25 de Abril de 1974 - Maria Manuela Cruzeiro
1. Um programa por um dia
O início foi, como se sabe, uma revolta (alguns dizem pronunciamento militar) levada a cabo por um grupo de jovens oficiais democratas e anti- fascistas, decididos a pôr fim à guerra colonial injusta e sem saída que exauriu o país material e moralmente. Uma guerra que durou cerca de 13 anos (mais tempo do que a guerra do Vietnam!) e cujas consequências só agora se conhecem em toda a sua trágica extensão: 900.000 mobilizados, 10.000 mortos, 20.000 feridos e cerca de 140.000 afectados por graves distúrbios psíquicos, o chamado stress de guerra. Foi pois a guerra colonial a verdadeira escola política para oficiais que, formados na ideologia colonialista do Estado Novo, ao serem mobilizados para combater em África, tiveram oportunidade de confrontarem in loco a propaganda oficial com a realidade complexa de uma guerra de guerrilha em três frentes. O contacto directo com o outro lado das coisas, o conhecimento das razões dos movimentos de libertação, enraizaram neles a convicção de que para acabar com a guerra era necessário acabar também com o regime que a suportava. Isto é, que a proclamada solução política para a guerra, anunciada já por altas patentes da hierarquia militar, mas sempre adiada pelos responsáveis políticos, fazia parte da questão mais vasta da mudança de regime:"era a expressão ainda não articulada em termos políticos rigorosos mas já presente nos espíritos da ideia fundamental de que a emancipação dos povos submetidos à dominação colonial era a condição primeira da própria emancipação do povo português. Era a manifestação clara da consciência de que o fascismo e o colonialismo constituiam os dois pilares fundamentais do regime deposto, que um não era possível sem o outro, que ambos se completavam, formando um sistema político coerente" (Antunes,1985:184).
Este movimento, primeiro Movimento dos Capitães, depois MFA (Movimento das Forças Armadas), apresentou um programa político, (Programa do MFA) muitas vezes citado como o Programa dos 3 Ds.
Trata-se de um texto que, para além de ser um rigoroso diagnóstico da situação do país, inteligentemente traduzia o máximo denominador comum dos amplos sectores civis e militares de oposição ao regime e que, para tal, se apresentava suficientemente genérico e abrangente, o que constituiu o seu principal defeito e a sua principal virtude.
Em primeiro lugar o documento preconizava e justificava medidas concretas de carácter político: eleições livres para uma Assembleia Constituinte e, portanto, restauração imediata da democracia parlamentar e do pluralismo político. Era o primeiro D: democratizar. Contudo, não se falava sequer em partidos. Era a seguinte a redacção adoptada: "O governo provisório obrigar-se-á a promover imediatamente a liberdade de reunião e de associação. Em aplicação deste princípio será permitida a formação de associações políticas, possíveis embriões de futuros partidos políticos..."
Em segundo lugar defendia uma política económica que, depois de algumas sintomáticas hesitações ( e negociações), se decide classificar de anti-monopolista. Era o segundo D: desenvolver. Contudo, acrescentava-se que "as grandes reformas de fundo só poderão ser adoptadas no âmbito da futura Assembleia Nacional Constituinte..."
E, finalmente, uma solução para a guerra colonial que era tudo menos clara. O que não deixa de surpreender, se tivermos em conta que foi antes de mais para acabar com a guerra que o 25 de Abril se fez. Assim, sem falar em autonomia e muito menos em independência, apelava-se a uma solução política no quadro de um vasto espaço português e ao "lançamento dos fundamentos de uma política ultramarina que conduza à paz entre os portugueses de todas as raças e credos". Era o terceiro D: descolonizar.
Todas estas ambiguidades ou indefinições traduzem a natureza e amplitude do compromisso que teve que existir entre os sectores mais diversos dos militares envolvidos (e portanto também da sociedade civil) e saldou-se por um curioso jogo de cedências e de exigências mútuas: os sectores mais progressistas (representados genericamente pelos capitães), exigiram uma definição da política económica como anti-monopolista, enquanto que os sectores mais conservadores (representados pela hierarquia militar mais elevada com o general Spínola à cabeça), exigiram uma solução para as colónias gradual e controlada.
A solução de compromisso não se ficou a dever, como alguns pensam, a falta de visão ou de capacidade negocial por parte dos capitães, mas sobretudo ao facto de, na sua maioria, eles considerarem indispensável a ligação com o general Spínola, não só como factor de credibilidade do movimento junto de unidades e de chefias militares mais renitentes, mas também, o que é muito importante, como meio de inviabilizar qualquer tentativa de declaração unilateral de independência por parte da população branca das colónias, particularmente de Angola.
Assim, António de Spínola representava sobretudo os interesses do capital monopolista que esperaria do 25 de Abril apenas a liberdade política e, portanto, a destruição das características fascistas do aparelho de Estado, enquanto que os jovens oficiais do MFA, em grande parte arrastados pelo enorme e imprevisível apoio popular da classe operária e de amplos sectores da pequena burguesia, se foram encaminhando a passos largos para soluções mais radicais. E, assim, um programa feito para o dia 25 estava desactualizado no dia 26. "A maioria dos oficiais participou num golpe militar, num pronunciamento militar, sem saber que estava a desencadear uma revolução. Era um golpe de estado contra o governo. No dia seguinte, para surpresa de muitos, tinha sido um acto revolucionário que derrubava o regime. É a participação entusiástica das massas populares que converte o golpe em revolução. E a revolução implica uma dinâmica inexorável de transformação política que faz transbordar dos seus limites as previsões mais cuidadas, os cálculos mais frios, os esquemas mais rigorosamente definidos" (Antunes,1985.:182).
