Comunicação apresentada no ciclo de Conferências OS PRESIDENTES DA REPUBLICA no Museu Bernardino Machado a 8 de Abril de 2005
Maria Manuela Cruzeiro
Começo por agradecer o amável convite para evocar uma personalidade que marcou o nosso tempo recente, uma personalidade já histórica, mas que, quer nessa dimensão, quer na sua dimensão humana, permanece envolta num halo, se não de mistério, pelo menos de contradição, que tanto inquietou os portugueses no tempo revolucionário e continua a inquietar estudiosos e investigadores.
A prová-lo, os mais variados epítetos (nem sempre muito simpáticos, para ficar por aqui…) com que tem sido distinguido, e até a imagem dominante, ou mesmo exclusiva, que deixou para a galeria de um certo anedotário popular. Todos se lembram da alcunha de Rolha ou Cortiça, sinalização da sua proverbial longevidade política, da sua capacidade de flutuar e se manter à tona de todas as tempestades.
Num registo mais erudito, são inúmeros os desabafos de impotência de todos quantos apostaram no esclarecimento da sua real importância na cena política nacional, de forma visível ou mais discreta, durante cerca de meio século: Medeiros Ferreira, por exemplo, no seu livro Ensaio Histórico sobre o 25 de Abril, considera que “o papel de Costa Gomes é indiscutivelmente um dos maiores mistérios da fase pré-constitucional da Revolução” (1); Mário Mesquita chama-lhe o Marechal enigmático; Gomes Mota confessa que só se conhecerá verdadeiramente o seu pensamento através de um critério extra-terreno.
E foi talvez por levar a sério essa sugestão que, a dada altura, Sá Carneiro decidiu ir tão longe quanto possível na exploração dessa pista extra-terrestre, pedindo uma audiência privada ao amigo íntimo e director espiritual do velho Marechal, o jesuíta Cabral Abranches. Queria saber, de fonte credível, se Costa Gomes era, de facto, um católico convicto. Não consta que a resposta tenha sido muito tranquilizadora, uma vez que o jesuíta só garantiu, muito empiricamente, o que a sua própria experiência lhe permitia: que o seu velho amigo cumpria escrupulosamente os ditames da Igreja Católica. Se por dever, se de acordo com o dever, para usar a fórmula chave da moralidade kantiana, nem ele, seu confessor, o saberia nunca.
Mas nem todos os testemunhos avaliam da mesma forma esse perfil enigmático, indecifrável, quase esfíngico. Justamente por ele, mas também “pela inteligência, pelo sibilino da personalidade, pelo modo como sempre soube resolver as bastas situações contraditórias em que se viu envolvido”(2) Rodrigues da Silva chega a considerar que Sheakespeare não desdenharia dele. Por isso o considera um verdadeiro herói do 25 de Abril, tal como Vítor Alves, que não hesita em chamar-lhe General de Abril e Marechal da Democracia em nítida oposição ao outro Marechal seu falso irmão, António de Spínola, que embora pudesse partilhar com ele o primeiro epíteto, nunca seria merecedor do segundo.
Uma simples consulta ao que se tem escrito sobre a acção e personalidade daquele que alguém definiu como demasiado neutro para ser interveniente e demasiado interveniente para ser neutro, permite-nos distinguir claramente dois períodos:
Um primeiro, necessariamente dominado pela visão exaltante (e mesmo exaltada) das vozes e das cores da revolução, vivida por vezes como verdadeiro psicodrama, que dificilmente se harmonizavam com o “cinzentismo” da figura, a sua reconhecida dificuldade em exprimir-se em público, a sua consabida tendência para a conciliação, quando não mesmo para a neutralização, por omissão, das tensões acumuladas e prontas a explodir a cada momento.
Um segundo, em que a reavaliação do papel desempenhado pelo Marechal durante esses dois anos de convulsão social e política tem vindo a ser proposta por figuras insuspeitas, das quais a menor não é certamente Diogo Freitas do Amaral que, nas suas Memórias publicadas em 1995(3) o apresenta como o principal factor de estabilização do regime democrático durante a longa crise de 1975.
1. Tudo se fez, críticas ou elogios, um tanto à revelia da figura inspiradora, comummente considerado um homem modesto, discreto, apagado, obscuro, quase sombrio que “as circunstâncias colocaram no lugar que só um doido invejaria, de servir de árbitro num jogo de que ninguém conhecia as regras, tal como ninguém sabia exactamente a que team é que pertenciam os jogadores” como escreveu Luís de Sttau Monteiro(4). Disse críticas e elogios, mas, para ser rigorosa, importa recordar que eles não foram equivalentes. As críticas superaram de longe os elogios, e não raro extravasaram para lá dos limites do debate e do confronto de ideias e projectos de que é feita a democracia, para o campo dos ataques pessoais, (como o de traidor para Spínola) ou, pior ainda, dos boatos, das difamações e calúnias, dos verdadeiros assassinatos de carácter. Sem, em contrapartida, ninguém o colocar num pedestal, ou o seguir como um condottieri, que não queria de facto ser: “Tendo estado no centro do poder, nunca dele se serviu, nunca se promoveu nem procurou, sequer admitiu, ser “cabeça de cartaz” de qualquer tendência, grupo ou organização. A verdade é que, ao longo do tempo, houve spinolistas, gonçalvistas, otelistas, depois eanistas, houve sá-carneiristas e houve soaristas. Mas ninguém ouviu falar de costa-gomistas”, como lucidamente observa José Carlos de Vasconcelos (5).
Com um vasto capital de queixas, quer à esquerda, quer à direita (inimigo mortal de qualquer rdicalismo ou traidor aliado a Moscovo), Costa Gomes não contentou totalmente ninguém, e isso, longe de o magoar, era, antes, para ele, um motivo de orgulho.
