Coleções - Legislação - Costa Gomes na abertura da Assembleia Constituinte (2/6/75)

COSTA GOMES NA ABERTURA DA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE

(2/6/75)


As dinâmicas revolucionárias avançam na resultante de miríades de actos espontâneos ou condicionados, individuais ou colectivos, mas que protejam os povos para fora do enquadramento das leis e normas sociais que os espartilham em situações políticas anteriores.
Revoluções são processos em que os povos, depois de romperem um metabolismo social tornado intolerável, entram em marcha, mais ou menos acelerada, até atingirem um novo patamar de equilíbrio social, historicamente transitório.
Nos patamares do equilíbrio social dos povos, compete aos legisladores prepararem legislação avançada, serem clarividentes, para que o enquadramento político permita crescente dimensão à dignidade humana, e não crie as tensões sociais que conduzem às revoluções, fenómenos cujo saldo é sempre aleatório.
Nos períodos revolucionários, quem legisla encontra-se em situação ainda mais complexa. Terá de reconhecer uma ou mais fases agudas, em que o processo revolucionário se projecta com aceleração tal que, muitas vezes, uma lei, no momento em que se publica, é apenas a baliza de um trajecto ultrapassado.
O amadurecimento do fenómeno revolucionário cria fases de menor aceleração, em que os legisladores poderão já prever e implantar marcos legais, suficientemente avançados, que não sejam balizas do passado, mas pontos firmes de apoio, em que o processo revolucionário sente a segurança e o equilíbrio a que o ser humano aspira.
Retenhamos daqui a necessidade de promulgar marcos legais com seguro avanço.
Outra característica da vivência em clima revolucionário é uma constante flutuação no rumo do processo, o qual é a integração de vontades individuais, de fenómenos de massa, das correntes políticas empenhadas, das acções e reacções mais inesperadas.
Cada ponto de um processo revolucionário é o momento histórico da síntese convulsional entre a situação que se ultrapassa e um somatório dos anseios vitais das forças revolucionárias em luta.
Em revolução, na génese de uma lei avançada, interessa eliminar o risco de ver a dinâmica do processo torná-la inútil por passagem flanqueante.
Teremos assim de registar a necessidade de estudo prospectivo e inspiração para o posicionamento adequado da legislação com indispensável avanço.
Consideremos ainda os aspectos qualificativos das revoluções. São fenómenos benéficos quando conduzem a sínteses sociais onde o homem seja mais livre e mais feliz, onde a sociedade seja mais próspera e mais justa.
Se considerarmos que o processo revolucionário vai sempre sofrendo a influência da legislação, digerindo-a quando a ultrapassa ou respeitando-a quando a aceita, haveremos de registar influências benéficas ou maléficas, activas ou reactivas daqueles que formulam os diplomas.
Em visão sinóptica, poderemos concluir que o legislador revolucionário só garante a eficácia histórica da sua acção criando legislação avançada, bem adequada ao curso futuro do processo revolucionário, com conteúdo qualitativo que contribua para a felicidade e dignidade humana da sociedade a que se destina.
Na situação dinâmica de um povo em revolução a extrema sensibilidade do corpo social dramatiza os efeitos imediatos da legislação criada.
Um diploma pode actuar como passageiro analgésico, como excitante explosivo, como medicamento equilibrador ou como tóxico reaccionário.
Esta hipersensibilidade social tem efeito multiplicador nas responsabilidades de quem legisla, em período revolucionário por mais simples que seja a matéria em causa.
Vejamos agora o caso especial de redigir uma constituição.
A lei fundamental de um país, quando adequada, é certamente a mais importante obra que se pode realizar para um povo.
Nenhuma outra é susceptível de tanta influência nos destinos de uma sociedade;
Uma constituição que se respeite pode retrogradar ou fazer avançar decénios a marcha ascensional do povo a que se destine.
No caso específico da constituição portuguesa, a preparar por esta ilustre assembleia, introduziu-se um elemento original, o «acordo M. P. A. - partidos».
Muito se tem dito e escrito sobre a existência deste acordo prévio, o qual se tornou imprescindível por duas razões essenciais:
Primeiro porque ao redigir a constituição se correria o referido risco de fazer retrogradar decénios o impulso socializante em que avança a nossa sociedade; nem as classes desfavorecidas, nem o M. F. A., nem os partidos interessados nesse avanço estariam dispostos a correr tal risco.
A segunda razão poderá também pesar a especialistas de direito constitucional mas é politicamente transparente.
Queremos que a nossa revolução progrida para um socialismo pluripartidário, em simbiose fecunda entre as vias revolucionária e eleitoral.
Pois as condições pactuais são o contributo revolucionário para a nova constituição; assim se obteve o efeito tranquilizador que permitiu que fossem às urnas muitos votantes que doutra forma considerariam prematuras as eleições; assim provou o M. P. A. e os partidos subscritores do pacto a sua capacidade de serem garantes do avanço contínuo para o socialismo original que desejam as classes mais sacrificadas do povo português.
Este acordo constitucional é pois um esquema de segurança e um contributo revolucionário, um fecundo padrão que marca a originalidade da revolução socialista portuguesa.
Senhores deputados, nós e o futuro, a revolução e a história julgaremos impiedosamente a vossa capacidade de construir a obra grandiosa e difícil dum esquema constitucional capaz de gerir o período transitório desta revolução original em marcha rápida para o socialismo.
Se a existência do acordo M. F. A. - partidos vos fornece uma base inicial indiscutível, a necessidade de sintonia estrutural com essa base torna mais complexo o esforço gigantesco de legislar simultaneamente com imaginação e senso, flexibilidade e solidez, ousadia e prudência.
É tarefa para génios gizar uma constituição revolucionária, tão avançada que não seja ultrapassada, tão adequada que não seja flanqueada, tão inspirada que seja redentora, tão justa que seja digna dos trabalhadores de Portugal.
Senhores deputados:
Em nome dos mais humildes, das classes mais desfavorecidas, que desejam na luta do trabalho diário o avanço da nossa Revolução, vos peço que minimizeis os vossos interesses partidários, subordinando-os à consciência afinada pelos interesses maiores da Pátria e do povo de Portugal.
Esperamos de vós uma constituição com conceitos tão sólidos que garantam a estabilidade governamental do período transitório que pautará, mas que tais conceitos sejam tão amplos que não limitem o progressismo revolucionário do povo e das suas Forças Armadas.
Que no pluralismo das vossas opiniões saibais encontrar rapidamente as fórmulas superiores que garantam a unidade e a reconstrução nacional.
A partir de hoje, milhões de portugueses seguirão ansiosos mas cheios de esperança o labor desta Assembleia.