2. Spínola contra MFA
Tendo por cenário a surpreendente mobilização popular, as chamadas associações cívicas previstas no programa cedem de imediato o lugar aos partidos políticos já existentes na clandestinidade (PCP e PS) e a muitos outros formados rapidamente (cobrindo um alargado leque que vai da direita mais conservadora às diferentes famílias da extrema esquerda); as transformações sociais e económicas fogem ao controlo do MFA e das próprias forças políticas saídas do golpe; a descolonização avança fazendo letra morta da tímida semântica do texto programático. Assiste-se assim, a uma extraordinária e incontrolada explosão social mas a uma relativa concentração do poder político. Na verdade, a JSN ao mesmo tempo que trabalha no sentido de institucionalizar o novo poder político e de desmantelar as velhas instituições do Estado Novo, mostrou-se, contudo, incapaz de conter a vasta movimentação social reivindicativa de carácter laboral e estudantil que por todo o país procurava novas formas de organização (em sindicatos, comissões de trabalhadores e moradores e todo o tipo de associações).
Em toda esta movimentação se misturavam e confundiam objectivos e métodos. Se a actividade sindical, fortemente apoiada pelo PCP, se preocupava fundamentalmente com a institucionalização da Inter-sindical, como única central sindical reconhecida pela JSN, paralelamente desenvolvia-se "uma movimentação social de natureza espontaneísta, e cujas primeiras expressões se configuraram em ocupações de casas, para mais tarde alastrarem às motivações de vida pessoal e quotidiana, que também irão ter a sua expressão institucional nas Comissões de Moradores, numa linha que iria ser conhecida por Poder Popular" (Ferreira,1993:107). A realidade subvertia, assim, os projectos de transição pacífica que Spínola personificava. Não se esqueça que ele foi ao Carmo receber das mãos de Marcelo Caetano o poder, para que este não caísse na rua... E à noite, já empossado, e após ter saudado os principais responsáveis pelo êxito das operações exclamou: "Bom, a festa acabou. Vamos ao trabalho".
Correndo o risco de ser linear esta análise, podemos no entanto afirmar que o primeiro grande confronto se deu, pois, entre Spínola e o MFA (legitimado pelo maciço apoio popular) e durou até ao 28 de Setembro de 1974.
Se durante algum tempo (sobretudo na fase conspirativa), o apoio de Spínola foi decisivo, nomeadamente através da publicação do seu livro Portugal e o Futuro, que funcionou para os capitães como uma bandeira, mesmo que, em muitos casos, não se revissem nas teses federalistas do velho general, ironicamente foi esse livro, que tivera na base o problema africano, também a marcar a ruptura. Na verdade, "a história das relações entre ele e os oficiais do MFA inscreve-se na trajectória que vai da tese formal da federação de Estados entre Portugal e os territórios ultramarinos até à lei nº7/74 e ao discurso presidencial de 27 de Julho, que reconheceu o direito à autodeterminação e à independência dos povos sob administração portuguesa" (Ferreira,1993:47).
Na verdade, o protagonismo de Spínola, que logo tentou dissolver o MFA e concentrar poderes na Junta de Salvação Nacional a que presidia, manifestou-se na escolha de oficiais da sua total confiança para postos-chave, nomeadamente para as Regiões Militares, na escolha do primeiro ministro do 1º Governo Provisório (e na própria equipa encarregada da elaboração do respectivo programa, Amaro da Costa, Veiga Simão, Vítor Crespo, entre outros), na autorização da partida para o exílio no Brasil de Américo Tomás e de Marcelo Caetano e ainda em vários outros incidentes menores. Mas, sobretudo, na tentativa de conduzir em exclusivo o complexo processo da descolonização.
A estas tentativas responde um MFA forte e coeso, face à fragilidade e fragmentação do poder civil, que vence todos os projectos spinolistas, nomeadamente no que respeita à alteração do quadro constitucional (golpe Palma Carlos) e sobretudo à descolonização, que se vem a fazer totalmente liberta de quaisquer sonhos neo-colonialistas.
3. MFA contra Spínola
É na verdade o golpe Palma Carlos que marca a vitória definitiva do projecto do MFA sobre o de Spínola. A célebre reunião da Manutenção Militar de 13 de Junho de 74 é marcada pelo confronto directo que já vinha, aliás, a ser anunciado. Spínola, apoiado por Palma Carlos e Sá Carneiro, preparou o golpe de Estado por meio do qual o 1ºministro obteria do Conselho de Estado o reforço dos seus poderes, propondo também a alteração da Lei Constitucional Provisória, estabelecida pelo programa do MFA, bem como a realização de um referendo antes de 30 de Outubro para legitimar um projecto de Constituição provisória elaborado pelo governo. Nesse mesmo dia se referendaria Spínola como presidente que, assim, em vez de ter a sua autoridade delegada pelo MFA, a receberia directamente do povo. Após o fracasso desta tentativa, Palma Carlos demite-se e Spínola tenta, pela via da movimentação popular, o que não conseguira por um "golpe de Estado Constitucional". É o famoso episódio da Maioria Silenciosa de 28 de Setembro, pela qual Spínola queria concentrar em Lisboa, numa manifestação de apoio pessoal, o "povo anónimo" que, segundo ele, não estaria já com os novos rumos da política nacional e, sobretudo, com os da descolonização. Para essa manifestação mobilizou-se toda a direita que, aproveitando-se da abertura democrática se tinha organizado em pequenos partidos como o Partido Liberal, Partido da Democracia Cristã, ou Partido do Progresso, e cujos programas encobriam o extremismo da verdadeira filiação dos seus elementos.