Também não facilitou a vida aos estudiosos, que vão achar escassas, inconclusivas e tantas vezes ambíguas as suas intervenções e entrevistas, inclusivé a que fez comigo, que considerou definitiva. Costa Gomes-O último Marechal, constitui o livro de memórias que lhe ajudei a escrever. Na verdade, após a sua publicação em 1998, e durante os anos que ainda viveu, até 2001, remeteu sempre para ele todos os que o procuravam para entrevistas ou breves depoimentos sugeridos pela actualidade política, afirmando que tudo o que tinha a dizer estava lá, nessa longa entrevista de quatrocentas páginas.
Tudo o que tinha para dizer, não certamente tudo o que sabia. Com os seus “habituais circunlóquios e hesitações, a traduzir a insatisfação do matemático ou do cartesiano face às imperfeições da linguagem corrente”, no dizer de Mário Mesquita(6), Costa Gomes defendeu certamente uma imagem, mas contou também, se calhar em demasia, mais com a inteligência dos seus leitores do que com a sua passividade acrítica e, sobretudo, confiou no lento labor da história, segundo o célebre ensinamento de Hegel de que “a ideia não tem pressa”.
2. O meu papel de entrevistadora confrontou-me neste caso (como em todos os outros, mas neste em grau mais elevado) com dificuldades e desafios que todo o historiador enfrenta. No caso concreto da história oral, por direito próprio um método de investigação histórica, apesar dos preconceitos, essas dificuldades e desafios traduzem-se na necessidade de o investigador não ser um mero receptor ou reprodutor de informação, mas sim um hermeneuta, um intérprete da história em tempo real. Perguntando, sabendo ouvir, mas não se eximindo ao debate, à contradição, sem hostilidade, mas com determinação. Por isso, na própria produção de um documento de história oral há já uma reflexão histórica, feita a partir da colaboração de subjectividades do entrevistador e do entrevistado. Aceitar a subjectividade, se por um lado não nos dispensa do trabalho do historiador de busca do rigor e maior aproximação à verdade dos factos analisados, por outro implica a noção de que a matéria factual em caso algum se pode encontrar em estado puro, mas sempre filtrada pelo intenso, complexo e fascinante labor da memória. Tal não implica aceitar de modo acrítico o testemunho recolhido. Há um limiar entre compreender que existem versões, e afirmar que só existem versões. Em história oral, mais do que afirmar o relativismo total da verdade, interessa-nos compreender a formação das verdades de determinada personagem histórica. Mais do que postular os factos verídicos do passado, interessa-nos entender os mecanismos de construção desse passado, pelo olhar privilegiado e único dos seus principais actores e intérpretes, valorizando o que a história tradicional rejeita: a lembrança do pormenor, a sua incorporação num percurso pessoal e, sobretudo, o fascínio da sua dimensão narrativa que transcende e interpreta a simples realidade empírica.
A minha tentativa de traçar do velho Marechal o retrato a corpo inteiro pode não ter sido totalmente conseguida, mas estou convicta de que avançou muito para lá, quer da biografia oficial, quer dos lugares comuns redutores a tiques e esteriótipos comportamentais.
Esse retrato resulta tanto das longas sessões de trabalho, arquivadas para memória futura nas 33 horas de gravação que integram o Projecto de História Oral do Centro de Documentação 25 de Abril, como do convívio muito próximo que, em paralelo, pude estabelecer com o homem que com maior ou menor fidelidade, voluntária ou involuntariamente, servia de suporte à imagem pública.
E recorro às lembranças de tantas conversas em off, quer no seu apartamento de Lisboa, quer nos pequenos restaurantes próximos (cuja única exigência era que tivessem sempre peixe fresco) ou no breve trajecto a pé nas suas imediações. Um discreto e pacato quotidiano só quebrado com as poucas cerimónias oficiais para que ainda era convidado, os espectáculos de música ou dança que não dispensava, ou com a visita de alguns (poucos) velhos amigos. Para minha grande surpresa convivia com esse prematuro esquecimento com uma naturalidade desarmante. Dizia que lhe bastava ser reconhecido (e cumprimentado) por alguns dos muitos anónimos com quem se cruzava acidentalmente.
Cedo verifiquei que o que me parecia uma profunda injustiça, era para ele uma simples consequência lógica das suas convicções democráticas. Em democracia, diz-se, não há cidadãos de primeira nem de segunda, e ele, sem alardes, cumpria com estrito rigor essa máxima. Terminadas as altas missões a que foi chamado, não era nem mais nem menos do que qualquer cidadão anónimo deste país. Por várias vezes lhe contrariei esse discurso: “Não será excessiva modéstia?… é certo que honrarias e benesses não são muito democráticas… mas então o reconhecimento das capacidades e do mérito?”. Era então que uma ligeira sombra toldava a clareza lógica do argumento: “realmente, acho que após a minha saída da Presidência da República não foram aproveitados os meus conhecimentos, especialmente no que respeita às FAs e à descolonização”.
Não ser aproveitado era um eufemismo para evitar dizer, mais friamente, “ser dispensado”. São conhecidas as divergências entre Costa Gomes e Mário Soares, o Presidente que o não aproveitou, preferindo-lhe sempre o seu falso irmão Marechal António de Spínola. Por várias vezes (em público e privado) Costa Gomes lamentou nunca ter sido contactado para dar a sua opinião sobre questões político-militares, sabendo-se que a dignidade de marechal implicava, justamente, a condição de conselheiro permanente do Presidente da República nessas áreas.
Os dois marechais (que a Revolução uniu e separou) tiveram, de facto, um tratamento muito diverso por parte do poder político posterior à sua passagem pela cena nacional, até no acto simbólico da sua investidura no posto máximo da hierarquia das FAs. Mário Soares recusou-se a entregar pessoal e solenemente o bastão de Marechal a Costa Gomes, à semelhança do que fizera com Spínola, o que acabou por levar a Associação 25 de Abril a oferecer-lho em cerimónia pública.
