Uns pastéis inspiradores

L. A. & Cª no meio da revolução

Cap 13  UNS PASTÉIS INSPIRADORES 
 
 Desceram os três pelo Largo abaixo, descoroçoados e sem saber muito bem o que fazer. A desilusão fê-los sentir o cansaço que a excitação e o nervosismo tinham afastado. Apesar das sanduíches  terem sido engolidas à pressa, há tão pouco tempo, sentiam fome, sede e uma sensação de abandono nada agradável.
 - Como é que nos enganámos?! 
 - E agora? O que fazemos? 
 O Filipe, esse, não dizia nada. Passara de uma espécie de euforia para um desalento total. 
 - E se fôssemos ali abaixo ... comer uns pastéis naquela loja muito antiga? - lembrou a Ana, quase a medo. - Tenho fome e frio ... 
 - Talvez não seja má ideia - respondeu o Luís. - Descansávamos um bocadinho, comíamos uns pastéis e revíamos a situação. É evidente que nos enganámos ... Ainda bem que trouxemos o bloco! 
 - Mas não havia no roteiro mais nenhum largo começado por "Ga" ... - gemeu o Filipe. - Se calhar ... imaginámos uma história maluca a partir de um bloco que pertencia a um desconhecido qualquer ... 
 O Luís passou-lhe o braço à volta do pescoço. 
 - Anima-te pá! De certeza que não é nada do que estás para aí a pensar! Agora vamos comer e descansar um bocadinho. Depois até pensamos melhor! Revemos o mapa e o bloco. Vais ver que vamos descobrir o gato! 
 Entraram os três na pastelaria. Era um estabelecimento antigo, muito engraçado, com as paredes forradas a azulejos azuis e amarelos e vitrines carregadas de garrafas, cheio de mesas e cadeiras, muito sólidas e escurecidas pelo tempo. Havia um balcão, ao centro, onde várias pessoas em pé, se apinhavam, esperando qualquer coisa. 
 - Três pastéis por favor! E três meias de leite! - pediu a Ana a um empregado idoso que se inclinou para eles, já sentados a uma mesa. 
 - Os meninos preferem esperar ... ou querem da fornada anterior? Está quase a sair outra fornada e os pastéis vêm mais quentinhos! - aconselhou o homem com um ar paternal, colocando em cima da mesa dois frasquinhos com açúcar e canela. 
 - Bom, não sei ... ainda temos muito que andar hoje! 
 - Temos tempo - decidiu o Luís. - Lembra-te que ainda temos de rever aquilo ... e se calhar leva algum tempo. Nós esperamos! - disse para o empregado. - Assim, vamos descansando e pensando ... 
 - Mas, por favor, traga-nos já as meias de leite! - pediu a Ana. - Estou gelada! 
 O empregado fez um leve aceno afirmativo com a cabeça e afastou-se na direcção do balcão. Quando voltou, trazia, além das meias de leite, um prato com seis pastéis de Belém a fumegar. 
 - Tiveram sorte - disse, sorrindo. - Saíram mesmo agora! Vão ver como são bons, assim quentinhos! 
 - Mas só pedimos três - balbuciou a Ana. 
 O Luís deu-lhe um pontapé por baixo da mesa e deixou o empregado afastar-se. 
 - Temos dinheiro, não temos? Se não te apetecer, não comas! Por mim, acho que engulia uma dúzia, num abrir e fechar de olhos! - e juntando a acção à palavra, comeu um de uma só vez, sem dar tempo à irmã de o polvilhar, como aos outros, com açúcar e canela. 
 - Que grande bruto! - exclamou a Ana. - Não vez que é muito melhor saborear que devorar dessa maneira estúpida?  
 Depois dos pastéis e da meia de leite quentinha sentiram-se mais reconfortados. Até o Filipe, apesar da desilusão sofrida, comeu com apetite a sua dose.  Os pastéis eram óptimos! 
 - Não sei como vamos abrir o mapa no meio disto tudo. A mesa está cheia de coisas e não sei se temos luz suficiente para observarmos aqui o bloco! - disse o Luís.  
 De facto a loja era pouco iluminada. 
 - E isto cá dentro é uma confusão, cheio de gente ... Se fôssemos outra vez para aquele banco, onde estivemos a comer as sanduíches? - sugeriu o Filipe, um pouco mais animado. 
 A Ana estivera sempre muito calada e, enquanto comia, fixava  um ponto de um azulejo a um canto da parede,  alheia à confusão e ao barulho que reinava à sua volta. 
 - Tenho estado cá a pensar - disse, de repente, sem ouvir a sugestão do Filipe. - Se calhar, vocês vão achar-me maluca, mas cá vai:  Lembram-se daquele Largo onde estivemos há dois dias? Aquele das ruínas muito antigas com o eléctrico a entrar lá dentro? 
 - Aquele Largo que tinha um quartel e um soldado que apanhou com caquinha de pomba no nariz e mesmo assim quase não se mexeu? - lembrou o Filipe. 
 - E daí? - perguntou o Luís. - A que propósito vem isso agora? 
 - Pois é! - concluiu a Ana. - Vocês lembram-se do nome do Largo? Largo do Carmo! Chama-se Largo do Carmo! 
 - Não percebo! Que é que tem o Largo do Carmo a ver com esta história toda? 
 - Está a delirar, a minha maninha! Estas confusões todas deram-lhe volta à cabeça ... Vamos mas é ali para fora ver de novo o roteiro! 
 O Luís chamara o empregado. Pagou-lhe e ele tirou pachorrentamente as coisas de cima da mesa, para um tabuleiro redondo, de metal. Parecia interessado na conversa porque não despegava do sítio. Estaria à espera de uma gorjeta? Então ele não sabia que naquelas idades o dinheiro não abundava? 
 - Bem! Vamos embora! - concordou a Ana. 
 Saíram os três cá para fora. Estava um dia lindo e, àquela hora, a intensidade da luz era tão forte que por uns breves instantes se sentiram quase cegos. 
 - Vocês não vêem? - berrou a Ana, já impaciente. - Não vêem as coincidências entre as palavras Galvão e Carmo? 