Vencendo em toda a linha, o MFA reforça a sua liderança, bem patente na constituição do 2º Governo Provisório, presidido por Vasco Gonçalves, e tenta a sua institucionalização, para além das estruturas já implantadas no seio das próprias Forças Armadas.
Junta-se então à Comissão Coordenadora do Programa (como o próprio nome indica destinada a vigiar o cumprimento do programa), o COPCON (o chamado braço armado da revolução), o Conselho dos 20 (composto pelos 7 membros da CCP, pelos 7 membros da JSN, pelos 5 militares do MFA que faziam parte do governo e pelo comandante-adjunto do Copcon) e, finalmente, a Assembleia do MFA (composta por oficiais dos 3 ramos das FAs) e as Assembleias de cada um dos ramos (Exército, Marinha e Força Aérea, também exclusivamente constituídas por oficiais). É ainda criada a 5º Divisão com o objectivo de difusão e propaganda das ideias do MFA.
Fácil é verificar, porém, que toda esta movimentação se desenvolvia prioritariamente ao nível da liderança político-militar dos novos orgãos de soberania saídos do 25 de Abril, com uma subalternização das forças civis e dos seus representantes, os partidos políticos. Foi a fase do grande consenso nacional em torno do MFA que ocupou no imaginário político e social do país o estatuto de verdadeiro herói colectivo, traduzido na famosa e mítica "aliança Povo-MFA".
4. MFA contra MFA
As alterações qualitativas no processo político-social começam em Março de 75 (Golpe do 11 de Março), quando a sociedade portuguesa entra no período que ficou conhecido por PREC (Processo Revolucionário em Curso) na linguagem comum, ou mais precisamente na crise revolucionária, em versão mais científica.
Com efeito, nacionalizações da indústria, da banca e dos seguros, reforma agrária, ocupações de casas, conselhos operários, auto-gestão de empresas comerciais e industriais abandonadas pelos antigos proprietários, cooperativas no comércio, indústria e agricultura, associações de moradores, clínicas para o povo, dinamização cultural, tudo isto o que é senão uma verdadeira revolução?
Os estudiosos, porém, são cautelosos nesta matéria e preferem falar de crise revolucionária, como faz Boaventura de Sousa Santos, ou ainda de situação pré-revolucionária, segundo a designação de João Martins Pereira.
Afirma o primeiro: "Nenhuma destas medidas, tomada individualmente, punha em causa as bases capitalistas da sociedade ou a natureza de classe do poder de Estado. Sem dúvida, todas elas, no seu conjunto - aliadas à dinâmica interna da mobilização da classe operária e da iniciativa popular, à paralisação generalizada dos aparelhos de estado e ao crescente conflito no interior das forças armadas - causaram de facto uma crise revolucionária"(Santos,1980:254).
E diz o segundo, avançando um pouco mais: "É incontestável que Portugal nunca saíu do quadro típico de uma situação pré-revolucionária. É no entanto inegável que, durante um largo período, a ofensiva pertenceu, em termos de luta de classes, ao movimento popular e às forças políticas que se diziam revolucionárias"(Pereira,1976).
Não está já apenas em causa a luta pelo poder político, com as estruturas socio-económicas praticamente intactas, como foi a primeira fase que contou, aliás, com o apoio do capital privado. Trata-se, sim, de um amplo, frequentemente violento, confronto de projectos de sociedade radicalmente opostos. O golpe militar falhado, da autoria da facção spinolista, originaria uma fuga para a frente, segundo um modelo classificado por vários de vanguardista e colectivista em oposição ao projecto de democracia parlamentar. Era este o debate que tomou de assalto os partidos e todas as outras estruturas (sindicatos, organizações populares de base, comissões de trabalhadores e moradores, etc, etc) e sobretudo invadiu as ruas, onde a presença constante do povo em manifestações e reivindicações diárias, impressionava fortemente os militares que iam perdendo o controle da situação.
É o período que, segundo a designação de J. S. Cervelló, podemos chamar de MFA contra MFA.
Porquê? Porque as várias tendências ou facções em que este grande colectivo se irá fraccionar começam então a emergir, reproduzindo ou pelo menos reflectindo no seu interior, as contradições da sociedade em geral.
E é extremamente curioso analisar, em síntese, a criação de um órgão como o Conselho da Revolução. É obvio que, em primeiro lugar, o MFA pretendia desta forma consolidar a sua liderança política, pois o Conselho da Revolução concentrava em si competências das anteriores estruturas, entretanto dissolvidas: JSN, Conselho de Estado, Juntas de Chefes de Estado-Maior e CCP. Mas não deixa de ser sintomático que as medidas mais significativas tomadas por este Conselho tenham sido marcadas pela preocupação em conciliar o avanço revolucionário com o respeito pelos compromissos assumidos no Programa do MFA. Esta orientação reflectia-se, por um lado, nas nacionalizações dos sectores básicos da economia e nas expropriações de latifúndios, na sequência, aliás, (nunca é de mais sublinhá-lo), de uma movimentação social que as tornava inevitáveis, sob risco de paralisação de importantes sectores da produção nacional. Por outro, na garantia da realização de eleições para a Assembleia Constituinte, no prazo fixado no Programa.
