Uma prisão original

L. A. & Cª no meio da revolução

Cap 16  UMA PRISÃO ORIGINAL 
 
 - Nuno! Nuno! - chamou, num sopro, o Filipe. 
 O Nuno olhou para todos os lados mas não via ninguém. O barulho que os dois faziam no forro era abafado pelo estardalhaço da rua. 
 Filipe, com medo que os ladrões ouvissem, não se atrevia a levantar a voz. 
 - Nuno! Nuno! Cá em cima! 
 O Nuno esbugalhou os olhos para cima e deu com as caras enfarruscadas do irmão e do Luís, a espreitar por uma frincha aberta no tecto. 
 - Como é que ... chegaram aí? - balbuciou baixinho, estupefacto. 
 - Depois contamos! Agora, vamos descer! 
 O Luís, com todo o cuidado, segurou o amigo por um braço e ajudou-o a descer sem barulho. Num ápice, Filipe cortou com o canivete as cordas que prendiam o irmão. 
 - Cá vou eu! - sussurrou o Luís, descendo  a seguir. 
 Estavam os três num quarto espaçoso, mas quase sem móveis. Uma mesa coberta de uma mistura confusa de coisas, algumas tábuas encostadas à parede e duas cadeiras constituíam todo o mobiliário. Pelas janelas, apesar de fechadas, entrava a barulheira da rua. 
 - E agora? Eles estão cá os dois! E estão nervosíssimos ... Sempre a andarem de um lado para o outro, sempre aos berros ... Se entram de repente, que fazemos? - sussurrou o Nuno, esfregando os pulsos, magoados pelo esforço que fizera. 
 - Já te digo o que fazemos! - e à guisa de resposta, o Luís pegou numa das tábuas que estavam encostadas à parede, e escondeu-se atrás da porta. 
 Nem de encomenda! Mal o Luís acabou de se esconder, a porta abriu-se e o gordo, o mesmo gordo que tinha metido o Nuno na mala do carro, entrou com um ar muito mal humorado. Mas não teve tempo de se refazer do espanto! Pum! Com toda a força o Luís deu-lhe uma tal pranchada na cabeça que, num segundo, estendeu-o ao comprido.  
 - Deus meu! - disse muito nervoso, olhando a sua obra. - Espero não lhe ter batido com força demais! 
 - Bem o merece! - respondeu o Nuno. - Fartou-se de me dar pontapés e murros! O grande cobarde! 
 - Vamos mas é fugir! Se o outro nos apanha estamos fritos! 
 - E os papéis? Não nos podemos esquecer das pastas! - lembrou o Filipe. 
 Mas não tiveram tempo para mais nada. À entrada da porta, assomava, naquele momento, o falso "tio" dos gémeos que, à luz do dia, não se parecia nada, mesmo nada, com o verdadeiro. 
 O Luís, que ainda não tinha tido tempo de largar a tábua, deu um salto para trás, na direcção da porta. Mas o homem nem o viu! Em vez de um Nuno, manietado e no chão, viu dois Nunos, em pé, exactamente iguais e sem cordas. E, ao lado, estendido ao comprido, o seu comparsa!  
 Teve uma reacção inesperada! Deu meia volta, enfiou pelo corredor até à porta da casa e desceu as escadas quatro a quatro!
 Os três ficaram aparvalhados a olhar uns para os outros. 
 - E os papéis? Vamos procurá-los depressa enquanto este não acorda! - disse o Filipe. - E não nos podemos esquecer que são duas pastas ... 
 - Ora ... este só acorda se a gente quiser! - respondeu o Luís, repetindo no ar o gesto de há pouco. 
 - E o outro? Deve estar encurralado ao fundo das escadas! Isto é, se o blindado continuar a atravancar a porta! 
 - O quê?! - espantou-se o Nuno. - Mas afinal o que é que se está a passar na rua?! O que é este barulho todo?! 
 - Depois contamos-te ... agora não há tempo! 
 - Talvez tenha chegado a hora de telefonarmos à polícia! E se o patife não conseguiu sair e ainda volta para cima?! 
 - Vão ver o que se passa! - disse o Luís. - Eu fico aqui a tomar conta deste para o que der e vier. 
 Depois de uns segundos de hesitação, os gémeos correram para as janelas. 
 - Tenho uma coisa para te dizer que ainda não disse a ninguém! - sussurrou o Filipe para o irmão. - Estão a fazer uma Revolução para nos dar a Liberdade! Sabes o que isto quer dizer? Sabes o que isto quer dizer? - e quase chorava. 
 O Nuno, por sua vez, olhava para ele com um ar aparvalhado. 

