Salgueiro Maia: A saga de um capitão de Abril

Ricardo Vergueira 
  
 
 
 Salgueiro Maia: A saga de um capitão de Abril

 

 

No momento em que se encontrava sozinho no Terreiro do Paço, frente a frente com as tropas de Cavalaria 7, leais ao governo, com argumentos de revolucionário e uma granada no bolso (como último e extremo recurso), Salgueiro Maia talvez não tivesse idéia do lugar que aquele “teatro de operações” ia lhe conferindo, ao longo daquele 25 de abril, dentro da História Contemporânea portuguesa.
A “Revolução dos Cravos” não foi obra de um único homem, mas sim de todo o povo português, civil ou militar. Da mesma forma, vários foram os militares envolvidos na sua concretização. No entanto, nenhum outro representa hoje o “espírito do 25 de abril” como ele. Talvez por ter sido ele o comandante direto da coluna que marchou de Santarém até Lisboa, no cerco que determinou a rendição de uma ditadura de mais de quatro décadas. Talvez ainda por ser ele dono de um caráter e personalidade íntegros, qualidades que em si já encerram os valores de um país que se ambicionava construir.
“Era uma pessoa de caráter forte e um grande poder de decisão. Mas também era dócil, muito alegre. Gostava de ajudar os outros e de reunir os amigos por qualquer motivo”, conta Natércia Maia. A viúva do capitão ainda vive e dá aulas em Santarém, cidade à 78 Km de Lisboa, local onde o conheceu, recém-chegado de Moçambique. Corria o ano de 1969 e a guerra colonial recrudescia. Um ano depois os dois se casam e ele começa a se preparar para uma nova incursão em continente africano, agora na Guiné.
            “Quando ele foi para Moçambique, havia aquele espírito de cavaleiro, de salvar a nação, e aquelas idéias incutidas pela nossa formação e, em especial, pela Academia Militar. Mas quando lá chegou, viu que realmente aqueles ideais não faziam sentido”, lembra Natércia.
            “Ele me contou que tinha entrado num café para tomar uma cerveja e que ouviu de um português daquele continente, que estava lá a dizer: Então já não há militares que cheguem para ir ao norte de Moçambique e é preciso também agora nossos filhos irem?”. 
             Quando Salgueiro Maia regressa da Guiné, em outubro de 1973, passa a integrar a comissão coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA) como um dos três delegados da Cavalaria. À ele foi dada a missão de comandar a coluna militar que, partindo de Santarém, se uniria à demais unidades em Lisboa. Além disso, também foi encarregado de preparar material e viaturas, e ainda organizar os quadros que participariam da marcha rumo à capital.
            A mensagem confirmando a data da operação chega. O capitão, de imediato, inicia os preparativos, que só terminam às três e vinte da madrugada de 25 de abril, quando as viaturas e os blindados Chaimite partem pela estrada escura.
            “Na véspera da revolução ele arranjou um saquinho com lenços (tinha sinusite) e cigarrilhas. Nós não dissemos nada, mas eu interpretei aquilo como uma certeza de vitória. Se tudo corresse bem ele, que normalmente não fumava, teria uma cigarrilha para festejar o acontecimento”, revela a viúva, atestando a confiança que o marido tinha no sucesso da operação. 
            Chegando ao Terreiro do Paço, em Lisboa, o comandante da coluna mantém-se frio em meio à tensão, provocada pela expectativa de combate com as tropas fiéis ao governo marcelista. Forças da GNR (Guarda Nacional Republicana) e da Cavalaria 7 seguiam para o local, enquanto que uma fragata, em manobras de intimidação nas águas do Tejo, ameaçava abrir fogo. Mas o problema acaba sendo contornado de uma maneira inesperada: os oficiais e sargentos do CC 7, muitos dos quais antigos colegas e ex-instruendos de Maia, passam para o lado dos revolucionários. O navio de guerra  também “deita as armas” com a intervenção de um oficial do MFA. 
            Não obstante a falta de informações, Salgueiro Maia acata ordens do comandante Otelo Saraiva de Carvalho e segue com uma parte da tropa para o Largo do Carmo, com o objetivo de cercar o quartel da Guarda Nacional, para onde se refugiara o chefe do governo, Marcelo Caetano.
Com um megafone, Maia dá um ultimato de rendição. Este pode ser considerado um dos momentos de maior tensão na história da operação. As horas iam passando e o silêncio dentro do quartel do Carmo desafiava a sagacidade do jovem capitão, na altura com menos de trinta anos.
Por volta das 17hs do dia 25, cansado de esperar, resolve entrar e falar, ele mesmo, com o comandante do quartel. Este por sua vez o leva até Marcelo Caetano que, visivelmente abatido (mas mantendo uma “postura de dignidade”, como gostava de lembrar Maia), aceita os termo da rendição, exigindo no entanto que o governo fosse entregue a um oficial superior. O general António de Spínola é então chamado e recebe o comando do governo provisório, a Junta da Salvação Nacional, cujo objetivo principal seria preparar a nação para a redemocratização e, como conseqüência futura, para as eleições livres.
            Em Santarém, depois de assistir a festa da população que saudava o regresso da coluna vitoriosa, o professor Luís Eugênio Martins Correia era convocado para tomar posse na primeira comissão administrativa da Câmara Municipal. Seu nome figurava entre outros sete de uma lista feita pelos capitães Maia e Correia Bernardo. São também dessa época as recordações que tem de Maia:
“Era um indivíduo cultíssimo, formado em História. Discutíamos muito sobre filosofia”, recorda o ex-vereador, hoje com 77 anos.
            “Em conversas, gostava de lembrar que na noite da revolução eu dormia e que, mesmo morando muito perto da estrada que conduz à Lisboa, não pude ouvir o barulho dos blindados e das viaturas passando. Costumo dizer que o Salgueiro Maia passou por meio do meu sono, e que quando regressou trazia a liberdade dentro dos carros.”