Também muito curiosa é a célebre Assembleia do MFA de 11 de Março, conhecida, talvez incorrectamente, por "Assembleia Selvagem". Realizada num forte clima emocional, durante toda a noite, no rescaldo do golpe spinolista, concilia estranhamente uma linguagem radical de exaltação e excesso revolucionários com medidas concretas de estilo reformista como seja, precisamente, e ainda, o mesmo compromisso solene da realização de eleições.
Momento-chave dessa contradição interna é o longo debate suscitado pelo célebre documento Melo Antunes, que acaba por ser inviabilizado pelo golpe, mas que estava em fase de difícil gestação, precisamente desde Outubro de 1974.
Tratava-se de um plano de política económico-social, coordenado pelo ministro Melo Antunes que, longe de apontar para medidas de tipo revolucionário, se podia considerar genericamente um plano de orientação reformista, de moderada intervenção nos sectores fundamentais da economia, mas que tentava, pela primeira vez entre nós, conciliar de forma equilibrada (e não ecléctica) democracia política e económica, dando prioridade às necessidades básicas da população. Comprende-se, pois, que não tenha agradado a uns nem a outros.
Ou seja: a profunda e incontornável contradição Revolução/Reforma, via constitucional ou via revolucionária, instalara-se no seio do MFA, que passa a ser cada vez mais a montra das contradições da própria sociedade, rasgada por projectos de natureza político-social já inconciliáveis.
É pois, neste ambiente de radicalização de posições que se realizam as primeiras eleições, sob tutela militar, uma vez que todos os partidos concorrentes assinam a 11 de Abril o famoso Pacto MFA/Partidos.
Por este documento os partidos aceitavam autolimitar as suas atribuições, ao assumir como única função do futuro Parlamento, a elaboração da Constituição, delegando a capacidade de eleger o governo no Presidente da República, uma vez ouvido o primeiro ministro e o Conselho da Revolução. Estabelecia-se ainda um período de transição, de 3 a 5 anos, durante o qual as FAs eram independentes do poder político e assinalava-se na futura Constituição que Portugal caminharia sem hesitações para o socialismo. Os sectores militares mais à esquerda tentavam assim enquadrar as eleições, segundo afirmavam, para "não perder por via eleitoral, o que tanto custara a ganhar por via revolucionária". Por sua vez, todos os partidos aceitaram, com ligeiras cambiantes, a via socialista para Portugal. Não só os de esquerda, como seria normal, mas também os de direita: assim o PDC reclamou-se de um socialismo cristão, o CDS de um socialismo português, e o PPD da social-democracia.
De 25 de Abril de 75 a 25 de Novembro, decorre o período de maior tensão mais conhecido por verão quente de 75.
As eleições alteraram substancialmente a realidade político-social do país, agudizando dramaticamente a oposição entre via revolucionária e via reformista ou eleitoralista. Em torno das eleições e seu verdadeiro significado se agudizou a divisão entre os adeptos de um regime político de democracia pluralista de tipo ocidental e os que consideravam prioritário para o país as reformas económicas e sociais. Assim, no campo partidário, o PS, vencedor das eleições com cerca de 37% dos votos, protagoniza a tendência reformista, tentando reconduzir, ou mesmo inverter o processo; enquanto o PCP, protagonizando a via revolucionária, afirma que "não se pode governar com percentagens eleitorais", confiante na dinâmica revolucionária e no apoio do MFA.
E se até às eleições, esses partidos tentaram uma já difícil coexistência, a partir daí a sua separação é definitiva, atingindo logo nas manifestações do 1º de Maio de 1975 extrema violência; e o dia do trabalhador, que ainda um ano atrás fora uma impressionante jornada de unidade, é agora comemorado sob o signo da discórdia, a propósito do tema escaldante da unicidade sindical. No mesmo dia em que a Intersindical Nacional organizava uma gigantesca manifestação de apoio a essa lei, o Boletim do Movimento das Forças Armadas defendia: "Não podemos portanto pretender que as eleições sirvam para definição de linhas políticas que distorçam objectivos determinados no programa do MFA ou para uma reformulação do governo, porque isto são atribuições do MFA de que ele não pode abdicar enquanto durar o processo revolucionário" (Boletim do MFA, nº8 de 14 de Jan. de 1975).
Os meses seguintes foram uma escalada, um subir de tom, onde é de salientar o episódio do jornal República, pelas repercussões internacionais que teve, bem como as grande manifestações organizadas por todas as forças políticas, em particular, a do PS na Fonte Luminosa, a 19 de Junho, onde Mário Soares lançou o slogan inimaginável poucos meses antes: "O povo não está com o MFA". O PS protagonizou assim, a oposição ao PCP e ao MFA, defendendo o afastamento dos militares o mais cedo possível da cena política e contestando com crescente veemência a existência do Conselho da Revolução. Em termos sociais a situação era também extremamente instável: "os governos sucediam-se, mas sempre fragilizados pela sua natureza de coligação, dentro da qual se reflectiam os choques das lutas partidárias; a Assembleia Constituinte era contestada por dentro e por fora; no interior dos partidos surgiam alas e tendências; os pequenos partidos compensavam a sua diminuta expressão eleitoral com uma intervenção desestabilizadora cada vez mais intensa; os sindicatos tornavam-se mais reivindicativos; comissões de trabalhadores, de moradores, órgãos de comunicação social assumiam-se como focos de pressão e contestação fugindo ao controle das forças organizadas; a Assembleia Constituinte esteve cercada, ministros sequestrados, o governo chegou mesmo a auto-suspender-se de funções..."(Correia,1994:148).
