Pior do que uma voz que cala é um silêncio que fala

 Intervenção na inauguração da Exposição de Fotografia de Paulo Bernaschina e Pedro Medeiros no Museu de Salamanca, em Novembro de 2007

Maria Manuela Cruzeiro

Se ninguém fotografou, nem escreveu o que aconteceu durante a noite, acabou com a madrugada. Não chegou a existir.

                                         Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios.
 
 “Dizem que os reis não têm memória. Parece que os povos têm muito menos ainda”, proclamava Salazar em 1930. E se houve um traço genialmente perverso na ditadura que nos dominou durante quase meio século, foi a sábia gestão do silêncio; um silêncio que Marcelo Caetano preferia chamar de “seriedade e honestidade”, em contraste com o “teatro” do congénere regime fascista italiano.
É para os vários níveis de silêncio com que ainda cobrimos o nosso passado recente que me parece remeter a exposição Voz do Silêncio- Prisões políticas portuguesas. O mote roubado à obra de Eduardo Lourenço O Fascismo Nunca Existiu parece-me denunciar com toda a eficácia essas várias camadas. É obvio o sentido irónico e provocador do título, embora quando da sua publicação em 1976, muitos, escandalizados ou triunfalistas, o tenham tomado à letra.
Impensado enquanto presente, durante os quarenta e oito anos da sua real e concreta existência, o Fascismo passou a impensável enquanto passado, para um povo com uma dificuldade proverbial em inscrever na sua história os episódios mais sombrios. 
Impensado enquanto presente, pelo silêncio imposto através de uma muito eficaz subtracção ou privação do direito à palavra, espaço público da cidadania em que os homens se reconhecem como iguais, discutem e decidem em comum, com vista a decisões que concernem a todos. Sem a palavra livre não há política. Salazar delimitou com rigor e método esse deserto da palavra que era o seu Estado Novo: “Não discutimos Deus e a virtude. Não discutimos a Pátria e a sua História. Não discutimos a Autoridade e o seu prestígio. Não discutimos a Família e a sua moral, não discutimos a glória do trabalho e o seu dever”.
Todo o discurso designa, portanto, com linear simplicidade, o que não se pode fazer, ao mesmo tempo que fica inscrito como visão ideológica obrigatória. Deus, a Pátria ou a Família, estão antes de uma opção, pertencem a uma vivência natural, onde a História, a moral e o dever são dimensões constituintes da existência, de tal forma que nem precisam de ser nomeados. Sem direito à palavra, a política passa a fenómeno marginal e dissonante, promotor de ruído, enquanto a ideologia penetra e configura todas as instâncias da sociedade, através da transformação de um corpo social anti-político num organismo  vivo. Viver Naturalmente o Fascismo foi o grande desígnio que Salazar traçou para este pais. País de costumes brandos e hábitos morigerados, país pobre, mas rico na projecção de uma imaginária grandeza. País inculto, mas protegido dos desvarios da civilização, País feliz no respeitinho, no recato e no receio, na desconfiança perante o desconhecido e o estrangeiro, na alergia surda e muda à vizinha Espanha. “Orgulhosamente só”. País em inho, no dizer do poeta Manuel Alegre, país quietinho…     
Impensável enquanto presente pelo silêncio consentido e cultivado, paradoxalmente  na vertigem discursiva que a democracia inaugurou. 
 
Como se a palavra finalmente solta preenchesse o vazio com um tagarelar ruidoso, como forma ideal de iludir muitos silêncios. Silêncios que persistem na razão directa da sua dimensão traumática. 
Regressando a Eduardo Lourenço, são conhecidas as suas teses sobre o nosso irrealismo prodigioso como povo. A forma como cerramos os olhos à realidade mais comezinha, para os abrir extasiados ao imaginário mais delirante. Daí a sua receita de uma Psicanálise Mítica para nos obrigar a encarar e a verbalizar os nossos traumas, para não sucumbirmos à compulsão da repetição, que é a forma psíquica do destino. 
Mas não só o filósofo. O sociólogo Boaventura de Sousa Santos considera que “uma das contradições estruturantes da nossa personalidade colectiva é a forma surpreendente como se casam um gosto exagerado pelo falar de si, com um autodesconhecimento que a própria fala, em vez de atenuar, potencia”
Na verdade este falar de si, disperso, fragmentário, distraído e gratuito é quase sempre a outra face de um silêncio que se quer preservar. E, finalmente, o escritor Mário de Carvalho, quase três décadas após a recuperação da palavra, inicia o seu livro Fantasia para dois Coronéis e uma Piscina, com esta sátira implacável: “Assola o país uma pulsão coloquial que põe toda a gente em estado frenético de tagarelice, numa multiplicação ansiosa de duos, trios, ensambles, coros…fervem rumorejos, conversas, vozeios, brados que abafam e escamoteiam a paciência de alguns, os vagares de muitos, e o bom senso de todos. O falatório é causa de inúmeros despautérios, frouxas produtividade e más-criações(…)Passam-se dias, meses, anos, remoem  as depressões, adejam os perigos e o país a falajar, falajar, falajar…

