Artigo publicado em Le Monde Diplomatique (edição portuguesa) Abril 2002
Maria Manuela Cruzeiro
Entre as causas próximas do 25 de Abril, a mais importante (mesmo decisiva) foi a necessidade de acabar com uma guerra colonial injusta e sem saída que durava há treze anos, (mais tempo do que a guerra do Vietnam!) e cujas consequências só agora se conhecem em toda a sua trágica extensão: cerca de um milhão de mobilizados, 10.000 mortos, 26.000 mutilados, 140.000 afectados por graves distúrbios psíquicos (o chamado stress de guerra). Foi, na verdade, a guerra colonial a verdadeira escola política para militares que, formados na ideologia colonialista do Estado Novo, ao serem mobilizados para África, puderam confrontar in loco a propaganda oficial do regime com a realidade complexa de uma guerra de guerrilha em três frentes. O çontacto directo com o outro lado das coisas, o conhecimento das razões dos movimentos de libertação enraizaram neles a convicção de que, para acabar com a guerra era necessário também acabar com o regime que a suportava.
Se, numa primeira fase, a guerra colonial foi factor, por um lado de significativo desenvolvimento económico, e por outro de coesão ideológica de um regime que, para sobreviver, se vê obrigado a substituir o corporativismo pelo colonialismo como seu núcleo central, na sua fase final, como afirma Boaventura de Sousa Santos, “o regime era já pouco mais do que a sua guerra, perante a qual se encontrava em total impasse: impossibilitado de a ganhar, sabia que também a não podia perder”1 .A guerra colonial foi, portanto, o factor decisivo no colapso do regime: de balão de oxigénio inicial, transformou-se em garrote asfixiador, empunhado pelo próprio braço armado do regime, a instituição militar.
Vários factores contribuiram para essa primeira originalidade da revolução de 1974: uma revolução estritamente militar. Com efeito, ao contrário do que acontecera no passado, o 25 de Abril foi planeado, preparado e executado apenas por militares. A própria elaboração do Programa político do MFA não obedeceu a qualquer entendimento prévio com forças partidárias civis, muito embora acabasse por acolher algumas das suas principais reivindicações, o que prova a influência do longo combate travado por essas forças de oposição. Contudo, em 1974, esse combate estava longe de atingir a expressão pré-revolucionária que já tinha atingido noutros momentos, como por exemplo, em 1958 (com o General Delgado) ou mesmo em 1969. Curiosamente, os últimos tempos da ditadura foram de aparente controlo da contestação das forças oposicionistas, sujeitas a uma última vaga repressiva, em que a farsa liberalizante de Caetano acabou por revelar a sua verdadeira face. Esta situação de debilidade da oposição política civil, juntamente com o crescente descontentamento no seio da instituição militar pela ausência da prometida, mas sempre adiada, solução política para a guerra, bem como pelo tratamento de “bodes expiatórios” de que eram vítimas, fez dos militares (sobretudo dos capitães, porque mais duramente castigados) os verdadeiros protagonistas da revolta.
Conflito e ruptura
Esta não é uma tese consensual. Pelo contrário, há quem, valorizando o trabalho da oposição, especialmente desde os anos 50, acabe por encarar o golpe militar quase como o culminar de um longo processo. Valorizando aparentemente a luta oposicionist,a, esta tese pode conduzir a duas falsas conclusões:
A primeira é a de que o regime estava podre e cai como um castelo de cartas, pelo que não há mérito para os conspiradores, mas, quando muito, demérito para o próprio regime em crise e seus principais responsáveis. Assim sendo, os capitães limitaram-se a aproveitar a situação e, bem à portuguesa, actuaram muito na base da improvisação, do golpe de sorte, ou do “desenrasca”, em boa gíria militar, pelo que também pouco mérito podem reclamar. Importa salientar que, se é verdade que o regime estava desmoralizado e com dificuldades em reagir, não é menos verdade que para isso muito contribuiu justamente a actuação do Movimento dos Capitães, na sua fase clandestina. Quem estudar com pormenor essa fase menos conhecida, concluirá facilmente que se trata de um comportamento inteligentemente delineado, programado mas flexível, determinado mas com rasgos de imaginação surpreendentes. Na verdade, quer oscilando entre a legalidade e a ilegalidade, quer aproveitando todas as brechas que o regime oferecia, os capitães souberam tirar amplo partido de uma situação que nunca deixaram de controlar, o que lhes deu sempre capacidade de iniciativa e grande superioridade moral.