Neste quadro, não podemos esquecer a violenta escalada contra-revolucionária, desencadeada por grupos terroristas de extrema direita como o MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal) e o ELP (Exército de Libertação de Portugal) ligados ao general Spínola, então no exílio, mas que se movimentava livremente por toda a Europa, em busca de apoios para a sua cruzada anti-comunista. "A estruturação do anti-comunismo terrorista baseou-se em quatro componentes: o apoio da hierarquia eclesiástica, cujo epicentro foi o episcopado de Braga; a ajuda operacional, técnica e económica de Espanha, que além disso proporcionava uma retaguarda segura; a colaboração com os militares contrários ao 25 de Abril, que vertebraram todo o movimento tornando-o eficaz; e por último a concordância de todas as forças políticas desde os socialistas até à direita, maioritárias no distritos do centro e norte do país"(Cervelló,1993:237).
Neste contexto, a desorientação dos militares era também cada vez maior e a sua divisão já irreversível: afastados os spinolistas dos centros de poder (mas nunca dos postos da hierarquia militar, o que é importante), as tendências, com todos os riscos de simplificação excessiva, eram as seguintes:
Grupo do COPCON, em torno da figura do seu comandante, Otelo Saraiva de Carvalho, Grupo Gonçalvista, em torno de Vasco Gonçalves, 1º ministro de 4 dos 6 governos provisórios, e moderados, onde se incluem nomes como Melo Antunes Vasco Lourenço, Vítor Alves, etc. (futuro grupo dos 9)
Esta divisão atravessava não só o Conselho da Revolução como toda a hierarquia das FAs. "Era a situação ideal para o desenvolvimento de uma dinâmica basista e contestatária por um lado, e por outro para a recuperação da maioria dos quadros conservadores, que se mantinham passivos, aguardando a evolução dos acontecimentos, evitando comprometer-se, enquanto o MFA se ia desgastando cada vez mais" (Correia,1994:148).
Numa complexa actuação que não é possível aqui analisar em pormenor, mas sem dúvida profundamente marcada pela chamada idiossincrasia militar (que passa obviamente por factores de ordem geral como seja a própria natureza da instituição militar, e por outros, mais específicos, como sejam as redes de solidariedade e companheirismo nascidas e duramente postas à prova no cenário dramático da guerra colonial), os militares manifestaram então uma generosidade que raiou a irresponsabilidade, uma ingenuidade que raiou o demissionismo, mas sobretudo uma real consciência democrática ainda hoje difícil de explicar. Como afirma Eduardo Lourenço, "poucas vezes se terá visto um movimento militar triunfante, tão desamparado, tão complexado, diante da sua própria audácia, ou simplesmente tão democrático" (Lourenço,1977:12).
Tudo isso os fez presa fácil da luta política, então levada ao rubro, e os transformou, por assim dizer, em intérpretes de papéis previamente escritos por outros, ou então em aprendizes da política, em cuja fogueira viriam a ser fatalmente imolados. Segundo eles, manipulados. Lutando, pois, contra a incontornável realidade da divisão, repetiram tentativas desesperadas de unidade e desgastaram-se no esforço inglório de enquadramento lógico (dentro certamente de quadros de logística, táctica e estratégia militares) de uma realidade cada vez mais refractária à vontade militar de ordem e de disciplina e sujeita, por vezes, a um voluntarismo inconsequente.
5. A guerra dos documentos
A chamada guerra dos documentos inscreve-se nitidamente nesse quadro de actuação generosa mas totalmente ineficaz e irrealista. Entre os meses de Abril de 75 (Plataforma de Acordo Constitucional) e Agosto de 75 (Documento dos 9), o país assistiu, perplexo e curioso, à publicação em série de documentos vindos dos militares, o que induzirá inevitavelmente em erro quem pretenda analisar a vertiginosa marcha dos acontecimentos à luz unicamente desses dados.
Como hoje podemos facilmente constatar eles não tinham de facto o mínimo efeito prático, substituiam-se uns aos outros com a maior facilidade ou, o que surpreende ainda mais, contradiziam-se na sua própria filosofia. Os militares contudo (através da Assembleia do MFA), a todos aprovavam, num esforço de unidade em que já nem eles acreditavam e que só aumentava dramaticamente a ambiguidade e a indefinição.
- O Documento dos Operacionais ( 27 de Maio de 75) inaugura a série. Saído do COPCON, denota já um certo cansaço e traduz-se, fundamentalmente, numa proposta de reforço da autoridade do seu comandante.
- Plano de Acção Política (19 de Junho de 75) - Documento dos mais importantes, é por muitos considerado como um 2º Programa do MFA, mas marcado ainda mais do que ele pela contradição, ao propor a simbiose entre via eleitoralista e via revolucionária, entre democracia directa e democracia parlamentar, entre socialismo e pluralismo partidário. Além disso, profundamente impressionados pelos contactos estreitos com os movimentos de libertação de África, os autores do documento consideravam o MFA como "movimento de libertação do povo português", disposto a proceder a uma "descolonização interna".
