer, que balanço é que faz da reforma do Veiga Simão? Quer dizer, é um sinal dos tempos. Não há dúvida que é um sinal dos tempos, quer dizer é um sinal do próprio marcelismo, mas que balanço é que faz disso no contexto do próprio marcelismo? O que é que pensa disso? Uma mera manobra de propaganda ou alguma coisa de diferente. Como é que ...
Cândida Proença – Em relação ao próprio ministro, eu me tenho interrogado. Se todo este discurso seria uma pura propaganda, se seria demagogia ou se ele estaria verdadeiramente convicto, quer dizer, dentro que seria possível ter uma sociedade meritocrática, um capitalismo liberal digamos esclarecido que pudesse através duma meritocracia fundada na escola modificar. Eu acho que isso quando muito seria, na melhor das hipóteses, uma ingenuidade da parte dele. Em relação, quer dizer, eu acho que não se pode fazer sequer qualquer balanço porque ela não chega a ser posta em prática. Agora se fizermos o balanço daquilo que ocorreu nos anos em que ele foi ministro, entre 70 e 73, o balanço que vemos é o sistema, ao nível não universitário, tentar dar resposta às pressões que se iam sentindo sobre o sistema, respostas atabalhoadas, tentando arranjar instalações, tentando arranjar professores não formados, como sabemos, não é, não suficientemente preparados. A nível da contestação estudantil e a nível da universidade todas as respostas são no sentido, acabam por ser no sentido da repressão. A pouca abertura que faz não é de maneira nenhuma capaz de dar resposta às reivindicações estudantis e realmente eu vejo que, quer dizer, não há praticamente um balanço a fazer. A reforma não se implementa, mas penso que ela era impossível. Quer dizer, ela era impossível. Para a reforma ir para a frente o sistema teria que mudar. O compromisso, a partir de determinada altura, o compromisso deixaria de ser possível.
Fernando Rosas - Para terminar, os economistas dizem que pode haver crescimento, produtividade com discutível justiça social, mas que tudo isso pode haver sem democracia. A economia pode crescer e modernizar-se sem democracia. E o ensino?
Cândida Proença – O ensino quanto a mim não. Eu penso que o ensino não pode modernizar-se sem democracia. Quer dizer, nós poderemos ter, porque vê, para já, o ensino para que possa dar frutos, nós temos que criar cidadãos capazes de discernirem por si próprios, de pensarem por si próprios, de desenvolverem essa competência que os habilitem para a mudança porque a sociedade tem que estar em mudança constante e há épocas de mudança mais acelerada como a que estamos a atravessar. Ora, todos os regimes não democráticos devido à ligação que há entre política e educação o que é que ocorre? São regimes de endoutrinamento, são regimes de inculcação em que se pretende moldar [....]

(Programa gravado da Antena 2 no dia 29 de maio de 1998)
Transcrição: Ireneu Batista