Perdeu mais o país com estes (e outros) lapsos e desatenções do que ele próprio, a quem a vida ensinou a conhecer bem os homens, e a “fazer sempre os possíveis por entendê-los, antes de julgá-los”. Era esta, afinal, a fórmula, aparentemente tão simples, do seu humanismo, o que levou Sttau Monteiro a escrever: "Se me fosse permitido dizer qual a qualidade que mais me impressionou no General Costa Gomes, diria que tinha sido o humanismo - um humanismo real e concreto, distinto do humanismo teórico e palavroso a que, infelizmente, os últimos dois anos me habituaram".(7)
Penso residir esse humanismo a chave para a compreensão desta personalidade misteriosa e enigmática. Um humanismo real e concreto, que aceita a contradição (de que são feitos os homens concretos) porque a projecta muito para além de um apertado código comportamental ditado pelas circunstâncias, inscrevendo-a numa verdadeira filosofia de vida. Por isso, não lhe chamaria "personalidade contraditória", mas antes, com mais propriedade e rigor, "personalidade paradoxal", no exacto sentido que levou Rousseau a afirmar j´aime mieux être homme à paradoxes q`homme à prejugés.
Na verdade, que maior paradoxo haverá do que este de, sendo militar, não acreditar na guerra?; e sendo, além disso, um dos mais brilhantes e prestigiados militares de sempre das nossas FAs, afirmar que "se pudesse não teria seguido a carreira das armas"?
Que maior paradoxo do que, sendo político "sem formação" como afirma, acabar por fazer uma carreira notável, conjugando de forma inédita entre nós, o realismo e pragmatismo políticos, com um projecto de sociedade mais justa e solidária, evitando o cinismo frio da Realpolitik?
E, finalmente, que maior paradoxo do que, sendo católico, acabar muitas vezes conotado com partidos e forças políticas de inspiração laica ou materialista?
É que Costa Gomes não foi um militar vulgar, não foi um político vulgar, não foi também um católico vulgar. Algo nele o impeliu a questionar constantemente o sentido e valor das regras e convenções humanas e a descobrir-lhes, talvez por ser o brilhante matemático que foi, o fundo convencional em que todas elas se inscrevem.
3. Militar pois, mas não militarista, ou, se quisermos, um dos militares mais civis das nossas Forças Armadas, sempre, desde os tempos de jovem cadete do Colégio Militar até ao macheralato, fez questão de optar por um perfil civilista, indo ao pormenor de, sintomatica e simbolicamente, restringir o uso da farda apenas às ocasiões em que tal lhe era exigido, assim rejeitando a visão de umas Forças Armadas separadas por um muro de silêncio que faz delas (juntamente com a Igreja), a mais opaca instituição dos nossos tempos.
Chamado desde muito cedo a cumprir funções de alta responsabilidade (muito para além do específico posto que ocupava na hierarquia militar) depressa acabou por se revelar a consciência crítica de um regime com o qual não se recusou a colaborar, mas cuja queda vislumbrou com a aguda lucidez dos que têm razão antes do tempo.
Aliando uma superior competência técnica a uma sábia gestão dos conflitos, sempre ultrapassou a mesquinhez do colaborador acéfalo, impondo-se como voz respeitada e temida. Daí o tratamento de excepção que lhe foi concedido em tempos em que prevalecia a máxima "quem não é por nós é contra nós". Costa Gomes soube, porém, desafiar e contrariar esse maniqueísmo provinciano com armas tão poderosas quanto singelas: lucidez, rigor, competência profissional e, sobretudo, crença inabalável na superioridade do diálogo.
Com estas armas teve, é certo, apenas vitórias morais e a sua participação na Abrilada de 1961, ou golpe Botelho Moniz, foi disso prova bastante. No entanto, ficou-lhe também a clara intuição de que a razão estava num outro tempo que ele mais tarde ajudaria a construir. Não sendo um revolucionário, como fez questão de sempre afirmar, participou nessa acção por estar convencido que ela triunfaria sem derramamento de sangue. Retirando-se quando isso se revelou impossível, não deixou, porém, de vir a público dar a conhecer a sua opinião àcerca da guerra colonial, apenas iniciada.
Em carta ao Diário Popular de 19/4/1961 ele escrevia: “O problema das províncias africanas não é um problema simples, mas um complexo de problemas, do qual o militar é uma das partes que está longe de ser a mais importante”. Foi, assim, com uma antecedência assinalável, o primeiro chefe militar a defender claramente que a solução para a guerra colonial era política e não militar. Essa carta será, aliás, citada pelos candidatos da Oposição Democrática de 1965 na sua defesa, em circunstâncias mais do que adversas, do princípio da autodeterminação para as colónias.
O seu perfil civilista, a sua cultura humanista, levava-o a considerar que a guerra era um assunto sério de mais para ser deixado só aos militares, apesar de nela ter colaborado e de, através dela, ter conquistado a mais brilhante folha de serviços das FAs Portuguesas.
Começou cedo, justamente quando em 1958 é nomeado sub-secretário de Estado do Exército, em cuja qualidade preparou e programou uma profunda remodelação das FAs, orientando-as para uma guerra subversiva e não para um conflito clássico, contrariando em absoluto o plano estratégico do Estado Maior General e a política governamental do então ministro da Guerra Santos Costa. Apesar de ficar muito longe da sua total concretização, (dos famosos 5 milhões de contos que pediu só recebeu 900 mil contos) paradoxalmente, só essa remodelação pôde permitir a Salazar a solene proclamação de “rapidamente para Angola e em força”.
E aqui reside, sem dúvida, um dos maiores mistérios do seu complexo percurso: como entender que após o fracasso da Abrilada, o ditador que não primava pela condescendência, o tenha poupado ao clássico castigo exemplar, de que era, como sabemos, fervoroso adepto, substituindo-o apenas por uma simples admoestação: dois anos em Beja, no Distrito de Recrutamento e Mobilização (funções normalmente destinadas a oficiais na reserva)?
A resposta dada pelo próprio é esclarecedora: “Julgo, de facto, que houve um tratamento de condescendência. Mas também não duvido de que foi uma atitude muito bem ponderada por Salazar. O facto de não me ter passado à reserva representou a possibilidade de eu comandar tropas em campanha, e na altura não havia muitos oficiais qualificados para essas funções. Isso obrigou-me a estar ao serviço das FAs seis anos e meio em guerra. Digamos que entre dois males, Salazar, como político experiente que era, escolheu o menor”(8).