- Documento-Guia Aliança Povo/MFA (8 de Julho de 75) - Nova guinada à esquerda liderada pelo COPCON. A contradição e a indefinição atingem o ponto máximo. A oposição ao anterior documento era gritante, pois enquanto que aquele defendia uma ampla base social de apoio para a revolução, este documento-guia defendia uma teoria da vanguarda revolucionária. Na verdade, do anterior apenas aproveitava o ideal do socialismo. De resto, falava de poder popular, controlo operário, revolução cultural, luta de classes... Os militares apoiaram-no também, como apoiaram ainda um outro documento que não coincidia com nenhum deles, apresentado por Vasco Gonçalves, chamado Documento de análise da situação política actual.Assim,num só dia e numa única Assembleia, as três tendências do MFA viram aprovadas as suas propostas por um colectivo que acima de tudo se recusava a aceitar o confronto, a divisão e a diferença. Em resumo, os textos conciliavam o inconciliável juntando no mesmo saco: poder popular para os esquerdistas, eleições e pluralismo para os socialistas e sociais democratas, e hegemonia do MFA e primazia da revolução sobre os processos eleitorais para os comunistas.
Esta preocupação conciliadora reafirma-se em assembleias seguintes, nomeadamente na de 25 de Julho de 75, a qual aprova um texto moderado de Costa Gomes, "Um ritmo para a Revolução, um caminho para a independência nacional e um curso para continuar a descolonização", bem como uma defesa da vanguarda revolucionária de Vasco Gonçalves.
Finalmente, a 7 de Agosto é dado a público o famoso Documento dos 9, segundo nós o único documento com influência decisiva no curso dos acontecimentos e que, por isso, merece uma atenção especial, logo seguido de um outro de resposta do COPCON, datado de 12 de Agosto.
O Documento dos 9 aparece assim, como o primeiro a desmistificar, com coragem e frontalidade (apesar da forma polémica como foi produzido, à margem de todos os regulamentos militares), a falsa unidade do movimento, bem como a incompatibilidade dos projectos políticos nele surgidos. Ao mesmo tempo que queria travar o aventureirismo revolucionário, a fuga para a frente, propunha-se cortar as bases do processo contra-revolucionário, esvaziá-lo enquanto era tempo. Das intenções à prática vai, porém, um abismo. E se, por um lado, o documento se tornou polo aglutinador, quer no meio militar, quer no civil, de vários sectores empenhados no 25 de Abril, mas rejeitando com veemência a anarquia e o perigo da guerra civil, por outro, reagrupou à sua volta sectores conservadores que, paciente e prudentemente, esperavam que se esgotasse a dinâmica revolucionária, para se lançarem à conquista do poder, mesmo tendo que suportar o incómodo da convivência com instituições democráticas.
Tendo evidenciado a profunda divisão do MFA, o documento atravessou, contudo, toda a sociedade e foi o pretexto para o confronto decisivo das forças políticas que, a partir daí até ao 25 de Novembro, protagonizaram a fase mais crítica da revolução. A organização em finais de Agosto da FUR (Frente de Unididade Revolucionária) apoiada pelo PCP e por toda a esquerda revolucionária, defendendo o poder popular, bem como a criação dos SUV (Soldados Unidos Vencerão) como uma organização de classe, no interior do Exército, abalou profundamente esta instituição e contribuiu para empolar receios nos países pertencentes à NATO. "Em Madrid as tropas enviadas contra uma manifestação foram recebidas aos gritos de MFA. Em Valência, estudantes organizam uma manifestação de solidariedade para com Portugal e saem à rua de cravo na mão. A Polícia franquista reprimiu a manifestação e obrigou os estudantes presos a comerem os cravos. Em Itália, realizou-se uma série de manifestações com a presença de soldados e sargentos que contestavam a hierarquia, e em França desencadeia-se um movimento a favor da sindicalização dos soldados apoiados pelos partidos Socialista e Comunista, e pela CFDT (confederação sindical socialista)" (Rodrigues, Borga, Cardoso,1979: 125).
Entre Outubro e Novembro, os golpes eram anunciados quase todos os dias. Fervilhavam boatos de golpes e contra-golpes, num clima de insegurança que desestabilizava a sociedade civil e sobretudo os meios militares, incapazes de assimilar tantas contradições.
O governo e o Conselho da Revolução onde os 9 pontificavam, esforçavam-se por criar um aparelho militar de apoio ao executivo, que substituísse o COPCON. É criado o AMI (Agrupamento Militar de Intervenção) que tem, no entanto, uma existência efémera e muito controversa. A destruição dos emissores da Rádio Renascença, a 7 de Novembro, pelo grau de violência que revestiu e pelas repercussões que teve, tanto a nível militar, como civil, é justamente considerada como uma das causas próximas do 25 de Novembro.
6. O 25 de Novembro de 1975
Encerra este longo período que estamos a analisar, conhecido por verão quente, e vem alterar por completo a correlação das forças políticas em Portugal, tanto a nível civil como militar. Foi, sem dúvida, o culminar de todo um clima de confrontação latente ou declarada, acumulada desde o 11 de Março, que acelera o processo contra-revolucionário, como o golpe de Spínola tinha acelerado o processo revolucionário.
