(a propósito da homenagem a Salgueiro Maia, realizada em Santarém, em Abril de 2002)
Maria Manuela Cruzeiro
Lembrar Salgueiro Maia, o homem, convocando memórias de amigos mais íntimos, num encontro especialmente dedicado aos jovens, àqueles com quem ele preferia comemorar o 25 de Abril (por norma não comparecia nas sessões oficiais) para que não confundissem o nosso com outro 25 de Abril (o da libertação da Itália do fascismo…) foi o objectivo da homenagem que lhe foi prestada em Santarém, no âmbito das Comemorações de mais um aniversário da Revolução .
Aparentemente uma homenagem igual a tantas outras que depois da sua morte se têm multiplicado, em tão gritante contraste com o silêncio distraído ou cúmplice com que em vida se assistiu à marginalização sistemática, à verdadeira perseguição de que foi vítima. Foi preciso morrer para então lhe serem prestadas todas as honras, num coro de inquietante unanimismo que, acredito, o incomodaria tanto ou mais do que as injustiças e humilhações que lhe doiam a título pessoal, mas mais ainda porque sabia visarem um colectivo a que se honrava de pertencer e que dignificou como ninguém: os “implicados no 25 de Abril”… Como lembrou Matos Gomes, aquando da entrega da mais alta condecoração nacional (Ordem Militar da Torre e Espada), à viúva, Natércia Maia, “se é legítimo pensar que em vida nunca lhe outorgariam esta condecoração, a verdade é que até a sua morte foi um acto revelador das suas excepcionais qualidades, pois de novo congregou companheiros e amigos e neutralizou os que, ao arrepio das suas consciências, mais uma vez, como no Terreiro do Paço, como no Carmo, como no dia do seu funeral, tiveram de se vergar perante ele.” (Referencial, nº27).
Mas não foi disso que se falou nesta homenagem que eu dizia ser só aparentemente mais uma. Não se falou do passado, e dos seus fantasmas, apesar de evocarmos alguém já desaparecido. Não evocámos a memória de Salgueiro Maia em litanias de soturna melancolia, tão ao nosso jeito, mas tão ao contrário do recado que nos deixou: que no seu enterro cantássemos Grândola e a Marcha do MFA.
Traçámos-lhe um perfil a partir do muito que generosa e espontaneamente ele foi distribuindo por quem teve o privilégio de o conhecer. E o que é a vida, senão este caminhar para a memória que os outros guardarão de nós? Maia pode orgulhar-se de ter deixado marcas muito fortes que o passar do tempo, ao invés de apagar, mais aviva e ilumina. Dos camaradas de armas, aos companheiros de farra, aos amigos de todas as horas, os testemunhos multiplicaram-se, tocantes de sinceridade, não raro atravessados pela emoção, mas incisivos no retrato a corpo inteiro de uma personalidade e percurso incomuns.
E no entanto, ouvindo esses testemunhos humanos (onde colaborei o melhor que soube e pude…) a perplexidade foi crescendo em mim e acredito que nos restantes convidados: Aqueles jovens para quem quisemos passar uma versão humanizada de um herói, respeitando, aliás, a sua natural relutância em galgar tão alto patamar (fazia questão de dizer que não acreditava em heróis, só em homens a sério…), terão captado a imagem mais fiel e verdadeira de Salgueiro Maia, ou apenas uma aproximação grosseira em que a nossa memória, o melhor da nossa memória, teimava em o aprisionar?
E quanto mais tentava recordar o homem concreto, mais os seus contornos se diluiam cedendo à sua recriação no belo filme Capitães de Abril e, mais ainda, retinha as palavras de Maria de Medeiros, em resposta a reparos de alguma falta de rigor histórico no tratamento do personagem: “Às vezes não é contando com rigor como tudo aconteceu, como as coisas se passaram que se entende o seu significada mais fundo…”
Então, entre o Maia que todos conhecemos e o herói do Carmo que zonas de proximidade e de afastamento?
O que há de comum entre o menino que, estranhamente não gostava de futebol e, ao contrário, preferia os jogos de guerra, exibindo um particular gosto em organizar e comandar, e o capitão operacional que na hora da verdade não hesita um segundo: “eu é que vou…”? Entre o feroz individualista, avesso à cadeia de comando, e o militar exemplar, louvado por chefes e venerado pelos seus homens? Entre as notáveis qualidades de “aprumo, lealdade, disciplina, etc, etc,” e esse gosto em incomodar, em provocar, organizando verdadeiras reuniões conspirativas (ao som das canções de resistência) nos intervalos da guerra?… Entre a rígida formação militar que recebeu e a tão oposta visão cultural dos povos que aprendeu a conhecer e a admirar?