Do seu desempenho quer como 2º Comandante da Região Militar de Moçambique, de 1965 a 67, onde passa a 1º Comandante de 1967 a 69, quer como Comandante Chefe das Forças Armadas de Angola, de 1970 a 72, já como general, mais facilmente poderão falar os militares que serviram sob as suas ordens, e dos quais destaco o testemunho insuspeito e qualificado de Fisher Lopes Pires: “ Costa Gomes foi o mais notável e brilhante chefe militar da nossa guerra colonial, o único que conseguiu suster a marcha inexorável dos acontecimentos. (…) na sua actuação militar sempre procurou nunca ir além do estritamente necessário, pois considerava que a guerra é uma brutalidade, e por isso devia ser feita da forma menos cruel possível”.(9)
Seguindo ainda as opiniões de militares que com ele fizeram a guerra, parece pacífico que, quando deixa Moçambique, o território está praticamente pacificado, com excepção de duas pequenas áreas: Cabo Delgado e Niassa. E em Angola a situação é idêntica, com excepção de uma pequena bolsa nos Dembos. Tal não significa que alguma vez considerasse ganha a guerra, pela simples razão de que o seu pensamento e acção militares se alicerçaram sempre na tese de que nunca o país ocupante ganha uma guerra de guerrilha. Era dos livros. Por isso a acção dos militares em tal contexto, era a de ganhar tempo, ou mais precisamente, preparar as condições para a negociação política. Em consequência, declara-se adepto de acções que priviligiem a captação das populações, em detrimento da guerra ofensiva. E a sua primeira acção como comandante chefe em Angola, é um ofício de meia dúzia de linhas dirigido aos três comandantes das Regiões Militar, Naval e Aérea, que determinava apenas que “A guerra devia ser conduzida do modo mais humano”.
Com a subida ao poder de Marcelo Caetano, em cujo consulado é nomeado, em 1972, Chefe do EMGFA, manifesta uma total sintonia com o seu programa ultramarino de autodeterminação progressiva e gradual para as colónias, a breve trecho abandonado, abortado ou bloqueado.
Diz-me a propósito: “Alimentei realmente a esperança de que algo iria mudar. Não a nível militar, porque os militares não estavam ainda suficientemente politizados (ao contrário do que aconteceu em 74), mas sobretudo a nível político, já que Marcelo Caetano, além de ser uma pessoa muito mais aberta, conhecia como poucos o ultramar, até pelo facto de ter sido ministro das colónias. Sempre pensei que ele iria adoptar uma política completamente diferente, dando sobretudo às grandes províncias uma significativa autonomia e uma maior importância”(10). Foi certamente a oportunidade perdida de colocar ao serviço da negociação política um relativo, transitório e bem precário sucesso militar, para o qual Costa Gomes terá contribuído decisivamente.
As referências altamente elogiosas que como cabo de guerra, brilhante estratego, recolhe dos militares envolvidos no conflito militar, deixam a enorme distâncias as críticas, mais veladas do que claramente assumidas, de alguns sectores político-militares do Estado Maior, de falta de fulgor ou distinção pessoal, indecisão, (fatalmente) enfim, do carisma de que se faz qualquer chefe militar ou político. Contudo, Delgado da Fonseca afirma: “só quem quem não conheceu o seu perfeito domínio dos factores de tempo, inimigo, terreno, e meios, ou não sabe o que isso significa para o sucesso de qualquer plano de acção, pôde considerá-lo indeciso”. E acrescenta: “nós, os militares da guerra colonial e os da madrugada de Abril, ficamos a dever-lhe o facto de termos enfrentado um guerra revolucionária com eficácia militar e até política, não nos termos afundado na lama de uma guerra suja, não termos saído em debandada, mas retirado com um mínimo de perdas humanas, e finalmente, mantido a unidade das FAs.”(11)
É bem visível que, como militar, Costa Gomes manifestava já, não só intuição política, mas um pensamento em que as duas se complementavam, embora durante a sua estadia em África as suas relações com Lisboa fossem muito ao seu estilo: discretas, profissionais, e sempre através dos canais oficiais, ou seja, dos Relatórios Trimestrais de Comando, onde com rigor matemático expunha tão sómente, na frieza dos números, a verdadeira situação no terreno.
Um episódio contado pelo major em serviço no Quartel General da Região Militar de Angola, Chito Rodrigues, ilustra bem do que falo: “ Um dia determinou-me que o acompanhasse a Lisboa, onde vinha fazer uma exposição ao Conselho de Defesa Nacional. Após a exposição verifiquei que os outros comandantes chefes haviam feito uma intervenção na televisão. Sugeri ao General Costa Gomes que também o fizesse. Respondeu-me que não o faria. Que a guerra se ganha no terreno e não na propaganda televisiva. No dia seguinte insisti. Manteve a decisão”.(12)
4. Não foi, pois, por isso também, um político vulgar, quando acontecimentos mais conhecidos do que a sua participação na guerra, o obrigaram a mudar radicalmente de cenário. Dizia que “não tinha ambições políticas, não tinha preparação política, não tinha, sobretudo, uma máquina promocional que lhe vendesse a imagem”. Por isso, ao estilo populista e teatral, de muito maior eficácia mediática, opôs um estilo interiorizado, cerebral, quase tortuoso, onde não é difícil adivinhar o desconforto do homem de gabinete, projectado para um cenário do qual mantém sempre uma perturbante distância. Ele nunca se joga por inteiro na personagem que lhe cabe representar. Ao contrário, dá a estranha sensação de ser sempre espectador de si próprio.