As forças de esquerda mais empenhadas no processo desde o seu início, perdem a hegemonia para um partido que há muito protagonizava a oposição ao projecto revolucionário, o Partido Socialista. A derrota da esquerda revolucionária e do seu projecto de democracia popular (ao qual eram sensíveis os militares do COPCON), o isolamento e contenção do projecto de inspiração marxista-leninista do PCP (ao qual eram sensíveis os militares ditos gonçalvistas), retiraram aos movimentos de massas e às embrionárias organizações de soldados toda a inspiração e o apoio organizativo. Foi vencedor o PS (ao qual eram sensíveis os militares do grupo dos 9, ocasionalmente aliados, tal como o PS, da direita militar e civil), e sobretudo o seu projecto de democracia parlamentar consolidado pela vitória nas eleições legislativas de 1976.
Logo a seguir ao 25 de Novembro afloraram as primeiras manifestações revanchistas: à direita, PPD e CDS reconhecem por um tempo a supremacia do PS e o seu mérito na liderança da batalha anti-comunista. À esquerda o PCP procura evitar hostilizar os novos vencedores, na esperança de colher alguns frutos (pelo menos ao nível do aparelho de Estado), da negociação que fizera com o novo poder militar no próprio dia 25 de Novembro. Este novo poder militar, por sua vez, não consegue fugir no seu interior, ao abraço da extrema direita que, começando pelo facto de não se ter eliminado o PCP da cena política, viria, pouco a pouco, a pôr em causa o próprio 25 de Abril.
Na verdade, os sinais evidentes de recuperação política das forças ligadas ao antigo regime não se fizeram esperar: surgem novas e aguerridas organizações de extrema direita, dá-se a reintegração no aparelho de Estado e nas empresas da maior parte dos elementos de confiança do antigo regime, saneados em 25 de Abril; verifica-se o regresso e a libertação de militares ligados ao ELP e ao MDLP, quase todos os militares comprometidos com o 11 de Março foram progressivamente reintegrados (como aconteceu com o próprio Spínola). A velha hierarquia militar reconstitui-se e reorganiza-se, os poucos responsáveis políticos presos pelo poder revolucionário (Santos Júnior, Moreira Baptista, Silva Cunha, e Kaúlza de Arriaga), foram libertos, com o argumento de que não havia contra eles processo formal. Este mesmo motivo vem a ser apresentado mais tarde pelo presidente Ramalho Eanes para permitir o regresso do Brasil ao presidente Américo Tomás deposto em 25 de Abril.
Afirma Pezarat Correia: "O grupo dos 9 foi ingénuo e imprudente. Quando admitiu que, travando a anarquia esquerdista, esvaziava o balão que o avanço da direita ia enchendo, acabou por só obter resultados contra a esquerda. É que o processo contra-revolucionário não estava só contra o radicalismo da revolução. Estava contra a revolução em si, ainda que processada através de instrumentos institucionais, ainda que democrática e constitucionalmente consagrada, ainda que ordeira e pacífica. Estava contra as transformações que colidissem com os seus interesses de classe dominante antes do 25 de Abril. Estava contra a própria democracia"(Correia,1994:150).
7. O terceiro excluído
E assim, seguindo de uma forma necessariamente sintética, a proposta que faz da Revolução de Abril um espaço de confronto entre os dois projectos contrários - Revolução ou Reforma - é óbvio o triunfo deste último, mas deficitária e linear a conclusão. A Revolução Portuguesa terá sido, de facto, muito mais do que isso.
De uma forma discreta, mas persistente e não imperceptível, competiu com essas duas tendências claramente dominantes uma terceira que, ao contrário das anteriores, não copiava modelos, mas antes constituiria uma terceira via, original, portuguesa, entre o modelo representativo social-democrático e o modelo revolucionário soviético. "Apontávamos então para o que alguns de nós designávamos de democracia avançada, fórmula que procurava enxertar na democracia política os elementos de socialismo que nos pareciam capazes, no Portugal contemporâneo e nas condições concretas da sociedade portuguesa do momento, de desenhar os contornos de um modelo de sociedade alternativo, isto é, nem social democrata, no sentido da reprodução dos modelos em vigor nas sociedades industriais avançadas do mundo capitalista, nem colectivista, no sentido da transplantação mecânica dos modelos político-sociais das chamadas democracias populares" (Antunes, 1985:51).
Este outro olhar sobre a revolução tem interessado cada vez mais os estudiosos, que têm vindo a chamar a atenção para documentos significativos e que não cabem em nenhum dos grupos anteriores. É assim que Boaventura de Sousa Santos traça uma linha que, vindo desde o polémico documento Melo Antunes, desemboca num importante projecto da autoria de Manuela Silva já no 1º Governo Constitucional, passando por documentos de conciliação como o Projecto Político de Agosto de 75, e o documento Fabião. Afirma o autor: "À primeira vista esta seria uma forma política adequada às condições estruturais da formação social portuguesa e às condições criadas pelo próprio processo revolucionário. Por um lado, o universo simbólico de libertação à volta da democracia representativa depois de 50 anos de fascismo, reforçado pelo peso da pequena burguesia na sociedade portuguesa, e o seu apego às liberdades civis e políticas. Por outro lado, a necessidade de dar coerência e globalidade à participação popular numa sociedade que, dadas as suas assimetrias, poderia facilmente conduzir ao desencanto e à indiferença das classes populares, perante o jogo político da democracia representativa cheia de pequenas rotinas e corrupções, de deseconomias e de ineficiências. Enquanto a intervenção mitigada da democracia directa fortaleceria o tecido democrático da sociedade portuguesa, a democracia representativa constituiria a melhor defesa contra a vertigem insurreccionalista de algumas forças políticas organizadas"(Santos,1984:48).