O que há de comum entre a total ausência de vaidade com que rudemente responde à glorificação fácil com um “fiz apenas o que tinha que ser feito”, e o orgulhoso desprendimento com que rejeita, para gáudio de inimigos e desespero de amigos, qualquer cargo político-militar, a uns e outros desarmando, sereno mas definitivo: “Foi de tal maneira belo, que depois dele nada mais digno pode acontecer na vida de uma pessoa” ?
O que há de comum entre a sonora gargalhada à Maia, e aquela nuvem de tristeza que lhe tolda o olhar, mesmo na felicidade, tão intensa quanto breve, que lhe foi dado viver? Ou entre a brusquidão e rispidez dos gestos, o trato difícil feito de teimosia e obstinação, por vezes de mordacidade extrema, e a ternura envergonhada e fugidia que não regateou àqueles de quem gostava?
A nossa situação tinha esta singularidade: Queríamos falar do homem, mas não podíamos ignorar o herói. Queríamos falar do Maia, mas o herói do Carmo sobrepunha-se. Involuntariamente caminhávamos para o núcleo do mistério. Pensando decifrá-lo mais o adensávamos. Tentámos responder à pergunta: Como nascem os heróis? Pareceu-nos que a nossa específica condição de amigos, de testemunhas directas, nos tornava intérpretes privilegiados. Falámos muito do homem, das suas qualidades de determinação, coragem, frontalidade, inteireza, coerência, lealdade. Somámos episódios, vivências, experiências, e até lembrámos a fala premonitória: “havia de ser bonito…eu pela Avenida da Liberdade abaixo…até ao Terreiro do Paço…”, como se tudo isso formasse um capital valioso que o predestinava a grandes feitos, pelos quais entraria discreta e directamente na história. No limite fizemos uma leitura retrospectiva do passado, de modo a demonstrar a longa e determinada preparação para o heroísmo.
Esquecemos que ninguém se prepara consciente ou inconscientemente para um momento a todos os títulos improvável. Ninguém se prepara para um gesto, um acto desmedido na sua natureza e nas suas consequências. Um acto heróico. As excepcionais qualidades do Maia, soberbamente comprovadas na jornada que mudou a sua e as nossas vidas, e sem as quais nada teria sido como foi, terão sido condição necessária mas não suficiente.
Entre o Maia que sai de Santarém, e o herói do Carmo operou-se um salto que na ordem do biográfico é de horas, mas que na ordem do simbólico suspende o próprio tempo.
Não estamos já na ordem da causalidade histórica, psicológica ou outra, mas na ordem do imponderável, ou se quisermos, nesses raros momentos em que a história marca encontro com os seus agentes, e como que passa através deles, servindo-se até do que noutros planos pode parecer defeito. Porque se é verdade que a história é um rio silencioso em que soçobram os sonhos mais ambiciosos e exaltantes, não o é menos que é deles que se alimenta esse imenso caudal de onde, de longe em longe, sobem à tona sementes à espera de ventos propícios. É essa a hora dos heróis, sujeitos e agentes da história, através dos quais ela se redime do seu aparente e enigmático não sentido. Foi essa a hora do Maia, embora ele não o soubesse ou o soubesse de uma outra maneira: “ O herói a si assiste, vário e inconsciente…”. A sua grandeza foi, glosando a tragédia grega, enfrentar o Minotauro insaciável e não adiar o tempo e a vitória que, no dizer de Francisco Sousa Tavares, “veio ter com ele, obediente e fascinada”. No Carmo, Salgueiro Maia foi mais, muito mais do que a soma de todas as suas qualidades. Foi maior e melhor do que ele próprio, porque arrastado por forças mais poderosas do que ele: “Aqui ao leme sou mais do que eu…”
Nós, que conhecemos o homem e o herói, e fomos testemunhas maravilhadas e incrédulas dessa prodigiosa metamorfose, tentámos integrá-los num todo. Não o conseguiremos nunca. Eles já não nos pertencem. Não por falta de biografia, mas por excesso de sonho. Pouco contam as versões reais do Maia, face à intensa irrealidade do Herói do Carmo. Poderemos sempre mitigar esse vazio e alimentar a ilusão de os ter mais perto, repetindo com Lídia Jorge :”Nós aqui soubemos logo, dois dias depois, que vocês tinham feito uma revolução. Mas nunca pensámos que chegássemos a ver os heróis!”
Mas, se quisermos preservar as sementes do sonho, aquele fio de azul que haverá sempre em todos os escombros, reencontrar-nos-emos sempre com Manuel Alegre, cronista-mor de reinos imaginários (e tão reais) : “Diz-se o teu nome e sais de Santarém/trazendo a espada e a flor da liberdade” ou com João de Melo: “Oficial e cavalheiro que sou, entrarei firme nos portões do Carmo, e ninguém saudarei pelo caminho…”