A segunda falsa conclusão consiste em considerar o processo revolucionário mais como processo e menos como revolução, mais como continuum e menos como ruptura, não estabelecendo fronteira nítida entre o antes e o pós 25 de Abril. Sustentando que o processo político de mudança arranca na década de 50, o 25 de Abril teria contornos muito próximos da transición espanhola para a democracia e não de um acto revolucionário. É muito nítido o aproveitamento que a direita faz destas duas teses. Mas importa lembrar que a nossa democracia não é resultado de uma evolução, ou de qualquer regeneração das instituições da ditadura, que, incapaz de se regenerar, respondia, no final do marcelismo, precisamente com o reforço da repressão, o que contribuiu, obviamente, para a referida situação de relativa debilidade da oposição. A democracia em Portugal nasceu do conflito e da ruptura, ao contrário do que pretendem muitos amnesiólogos da história, como refere Kenneth Maxwell, que acrescenta “esta desvalorização da revolução tem a desvantagem de retirar importância a algumas das dinâmicas vitais para a formação do novo regime”.2
Uma dessas dinâmicas constitui, sem dúvida a segunda originalidade da revolta dos capitães: o seu carácter democrático. Espantou o mundo, mesmo o mais próximo da realidade portuguesa, espantou inclusivamente muitos portugueses descrentes das potencialidades democráticas de uma instituição conservadora e tendencialmente reaccionária, enformada por valores de ordem, disciplina e hierarquia muito fortes. Contudo, as condições concretas da guerra colonial possibilitaram uma politização acelerada dos militares, inteligentemente orientada na fase da conspiração ( de 73 a 74) pelos responsáveis do movimento. O programa político do movimento, o famoso programa dos três Ds, (democratizar, desenvolver e descolonizar) é um sábio produto de engenharia doutrinária. Trata-se de um texto que, para além de ser um rigoroso diagnóstico da situação do país, traduzia o máximo denominador comum dos amplos sectores civis e militares de oposição ao regime e que, para tal, se apresentava suficientemente genérico e abrangente, o que constitui o seu principal defeito e a sua principal virtude: As suas indefinições traduzem a natureza e amplitude do compromisso que teve que existir entre as vários sensibilidades dos militares envolvidos e saldou-se por um curioso jogo de cedências e exigências mútuas: os sectores mais progressistas (representados genericamente pelos capitães) exigiram uma definição da política económica como anti-monopolista, enquanto que os sectores mais conservadores ( com Spinola à cabeça) exigiram uma solução para as colónias gradual e controlada. Não se pense que a solução de compromisso se ficou a dever a tibieza ou falta de capacidade negocial por parte dos capitães. Deveu-se, sim, ao facto de, na sua maioria, eles considerarem indispensável o compromisso de Spínola, não só como factor de credibilidade do movimento junto de unidades e chefias militares mais renitentes, mas também, o que é muito importante, como meio de inviabilizar qualquer tentativa de independência por parte da população branca das colónias, particularmente de Angola.
Se o programa cumpriu totalmente a sua função aglutinadora de tendências e garantia expressa de que se não tratava de um simples putch militar clássico (é de lembrar que na própria noite do golpe, os militares no Posto de Comando contrariaram energicamente a vontade de Spínola de não divulgar o programa, ou seja de fazer dele tábua rasa, para mais facilmente assumir ele o comando do processo) no dia seguinte estava ultrapassado. De plataforma unitária rapidamente passou a factor de divisão entre os seus subscritores.