Ao culto pela espectacularidade da política, ele contrapõe o secreto prazer da sua reflexão, se não mesmo da sua análise laboratorial. Mais do que o uso voluntarista que dela possa fazer, interessa-lhe a demonstração quase matemática (repito) da justeza dos seus argumentos. Enquanto o homem de acção quer o poder pelo que ele representa de domínio efectivo sobre os outros, de capacidade de impôr a sua vontade, o homem de reflexão que é Costa Gomes, vê nele, sobretudo, o triunfo da razão (das suas razões) sobre a emoção, a possibilidade de pôr à prova reconhecidas características pessoais de serenidade e auto-controle, bem como os dotes de brilhante estratega militar.
O espírito de missão ou de serviço, com que encara o desafio político, não o cega, contudo, a ponto de entender a actividade política como uma espécie de prolongamento da actividade militar. O "político forçado" que ele foi, que fez política por estrito "imperativo militar", por autêntico pariotismo, não esqueceu nunca as lições em que nesse campo a nossa história é fértil. E não engrossou a corrente dos militares que, chamados à política, a encaram como o cenário aumentado do micro-cosmos militar. Cedo compreendeu o verdadeiro alcance da célebre máxima de Clausewitz, tão cara aos seus camaradas, de que "a guerra não é mais do que a continuação da política por meios violentos". Sobretudo soube completá-la com reflexões pessoais bebidas muito mais na vasta experiência do mundo, do que em qualquer manual de teoria política.
Podemos até afirmar que (novo paradoxo!) fez política como um autêntico civil; com uma diferença essencial: é que, ao contrário da maioria dos políticos, sempre pôde mover-se numa margem de independência que faz dele uma figura desconcertante, imprevisível e incómoda.
Por essa característica tão rara (sobretudo nos agitados tempos do 25 de Abril) ele será sempre um desalinhado no complexo xadrez político da nossa revolução.
Poderíamos até dizer que o bom jogador de xadrez que era, ou o judoca que, se tem de cair, nunca cai sozinho, poderiam fazer dele um exímio negociador, ou até um temível manobrador. Não se livrou também desses ataques, nesses tempos escaldantes, embora actualmente muitos daqueles que o criticaram, o julguem com muito maior benevolência, desculpando os meios pela insiscutível bondade dos fins. “Fui dos que se manifestou nas ruas de Portugal no Verão Quente de 1975 contra as hesitações de Costa Gomes, em traduzir em termos políticos os resultados eleitorais para a Assembleia Constituinte. E acho ainda hoje que fiz bem”, afirma Medeiros Ferreira, para depois concluir: “Mas como historiador que também sou, analiso como deveras meritório para Portugal o papel político arbitral do último Marechal do Exército.”(13)
Vencedores e vencidos do conflito político-ideológico que atravessou o país nesses tempos de brasa, converteram o descontentamento, a frustração e mesmo alguma revolta pelo comportamento do Marechal, em reconhecimento póstumo, pelo seu papel arbitral. E um árbitro, na política como no futebol, (actualmente muito mais no futebol, infelizmente) todos sabemos, é sempre uma figura polémica.
Mas o certo é que, na altura, ninguém como ele estava em condições, ou ninguém se prestava ao papel ingrato de ser o “desmancha prazeres”. Ele fê-lo aparentemente sem sacrifício. Pelas suas convicções, que as tinha, e que por isso o não confinavam a uma visão meramente instrumental da política, mas também por traços de carácter e temperamento, os quais se revelaram virtudes, quando noutros planos poderiam parecer defeitos. Um dos seus mais antigos colaboradores antes e depois do 25 de Abril, Ferreira da Cunha, deixa-nos este testemunho eloquente: “ Era um ouvinte muito paciente e imperturbável. Por isso se lhe confessavam personalidades e políticos de todos os quadrantes. Documentava-se nessas “confissões” mas, sobretudo, pressentia as intenções dos confessados. Isto dava-lhe um magnífico pano de fundo para tomar as decisões…mas só no tempo oportuno. (…) escutava Chefes de Estado, embaixadores, militares, empresários, políticos de todos os partidos e gente humilde. A sua intuição digeria o que lhe confessavam, e, talvez melhor, aquilo que não teriam confessado. Em consequência, opiniões individuais raramente o sensibilizavam. (…). Se tinha, não denunciava ter devoções ou amizades e isso dava-lhe uma grande liberdade de manobra, um espaço de intervenção larguíssimo, só limitado pelos seus princípios e convicções”(14)
A sua actuação no curto, mas complexo e acidentado, período em que foi Presidente da República e Chefe do Estado Maior General das FAs (o que para ele era fundamental) é sem dúvida o exemplo da mesma eficácia que demontrou em situação de guerra, agora na defesa intransigente e obstinada da paz. A mesma sábia gestão do tempo, como factor essencial para resolver, clarificar, ou pelo menos apaziguar os conflitos. Gestão do tempo que pode muito bem ter sido aprendida em Maquiavel, (o autor que todos os políticos lêem, mas nenhum confessa que lê, o autor maldito mais pela pouca qualidade dos seus seguidores, do que pela perversidade da sua doutrina), e que ensinou que há tempo de leão e tempo de raposa .
Se tivesse que ilustrar com exemplos concretos a aplicação prática que Costa Gomes fez dessa regra de ouro da política escolheria para o primeiro a sua actuação no 11 de Março, para o segundo a prolongada crise do verão quente, e talvez um terceiro em que julgo poder afirmar coexistirem os dois, leão e raposa: o 25 de Novembro.
São sabidos os acontecimentos, mas talvez valha a pena recordar: O golpe do 11 de Março foi um golpe tentado pelo general Spínola, afastado do poder em 28 de Setembro, e que provocou uma mudança substancial na correlação de forças, permitindo uma forte guinada à esquerda do processo. Na sequência do seu fracasso, o MFA reforça as suas posições e inicia-se o chamado PREC com uma política de nacionalizações, e de reforma agrária, bem como a criação de um Conselho da Revolução. Costa Gomes, presente na escaldante assembleia desse dia, apoia todas as decisões, mas deixa para o fim uma, cujo alcance, o cansaço e exaltação dos presentes talvez não permitissem avaliar: o compromisso da marcação de eleições para o dia 25 de Abril de 75. Declarou-me taxativo: “Foi para mim um ponto de honra fazer as eleições um ano depois da revolução”.