Apesar de vencida esta tendência, não deixa de marcar decisivamente a marcha dos acontecimentos e o rosto deste país, e mesmo de ver plasmadas algumas das suas propostas no texto básico da Constituição de 76, uma das mais avançadas da Europa.
8. Conclusão
Afinal o que se passou em Portugal especialmente nos anos de brasa de 74 a 76? Um golpe de Estado ou uma Revolução? A dificuldade numa resposta linear é patente nas expressões dos historiadores: para uns terá sido uma "revolução contra-ciclo", ou seja uma revolução que eclodiu num tempo e lugar (Europa,1974), em que tal já não se acreditava ser possível. Uma revolução que tardiamente, e portanto também inesperadamente, vem a constituir a última de uma série inaugurada com a queda das ditaduras fascistas e nazis, na 2ª guerra mundial. Para outros, ao contrário, ela abriu um novo ciclo de transformações sócio-políticas que, começando em Espanha, vai até à Grécia, influencia decisivamente alguns países da América Latina e as Filipinas, anuncia também as profundas mudanças do Leste, e chega até à própria África Austral. Para outros ainda, ela terá sido as duas coisas.
A dificuldade na caracterização do 25 de Abril de 74 vem, pois, ganhando corpo na reflexão de alguns dos mais importantes estudiosos desse período. E, embora com aspectos divergentes, quer nas permissas, quer nas conclusões, essa preocupação parece constante em autores como Boaventura de Sousa Santos, Medeiros Ferreira ou António Reis. Na verdade, é essa dificuldade de catalogação que leva António Reis a falar de "um golpe militar clássico falhado e uma revolução clássica falhada", Boaventura de Sousa Santos de " um curto-circuito histórico que provocou uma dramática aceleração histórica na nossa sociedade"(Jornal de Letras, Vinte anos de Futuro, 27 Abr.1994), ou Medeiros Ferreira a falar de "revolução imperfeita". Contudo, é ainda este mesmo autor que escreve: "O conceito de revolução está, assim, presente em quase todos os pensadores deste período, seja para caracterizar um momento, evocar uma possibilidade, medir a sua insuficiência, ou para indagar sobre o passado de Portugal. Assim, ao voltar agora ao assunto, mantenho a ideia de se ter operado um movimento brusco na sociedade portuguesa, desencadeado pela acção do 25 de Abril de 1974. E não me refiro apenas à sociedade política, onde foram manifestas as modificações introduzidas. O 25 de Abril desencadeou profundas alterações nos valores e na vida social nacional. Ele marca uma era. tantas são as ocasiões em que é tomado como referência:antes do 25 de Abril...só com o 25 de Abril...são expressões coloquiais quotidianas que se impuseram nos últimos vinte anos. A data de 25 de Abril de 1974 marca, pois, o séc. XX e divide a sociedade em antes e depois. Será isso uma revolução? É certamente uma era " (Ferreira,1993.11).
Não se tratando aqui de discutir esta apaixonante questão, o que interessa sublinhar como testemunho de uma experiência antes de mais vivida e só posteriormente pensada, é que, na sua grande maioria, os portugueses viveram uma revolução contra-ciclo, com toda a carga simbólica que lhe é característica. Basta folhearmos a imprensa desses dias que abalaram Portugal, e o que deles se preserva no que respeita à riquíssima iconografia revolucionária (cartazes, auto-colantes, emblemas e, particularmente, os magníficos murais que cobriram as paredes deste país), basta recordar as canções, e toda a produção artística dessa época, para nos apercebermos de que essa intensa mitificação ideológica do universo político nacional, se operou quase inteiramente sob o modelo clássico do que designamos de "revolução contra-ciclo". E parece ter sido ainda nessa perspectiva que a nossa experiência foi vista em todo o mundo, mas sobretudo na Europa. Dominique Pouchin, jornalista do Le Monde e autor de alguns dos mais emocionantes relatos feitos no estrangeiro sobre o 25 de Abril, escreveu, por exemplo: "Portugal oferecia-nos uma Cuba na Europa do sul. Não era perante um caso de exotismo que nos encontrávamos, mas sim perante a ideia de que a Revolução era de novo possível no Velho Continente, no cabo da Europa. De que por uma singular curva da história, a revolução que tinha ganho a periferia, o Chile, o Vietnam, podia regressar ao centro e adquirir actualidade num país europeu, perto de nós"(Mesquita,1994:180). E, tal como ele, muitos outros jornalistas, cidadãos comuns e nomes grandes da cultura e da política (Sartre, Ernest Mendel, Maurice Duverger, Alain Touraine, Cohn-Bendit, Graham Green, entre outros), sentiram aquele irresistível apelo de poder assistir in loco e talvez pela primeira e última vez, a algo que só conheciam dos livros.
Portugal foi, nessa altura, um verdadeiro laboratório de análises sociais e políticas. Lugar de fascínio para uns, mas também de fortes receios para outros, atendendo à nossa especial posição geopolítica e geo-estratégica, fomos, naqueles breves, mas intensos e exaltantes meses, notícia de primeira página um pouco por todo o mundo, mas sobretudo na Europa, nessa velha Europa que, no dizer de Eduardo Lourenço, "queríamos revolucionar e que, diga-se de passagem, julgou que ia revolucionar-se connosco" (Expresso, 22 de Abril. de 1989) .