Então, a minha questão, e certamente a do Pedro Medeiros com quem tive o enorme prazer de colaborar, não é a de que se não fala em Portugal do Fascismo. Fala-se muito, mas desadequadamente.. Fala-se sobretudo de Salazar (que até ganhou recentemente o concurso televisivo do maior português de sempre, e que agora está no centro de uma nova polémica: a criação de uma casa-museu na sua terra natal), Mas fala-se seguindo dois impulsos igualmente redutores: o dos saudosistas que glorificam o ditador através de mistificações e apologias sem qualquer sustentação histórica. E o dos anti-salazaristas acríticos que normalmente se contentam com a diabolização do homem que consideram um chefe fascista tout-court.
Nos intervalos prospera toda uma literatura de fácil consumo e êxito garantido veiculada pelos media, que cansados das análises políticas se entretêm num voyerismo fútil: os seus amores secretos ( de misógino celibatário a irresistível sedutor), as suas pequenas grandes angústias pela enorme responsabilidade do cargo a que providencialmente foi chamado, os seus prazeres privados de camponês desenraizado na grande metrópole, o beirão capaz de fazer frente aos grandes líderes de então, o intelectual que nunca ia ao cinema e preferia os ternos serões caseiros… as suas mantas, as suas botas, as suas galinhas, as suas afilhadas… Tudo serve para uma construída e não inocente versão simpática do ditador.
Uns e outros ignoram a historiografia mais séria e credível ( que também a temos!) empenhada na explicação do que era a realidade do país sob Salazar, bem como os reais contornos da sua figura e da sua acção. Mas esta tem diminuto acolhimento nos media, não vende, e fica demasiado confinada à comunidade académica.

Mas mesmo que assim não fosse, sabemos que há níveis de compreensão que a história não pode atingir. A verdade não se reduz àquilo que pode ser verificado e explicado por qualquer sequência lógico-causal, por séries cumulativas de factos e datas, que organizam os acontecimentos, mas pouco nos dizem sobre o seu real sentido. A realidade é diferente da totalidade dos factos acontecidos. Tem a ver também com a nossa relação com o mundo e com os outros. E se sabemos quase tudo sobre as circunstâncias históricas (materiais, técnicas, burocráticas, jurídicas) que possibilitaram 48 anos de fascismo, já passado, mantemos uma paradoxal incompreensão sobre a significação ética e política dessa experiência totalitária, bem como da dimensão humana dos acontecimentos. Isto é, da sua actualidade. Do que a sua dimensão de tragédia, sobretudo nos mais dolorosos episódios da prisão, da tortura e da morte (expoente máximo do esquecimento) nos interpela e questiona hoje.
Porque o Fascismo foi uma tragédia colectiva ( e para os seus opositores mais corajosos e ousados também uma tragédia pessoal) e não foi aquilo que a classe política triunfante na democracia fez dele: “uma espécie de violência infantil que se reserva aos papões que deixaram de meter medo” , como nos  recorda, de novo Eduardo Lourenço. Por mais que custe reconhecê-lo, o medo, essa arma poderosíssima dos ditadores, sobrevive-lhes estranhamente. Não fomos a feliz mas improvável excepção. A terrível eficácia da política do silêncio e da invisibilidade não terminou com a liquidação da ditadura em 25 de Abril de 1974. Deixou sequelas como uma doença grave e prolongada, como adverte José Gil “o Fascismo foi uma doença que pôs de rastos o povo português. Doença do espírito (e dos corpos) inquinados, envenenados pelo medo, pela claustrofobia e o sufoco, enfim, por esse mal difuso, essa doença da vida, invisível e indefinível, que atacava as existências, impedindo-as de crescer e de se expandir”. 
Mas disso não falam os historiadores ou os cientistas sociais. E muito menos os media que nos reduzem a espectadores de um espectáculo contínuo, que nada tem de tragédia, nem sequer de drama. Alguém disse que “em Portugal não há drama. Tudo é intriga e trama”. Falarão, sim, os pensadores (estes que citei e muitos outros), os artistas, escritores, poetas, músicos ou fotógrafos, como o Pedro Medeiros. Por isso me parece que, apesar do inegável valor documental destas fotografias, da sua intensa referencialidade, a memória que aqui se busca não é memória passada e arquivada. É memória viva e activa, inscrição no presente de algo sedimentado por camadas de silêncio ruidoso e de ofuscante invisibilidade. Um grito contra a impunidade do tempo.

E foi talvez por levar a sério essa sugestão que, a dada altura, Sá Carneiro decidiu ir tão longe quanto possível na exploração dessa pista extra-terrestre, pedindo uma audiência privada ao amigo íntimo e director espiritual do velho Marechal, o jesuíta Cabral Abranches. Queria saber, de fonte credível, se Costa Gomes era, de facto, um católico convicto. Não consta que a resposta tenha sido muito tranquilizadora, uma vez que o jesuíta só garantiu, muito empiricamente, o que a sua própria experiência lhe permitia: que o seu velho amigo cumpria escrupulosamente os ditames da Igreja Católica. Se por dever, se de acordo com o dever, para usar a fórmula chave da moralidade kantiana, nem ele, seu confessor, o saberia nunca.