O segundo episódio (Verão Quente) tem a ver directamente com a sua desejada equidistância de duas das correntes então claramente definidas dentro do MFA: Gonçalvistas (apoiados pelo PCP) e Moderados (apoiados pelo PS) e tem por cenário a queda do quarto governo provisório e a posse do quinto, ambos chefiados por Vasco Gonçalves, que os moderados e o PS combatiam já aberta e violentamente. Os telefonemas, os recados políticos, as audiências, os telexes e os telegramas, fervilhavam na Presidência da República, exigindo a demissão do 1º ministro, as manifestações de rua eram diárias, os Nove ameaçaram com a saída do seu Documento se ele desse posse a Vasco Gonçalves e Costa Gomes, imperturbável, empossou o quinto governo, mesmo sabendo, ou justamente porque sabia, que era governo para um mês. Aqui jogou no adiamento, numa certa frouxidão, num silêncio que a todos exasperava, e que daria até a ideia de falta de carácter ou cobardia, mas que tinha virtualidades para, a prazo, resolver a situação de forma menos dolorosa.
Finalmente, no epílogo do processo revolucionário, no Thermidor da Revolução que foi o 25 de Novembro, usou com mestria os atributos da raposa e do leão, desta vez para fazer frente não a duas tendências desavindas mas a três: Gonçalvistas, Moderados e Otelistas. Há semanas que os golpes e contra-golpes eram anunciados como certos e todas as facções se vigiavam mutuamente. Havia planos que, no essencial, Costa Gomes conhecia, porque me afirmou com alguma bonomia: “Na altura não havia apenas as movimentações do grupo dos Nove, mas de vários grupos de esquerda, os quais consideravam que só uma revolução conseguiria implantar o socialismo. Lembro-me inclusivé de, numa só noite em S.Julião da Barra, ter recebido seis grupos diferentes, todos apostados em fazer a revolução. A minha mulher estava apavorada. Foi uma noite em que eu não dormi, pois saía um grupo, entrava outro…e todos queriam endireitar o país, à custa de uma revolução. Depois de intermináveis diálogos, a todos disse o mesmo: O primeiro que sair para a rua fica a saber que tem a minha oposição frontal e a de todas as tropas que me obdecerem”(15)
Os primeiros a sair foram, como sabemos, os Páraquedistas, numa acção de contornos muito complexos e ainda hoje não totalmente esclarecida. Mas para Costa Gomes esse gesto formal era o que contava, uma vez que com ele se colocavam fora da sua cadeia de comando, como CEMGFA. Nessa manhã de 25 de Novembro foi raposa, aceitando e até fomentando a discussão de quantos, militares e até civis, se juntaram em Belém, ganhando tempo que lhe parecia precioso, dadas as dificuldades que as forças revoltosas começaram a sentir: fez muitos telefonemas (dos quais os menos importante não foram certamente os que fez para Álvaro Cunhal e o que fez para Salgueiro Maia), até que lhe caiu nas mãos, por volta das dez horas, o plano dos moderados. Era, nas suas próprias palavras, um bom plano. Por isso o aceitou e assumiu por inteiro. Refere a propósito: “Foi o grupo dos Nove (incluindo a parte operacional dirigida pelo então ten-cor. Ramalho Eanes que me pediu para ser recebido, e pôr em acção um plano que tinham gizado: no caso de haver uma saída de forças que pudesse conduzir o país para uma situação próxima do partido comunista, eles actuariam.”(16)
Desempenhou sempre o seu papel de árbitro com rigor e isenção? Certamente que não. Em sucessivas intervenções políticas Costa Gomes tenta conciliar o inconciliável, insistindo na síntese entre a legitimidade revolucionária do MFA e a legitimidade eleitoral dos partidos (afinal pecado original de todo o processo, para outros via original): Afastando-se do PS em acontecimentos como o Caso República, a posse do quinto governo, a suspensão dos membros do Conselho da Revolução signatários do documento dos Nove, ou mesmo o episódio do cerco da Assembleia Constituinte, iria aproximar-se em toda a sequência de assembleias militares dominadas por uma estratégia de alegada autonomia do MFA em relação ao PCP, que culminaria na célebre assembleia de Tancos. E finalmente nas operações de contenção de um ou mais golpes no 25 de Novembro.
Num balanço já mais distanciado que estes trinta e um anos nos permitem, não será necessário repetir, como se vem fazendo com absoluta justiça que Costa Gomes conseguiu o seu objectivo essencial: evitar a guerra civil.
Disso se orgulha visivelmente, ao justificar essa sua determinação não por qualquer dogma teológico mais ou menos abstracto, mas tão simplesmente pela memória muito viva que guarda da guerra civil de Espanha e, sobretudo, do ódio fratricida que dividiu os espanhóis, levando-o a concluir ser a guerra civil o pior dos flagelos da humanidade
5. Esta obsessão pelo diálogo e pela conciliação corre o riso de se confundir com excesso de pragmatismo e mesmo de manobrismo, a outra face da ausência de convicções políticas fortes. A essas críticas, Costa Gomes respondia da forma mais desarmante: não precisava de outras fidelidades políticas ou ideológicas, não precisava de outras religiões ou igrejas, para lá das suas convicções religiosas. Católico, como sempre fez questão de se afirmar, não é também um católico vulgar. A sua abertura ao Mundo, a sua genuina curiosidade e interesse por tudo o que é humano, a sua crença inabalável no poder da cultura e da inteligência fazem dele mais um humanista do que um homem de religião, de seita, ou de igreja. Afirma-se, assim, como um católico muito progressista, por vezes. Outras como um católico muito tolerante que "faz os possíveis por entender os homens antes de os julgar", mas que também não hesita em criticar as posições mais conservadoras da Igreja, nomeadamente quando após o 25 de Abril, esta se mostra incapaz de aceitar as profundas transformações da revolução e se lança nos braços da contra-revolução e até do terrorismo.