Desapego do poder
A leitura prospectiva e dinâmica desse programa, imposta pela vertigem dos acontecimentos, origina a terceira característica da acção militar que tem a ver com o papel do MFA, continuador do Movimento dos Capitães, sinceramente apostado na democratização da sociedade, e não em qualquer plano encapotado de ditadura militar, mais suave, mais portuguesa. Com erros, hesitações, ou ambiguidades, nunca é de mais salientar o genuino desapego do poder e a essencial fidelidade à exigencia democrática que caracterizou o núcleo mais autêntico do MFA. (a realização das primeiras eleições livres exactamente um ano após o golpe, é um exemplo entre muitos). Como escreveu Eduardo Lourenço, os militares políticos nunca esqueceram que “a vitória do 25 de Abril não foi a do poder militar sobre o civil, mas a de um contrapoder militar apoiado numa potencial legitimidade civil sobre um poder civil ilegitimado pelo apoio abusivo do único ou quase exclusivo poder militar”.3
Embora muitos dos que se envolveram na acção militar preconizassem um regresso a quartéis, os mais politizados logo perceberam a impossibilidade de tal medida. A surpreendente mobilização popular, a extraordinária e incontrolada explosão social reivindicativa de carácter laboral e estudantil, que varreu todo o país, procurando novas formas de organização em sindicatos, comissões de trabalhadores e moradores e todo o tipo de associações, abanava o frágil poder político de uma Junta Militar clássica e fortalecia e legitimava o MFA, transformado em verdadeiro imaginário social de libertação. Foi ele que no primeiro ano da Revolução fez a ligação entre a sociedade civil e o aparelho de Estado, em perfeita ligação com os movimentos populares, através da ractificação popular do golpe militar, da resolução da maior parte dos problemas concretos das classes trabalhadoras, (como por exemplo a resolução dos problemas de habitação pelo COPCON), da realização das Campanhas de Dinamização Cultural e, por fim, através da tentativa de construir uma forma de Estado com base na Aliança Povo¬ MFA.
Mas quando, finalment,e se atinge a institucionalização dessa aliança com o Documento Guia da Aliança Povo-MFA, (julho de 75) já o povo dera lugar aos partidos políticos mais interessados na conquista do poder do que em qualquer esforço de pedagogia cívica num pais afastado da vivência democrática por mais de quarenta e oito anos.
No confronto entre os dois projectos de democracia popular ou de democracia representativa, o MFA, por entre obstáculos próprios (as fortes clivagens internas) e alheios ( a contra-revolução), atingiu a maximização do seu projecto político através de um terceiro, assim descrito por um dos seus principais ideólogos, Melo Antunes: “apontávamos então para o que alguns de nós designávamos por democracia avançada. Fórmula que procurava enxertar na democracia política os elementos de socialismo que nos pareciam capazes, no Portugal contemporâneo e nas condições concretas da sociedade portuguesa do momento, de desenhar os contornos de um modelo de sociedade alternativo isto é, nem social democrata, no sentido da reprodução dos modelos em vigor nas sociedades industriais avançadas do mundo capitalista, nem colectivista, no sentido da transplantação mecânica dos modelos político-sociais das chamadas democracias populares”.4
Das singularidades da revolução portuguesa apontadas, esta seria, a concretizar-se, a mais assinalável. Seria a tal via original portuguesa, se, como nos confirma Umberto Eco, (embora nós já desconfiássemos) “a revolução nacional já não se faça, porque tudo é decidido noutro lugar”.
1 Boaventura de Sousa Santos, O Estado e a Sociedade em Portugal (1974-1988), Edições Afrontamento, Porto, 1992, p. 27
2 Kenneth Maxwell, A Construção da democracia em Portugal, Editorial Presença, Lisboa, 1999, p.17
3 Eduardo Lourenço, Os militares e o poder, Arcádia, Lisboa, 1975, p. 93
4 Ernesto Melo Antunes, As Forças Armadas e o MFA in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº15-17, 1985, p.51