 

- Não sabes? Não te lembras? A mãe ... a mãe dizia que ... o pai ...  
 - O pai ... o pai ... - repetia maquinalmente o Nuno, como se estivesse a sonhar. 
 - O pai vai poder voltar, agora! Já temos a Liberdade que a mãe dizia ... para o pai voltar! Anda ver! - e o Filipe puxou o irmão pelo braço, em direcção à janela. 
Entretanto o blindado movera-se para o meio do Largo e os gémeos puderam ver o vulto do bandido, tentando escapulir-se, o mais rápido que podia, pelo meio das pessoas. Mas, só o simples facto de correr pelo Largo fora, tentando abrir caminho à bruta, tornou-o logo alvo de suspeitas! E, de repente, os gémeos começaram a ouvir vozes que gritavam: "Agarrem que é da Pide!", "Agarrem que é da Pide!" 
 - O que é que aquilo quer dizer?! 
 - Não faço ideia, mas parece que tem um efeito mágico! Olha como correm atrás dele! 
 Passados poucos segundos já o homem estava imobilizado, no meio de uma pequena multidão. 
 O Capitão assomara a uma das janelas do Quartel, observara a cena e gritou pelo megafone: "Não se esqueçam que não se deve atentar contra a liberdade de cada um sem que primeiro seja julgado!" 
 - Olha, olha! Os soldados foram busca-lo! 
 Com efeito, três soldados tinham-se aproximado do grupo que o segurava e, tinham-no enfiado no interior de um blindado, o mesmo que antes bloqueava a porta de entrada. 
 - Ainda bem que o prenderam lá dentro! - disse o Nuno, sentindo um certo alívio. - Apesar de só ter razões para o detestar, cheguei a ter medo do que lhe pudesse acontecer ... 
 - É verdade ... Parecia que o queriam desfazer em pedacinhos! - respondeu o Filipe. - Livra! Não queria cair nas mãos de uma multidão assim furiosa! 
 - É essa história da Pide, de certeza ... - concluiu o outro, pensativo. 
 - Bom, este, para já, está arrumado ... Meu Deus! - lembrou de repente o Filipe. - E a Ana?  Esquecemo-nos da Ana! 
 - A Ana?  Ela está com vocês?!  Onde? 
 -  Deve ter ficado no telhado ... com os soldados! 
 O Nuno nem se espantou com a nova surpresa. Era só mais uma! A Ana, em cima do telhado, acompanhada de soldados! Esfregou os olhos para ter a certeza que estava acordado. Mas estava mesmo acordadíssimo! 
 - Vamos depressa buscá-la! - disseram os dois, antegozando a perspectiva de voltarem a subir ao telhado. 
 Mas ambos tiveram uma desilusão! Ana roubou-lhes o pretexto. Radiante, já assomava ao alçapão e descia, desta vez ajudada por um soldado que, depois, fez um gesto esquisito, em forma de "V", utilizando dois dedos. 
 - Estes são os meus heróis! - disse, pregando um grande beijo nos dois gémeos. - E este está a ser o melhor dia da minha vida! 
 - Pois é, mas ainda temos o gordo ali, estendido no chão! 
 - E ainda não procurámos as pastas com os malditos papéis! 
 - Eu sei onde estão! Estão em cima da mesa, no meio de uma grande barafunda! - anunciou o Nuno, triunfante. 
 O Luís continuava de tábua na mão e o homem estendido no chão tinha agora as mãos e os pés amarrados com a mesma corda que lhe servira para atar o Nuno. 
 - Assim estou mais descansado - disse à laia de justificação. - E olhem: Encontrei as duas pastas! -  o Luís tinha os olhos muito brilhantes. - Nem precisei de procurar! Estavam ali, no meio de uma grande tralha! Espero que esteja tudo direitinho! 
 - Tem de estar! - disse o Nuno. - Eu estive sempre aqui dentro e não consegui pregar olho durante toda a noite. Eles quase nem tocaram na mesa ... A pasta que roubaram ao vosso pai já cá estava, de certeza. Pousaram aí a outra quando chegamos e nunca mais quiseram saber dela! A única coisa que eles queriam era telefonar ... 
 - Para a América, com certeza ... - lembrou a Ana. 
 - Acho que sim, só que não conseguiam. O telefone está noutro quarto mas eu ouvia-os muito bem ... Passaram a noite e o dia todo, até agora, a tentar. Mas deve ter havido uma grande avaria nos telefones ... Estavam desesperados! O mais alto berrava com o gordo ... Passaram o tempo todo a andar de um lado para o outro. Pareciam ursos enjaulados! Quando estava mais furioso, o gordo dava-me pontapés e ameaçava-me ... Dizia que me ia levar para os Estados Unidos para me vender! 
 - Não deixava de ser uma boa ideia! Ficava só um para me amolar o juízo! - brincou a Ana. 
 - Já cá faltava a espertinha com a mania que é engraçada! Grande medricas!  
 - Mas afinal, o que aconteceu ao que fugiu? - quis saber o Luís. 
 - Pois é, ainda não te contámos ... 
 - Nem imaginas! O tipo a tentar fugir no meio da confusão! E toda a gente a correr atrás dele, aos berros de: "Agarrem que é da Pide"! 
 - Foi apanhado em segundos! Está dentro de um blindado ... 
 - É verdade! O que é que quer dizer Pide? 
 - A Pide é a polícia política - explicou o Luís. - Prendem as pessoas que não são por este governo ... O pai até tinha um conhecido que estava na cadeia por causa disso,  por causa da política ... 
 - Agora percebo! Se calhar também querem acabar com essa tal polícia política ... 
 - Sim, e daí que desatasse tudo a correr atrás dele ... e os soldados irem-no buscar para o prender no blindado! Agora bate tudo certo!

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