 

 Isto é, - continuou entusiasmada - à primeira vista não há grandes semelhanças, claro. Mas lembrem-se das letras que faltavam; era um "I", que tanto podia ser uma letra inteira como um pedaço de um "L" - que foi o que nós pensamos - como um resto de um "R". O "G" de "Galvão", tanto pode ser um "G" como um "C". Lembrem-se que o bloco está cheio de marcas e risquinhos, porque está muito velho, e até lhe passou um pneu por cima. Assim - continuou - o "Gal" transforma-se em "Car". Estão-me a perceber?! 
O Luís e o Filipe olhavam para ela meio assarapantados. Quem se havia de lembrar daquilo? 
 Mas a Ana continuava o seu raciocínio, sentindo cada vez mais que aquele podia ser o caminho certo. 
 - O "V" estava meio apagado, lembram-se? Pode muito bem ser um resto de um "M" em vez de um "V". O último "A" fomos nós que inventamos a partir da consulta do mapa, lembram-se? Não o vimos no bloco, disso tenho eu a certeza! E lembrem-se que um "M" é muito mais gordo que um "V". Portanto, desaparece o espaço para o último "A". Quanto ao  "O" está bem gravado no bloco, por isso não há dúvida nenhuma em relação à ultima letra. E cá está: "Largo do Galvão", transformado em "Largo do Carmo"!! Querem ver? - e, pegando no mapa, desenhou na margem:
  G  A  I  V  O 
 
   C  A  R  M  O
 O Filipe e o Luís tiveram de fazer um certo esforço para conseguirem seguir o raciocínio da Ana. Ficaram um bom pedaço de tempo sem conseguirem articular palavra, a pensar  naquilo. 
 - Perderam os dois a voz? Não é boa a minha ideia? - perguntou Ana, já assustada com todo aquele silêncio. 
 - Não, não, pelo contrário! - respondeu o Luís. - Tenho estado a tentar perceber as modificações e também me parece que encaixam ... 
 - Podíamos confirmar ... mas falta a lente! Esqueci-me dela em casa! - gemeu o Filipe, outra vez muito nervoso. 
 - Ora! Nem precisamos de confirmar nada! Lembrei-me agora de mais outra coisa: as casas no Largo do Carmo têm muitos andares! 
 - Sim, sim, também me lembro! É um Largo pequeno, com poucas casas, muito antigas e todas bem altas! 
 - Estão a ver o nosso azar? Passámos quase ao pé, hoje de manhã! Acho que fica muito perto daquela zona em que estavam os soldados! 
 - Ih! Tinha-me esquecido daquela confusão! Parecia mais um filme que a realidade! Será que ainda lá estão todos? 
 - Se calhar desvaneceram-se no ar, como nos sonhos! - riu-se o Luís. - Pode ser que já se tenham ido embora, mas que estavam lá, estavam de certeza! 
 - A chatice maior vai ser fazer outra vez o caminho todo, agora ao contrário ... Ainda temos dinheiro para os bilhetes? Gastámos muito na confeitaria? 
 - Esta estava tão concentrada a transformar letras que nem deu conta de mais nada - continuou o Luís. - Gastámos ... uma fortuna! Mas parece que valeu a pena: foram uns pastéis muito inspiradores! 
 - E se fosses gozar a tua avó gorda? Tens é inveja de não teres sido tu a descobrir tudo! 
 - Olha a convencida! Ainda estamos para ver se descobriste alguma coisa! 
 - Por amor de Deus, calem-se! - berrou o Filipe. - Vamos mas é apanhar o eléctrico. Senão têm de me ir levar ao hospital dos malucos. Sinto que vou perder o juízo a todo o momento! 
 Apearam-se do eléctrico no mesmo sítio onde o tinham apanhado de manhã, e perguntaram a uma senhora que passava o caminho para o Largo do Carmo. A senhora foi muito simpática, explicou tudo com todo o cuidado, mas olhou-os com uma cara esquisita. 
 - Vocês andam aqui sozinhos, os três? 
 "Mau", pensou o Luís, "A mesma história de hoje de manhã, no comboio. Será que se nota na nossa cara que nos metemos numa grande alhada?". 
 - Tenham muito cuidado por onde forem; não vão pela rua do Alecrim; está cheia de tropa! E está o trânsito todo engarrafado ... e há tanques e jipes carregados de soldados! Mas o que é que vocês vão fazer ao Carmo, afinal? 
 - É que ... combinamos encontrar-nos com uns amigos nossos - mentiu a Ana. 
 - Mas que sítio que vocês arranjaram para se encontrarem com os vossos amigos! Hoje a Baixa não dá para se passear, meus filhos! Não ouviram no rádio? E os vossos pais? Deixaram-vos sair assim? 
 E a senhora afastou-se, a abanar a cabeça, deixando os três perplexos.

Capítulo anterior   Índice    Capítulo seguinte