É certamente nessa crença nos valores mais autênticos do cristianismo que se alicerça o seu humanismo, tanto mais universalista, quanto defensor do supremo valor da dignidade da pessoa humana. É aí, certamente, também, que ganha pleno sentido a sua quase obsessiva recusa em aceitar a violência como forma de resolver os conflitos, por mais graves que sejam.
6. E reservou-nos o Marechal, aquando do seu exemplar abandono da cena política nacional (saindo quando achou que a sua missão estava cumprida e não fazendo o mínimo esforço para impor a sua candidatura às primeiras eleições presidenciais, como lhe foi sugerido), um outro enigma para decifrar: a sua entrada para o Conselho Mundial da Paz, entidade considerada peça decisiva na estratégia soviética de opinião pública, em pleno confronto Leste-Oeste.
Nesse organismo integrou o Grupo de Generais para a Paz e Desarmamento, revelando-se um dos mais activos elementos desse grupo. Contava para essa nova tarefa com a vasta experiência militar adquirida em África, com profundos conhecimentos, inclusivé a nível de armamento nuclear. Assistira em 1955 à primeira experiência atómica realizada nos EUA depois da Segunda Guerra, trabalhara no Quartel General da NATO, na coordenação dos planos de utilização da energia atómica, uma área vedada à maioria dos oficiais americanos da organização. Foi, de facto, o primeiro português a estudar os efeitos de uma eventual guerra atómica, tendo sido esse o tema da sua tese no curso de Estado Maior, já em 1948. Em plena guerra fria, não hesitou em demonstrar os perigos para a Humanidade da corrida armamentista, que poderia conduzir ao holocauto nuclear, e bem assim, a irracionalidade das teorias da guerra nuclear limitada. Por outro lado foi também tão longe quanto possível na tentativa de resolução dos vários conflitos regionais: Na África Austral, apoia a luta contra o Apartheid e a solidariedade com os países da Linha da Frente, No Médio Oriente, defende a causa palestiniana, no Sodoeste Asiático critica a intervenção soviética no Afeganistão. Era, aliás, um argumento que opunha a quem lhe criticava o alinhamento desse organismo com Moscovo: “ Toda a gente estabelece uma conexão entre o Conselho Mundial para a Paz e o regime soviético, mas eu nunca tive qualquer obrigação perante o governo soviético, ou qualquer outro governo socialista. Todas as pessoas com quem falei, em especial o Presidente Bejnev, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Gromyko, e o chefe do governo, diziam concordar com um ponto por que sempre me bati: as guerras nada resolvem. Por isso mesmo lhes disse que não deviam exercer acções militares, não apenas sobre os países satélites, como a Humgria, Checoslováquia e Alemanha de Leste, mas sobre qualquer outro. Fui, aliás, o primeiro a denunciar a entrada de tropas soviéticas no Afeganistão”(17)
Nem todos terão acreditado na sinceridade desta transformação de um general cabo de guerra num marechal pacifista, apesar dos seus esforços. Num balanço final de vida, escolhia o epíteto de homem de paz, e elegia, entre as inúmeras distinções de que foi alvo, a de "Mensageiro da Paz", atribuída pelas Nações Unidas.
Não serei, naturalmente, detentora das mais fundas motivações pessoais que levaram a tal escolha. Mas, dado que nada na nossa vida é linear e transparente (nem para os outros, nem para nós próprios) ouso acrescentar aqui um outro factor que apenas em filigrana assomou ao longo das nossas conversas: a ignorância e até a hostilidade que lhe dedicou o poder político após a sua retirada. Dos muitos cargos que, com excepcional competência e brio, podia ainda desempenhar, todos foram sucessivamente descartados. Podia ter sido embaixador, mas o Presidente Ramalho Eanes não impôs com suficiente convicção o seu nome, perante a recusa do então 1º Ministro Mário Soares. Podia desempenhar altas funções na NATO, onde tinha muito boas relações quer com os seus Chefes de Estado Maior, quer ainda com muitos dos oficiais que integravam os Estados Maiores do dois quartéis da NATO : O SACOEUR e o SACLANT. São palavras suas: “Sem falsa modéstia, julgo que os meus conhecimentos podiam ter tido melhor aproveitamento, já que não havia muitos oficiais como eu, com um período tão longo no comando de tropas no terreno e na chefia do Estado Maior”(18). Podia, finalmente, ser chamado a um alto cargo na ONU, de onde aliás lhe veio o convite para Alto Comissário da ONU para a Namíbia, mas a conjuntura nacional e internacional levaram-no a recusar. Não sem antes ter ouvido de novo Ramalho Eanes, a cuja opinião se vinculou voluntariamente e não por qualquer imposição hierárquica.
7. Seria demasiada pretensão afirmar que o meu trabalho sobre o Marechal Costa Gomes (de que lhes trouxe aqui a síntese possível) cumpre totalmente o objectivo de esclarecer todas as dúvidas de uma personalidade fascinante, quer pelo que revela, quer pelo que esconde. É, contudo, minha convicção que ajudará a lançar luz sobre o percurso de um dos portugueses que mais decisiva e continuadamente influiu na vida política e militar do seu país nesta segunda metade de século.
Chamei-lhe no título que escolhi para este trabalho, Costa Gomes, o Anti-herói do 25 de Abril. Por tudo o que disse, não me parece uma limitação.
Se é verdade que todas as revoluções têm os seus heróis, não o será menos que terão, inevitavelmente, também os seus anti-heróis. Mais: uns só existem para e com os outros. A luminosa visibilidade de uns, só faz sentido por contraste com a serena e discreta obscuridade dos outros.
No caso da Revolução de Abril não é difícil enumerar não um, mas vários heróis, todos fugazes, é certo, mas intensos na sua vitalidade, na energia catalisadora de forças ignoradas do nosso imaginário colectivo: Vasco Gonçalves, Otelo Saraiva de Carvalho, Salgueiro Maia, o próprio Spínola são, obviamente, heróis.