O homem antes do herói
            Fernando José Salgueiro Maia nasceu no dia 1 de julho de 1944, em Castelo de Vide (vila histórica da região do Alto Alentejo), onde viveu os primeiros anos de sua vida.
Filho de um ferroviário, Francisco da Luz Maia, Fernando José ficou órfão de mãe (D. Francisca Silvério Salgueiro) ainda muito novo. Devido a profissão do pai, várias foram as cidades nas quais morou: Tomar, Leiria, Pombal, Valença, Santarém... sem tempo suficiente para criar raízes em qualquer uma delas.
Concluído o 7º ano do Liceu, em Leiria, ingressou na Academia Militar em outubro de 1964. A guerra colonial, que havia começado em 1961, àquela altura já se estendia às regiões de Angola, Moçambique e Guiné. No final de 1966 apresenta-se na Escola Prática de Cavalaria, seguindo um tempo depois para sua primeira comissão em Moçambique.
“O curso da Academia tinha quatro anos, mas como havia falta de capitães o governo criou cursos intensivos de apenas três. Depois se fazia o estágio na própria guerra. Foi o que aconteceu com meu marido”, explica Natércia Maia. A partir daí, os caminhos da revolução começaram a ser trilhados. A História então se encarregaria do resto.
Mas apesar de sua devoção à causa, Salgueiro Maia passou a incomodar os quadros superiores de Exército, com seu espírito crítico e independente. Rejeitou cargos e privilégios dentro do governo que ajudou a instaurar. Desejava continuar apenas como um operacional, dentro da Escola Prática de Cavalaria, o que não veio a acontecer. Foi enviado para os Açores e posteriormente para outras unidades militares, desempenhando sempre tarefas burocráticas dentro de escritórios, às quais abominava. “Mesmo assim cumpriu com dedicação todas suas tarefas e missões”, orgulha-se Natércia.
“A pretexto do cumprimento de escalas, ele e muitos outros capitães foram designados para exercer funções, não menos honradas, mas de menor importância para militares que haviam operado uma revolução”, opina o general e ex-capitão do MFA Pezarat Correia, que conclui lacônico:
“A verdade é que os oficiais de alta patente das Forças Armadas, quando retomaram seus postos depois do 25 de abril, ficaram ressentidos com o fato de a revolução ter sido comandada por capitães, o que acontecia pela primeira vez na história dos golpes militares em Portugal.”
Fernando José Salgueiro Maia faleceu no dia 4 de abril de 1992, com 47 anos, abatido pelo câncer contra o qual vinha lutando desde 1989. O militar, que àquela altura ocupava o posto de tenente-coronel, deixou ainda dois filhos, Catarina e Filipe.