Mais difícil será, certamente, assinalar os anti-heróis desta revolução. Porque o anti-herói não é, ao contrário do que possa pensar-se, o mau herói ou o herói falhado. É, antes, o oposto, o companheiro antitético, o outro lado da tensão dialéctica que flui e reflui em toda a realidade humana, muito particularmente nos momentos de vertiginosa mudança que são as revoluções.
Costa Gomes, não sendo um herói falhado, não é também um herói de Abril. Optando por diferentes vias e demonstrando diferentes talentos, afirma-se antes como o seu inverso, ou seja, o anti-herói. Representa, se quisermos, o princípio da realidade contra o princípio do prazer. Não desperta sentimentos excessivos de amor ou de ódio; não concita manifestações emotivas e apaixonadas; nunca usa o lexico da paixão, mas antes o rigor do código matemático; não é um tribuno inflamado que põe as multidões ao rubro, mas o analista frio que as obriga a usar a razão, mais do que o coração; não desencadeia reacções de projecção/identificação, que levem a ver nele "um amigo" como Otelo, "um companheiro" como Vasco, ou "um pai" como Spínola.
A forma como (não) explica a sua participação no 25 de Abril deixa-nos sempre perplexos e reenvia-nos para novos enigmas: “Pelo menos não os denunciei. Mais: estou plenamente convencido de que se estivesse ao lado do governo, a revolução fracassaria”.
É o exemplo do anti-herói. Que é, justamente, a maneira mais difícil, mais dura e menos compensadora de ser herói. Não ficar na história por um gesto, um grito, um discurso, mas por uma paciente e persistente gestão da palavra e do silêncio, nunca para proveito próprio, mas sempre em proveito do que pensava melhor para o seu país.
Gostaria de terminar este perfil singular de homem, de militar e de político, com uma nota muito pessoal, retirada da carta que lhe dediquei pela sua morte:
O coro de elogios que se vai erguer, e que repetirá a fatal máxima tão portuguesa de que temos para consigo uma dívida não saldada (foi assim com Salgueiro Maia… foi assim com Melo Antunes… e outros rostos de Abril que vão partindo…) vai variar (muito mais do que com esses seus camaradas…) de acordo com as opções e posicionamento dos seus autores: muitos irão salientar a sua superior competência tecnica que fez de si um dos mais brilhantes militares das nossas F.As. Outros sublinharão a sua rara intuição política, a sua sábia gestão dos conflitos e a prudente reserva com que sempre encarou o poder sem deslumbramento ou falso espírito redentor: apenas (?) com a exemplar ideia de serviço ou de imperativo cívico que norteou toda a sua vida pública; quase todos falarão, claro, do seu elevado sentido patriótico que o levou, como insistentemente afirmava, com convicção e orgulho não disfarçado a “fazer os possíveis e os impossíveis por evitar a guerra civil”. Os mais românticos, e ainda marcados pela forte carga simbólica da revolução de Abril, evocarão esse momento alto de dignidade nacional, em que estivemos todos consigo no plenário da Assembleia Geral das Nações Unidas, num dos seus mais inspirados e sentidos discursos: “Em nome do povo português saúdo fraternalmente todos os povos do mundo(….). Sou o primeiro Chefe de Estado Português que tem o privilégio de se dirigir à opinião pública mundial”.
Por mim, a imagem mais forte que me ficará de si, Senhor Marechal, é mais recente e quase banal: foi quando, durante um jantar naquele restaurante chinês de que tanto gostava (por ser pequeno e acolhedoramente discreto) me disse, não sei se em jeito de legenda de uma vida, ou de simples aditamento ao livro que fizemos juntos: “vivo os últimos dias com a consciência tranquila de que nunca me deixei comprar”.
Quantos homens como o senhor poderão dizer o mesmo?
* CENTRO DE DOCUMENTAÇÂO 25 DE ABRIL DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
NOTAS:
(1) Ferreira, José Medeiros, ENSAIO HISTÓRICO SOBRE A REVOLUÇÃO DO 25 DE ABRIL Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa,1983,p.131.
(2) Rodrigues da Silva, COSTA GOMES EM POSE, in Jornal de Letras, 16 de Dezembro de 1998.
(3) Amaral, Diogo Freitas do, O ANTIGO REGIME E A REVOLUÇÃO: MEMÓRIAS POLÍTICAS, Bertrand/Nomen, Lisboa, 1995.
(4) Monteiro, Luís de Sttau, ENTREVISTA A COSTA GOMES, in Diário de Lisboa, 26 de Julho de 1976.
(5) Vasconcelos, José Carlos de, O ANTI-HERÓI DO 25 DE ABRIl, in Visão, 2 a 8 de Agosto de 2001.
(6) Mesquita, Mário, TELE-RETRATO DO MARECHAL ENIGMÁTICO, in Público, 8 de Maio de 1992.
(7) Monteiro, Luís de Sttau, ENTREVISTA A COSTA GOMES, ibidem.
(8) Cruzeiro, Maria Manuela, COSTA GOMES, O ÚLTIMO MARECHAL, Editorial Notícias, Lisboa, 1998, p. 105.
(9) Pires, Nuno Fisher Lopes, MARECHAL COSTA GOMES, in Referencial, nº64, julho a Setembro de 2001.
(10) Cruzeiro, Maria Manuela, COSTA GOMES, O ÚLTIMO MARECHAL, ibidem p.145.
(11) Fonseca, António Dias Delgado, EM MEMÓRIA DO MARECHAL FRANCISCO DA COSTA GOMES, in Referencial, nº64, julho a Setembro de 2001.
(12) Rodrigues, Joaquim Chito, GENERAL FRANCISCO DA COSTA GOMES, COMANDANTE CHEFE, ibidem.
(13) Ferreira, José Medeiros, UM POLÍTICO POR PATRIOTISMO- UMA CORAGEM TRANQUILA, ibidem.
(14) Ferreira Cunha, UM TESTEMUNHO, ibidem.
(15) Cruzeiro, Maria Manuela, COSTA GOMES, O ÚLTIMO MARECHAL, ibidem p.326.
(16) ibidem, p.357.
(17) ibidem, p.368.
(18) ibidem , p.366.