PINHEIRO DE AZEVEDO NA TELEVISÃO
(13/10/75)
A delicada situação que o País atravessa exige que a ele me dirija.
Faço-o, de resto, fiel à regra que me impus, de uma política aberta e participativa. O VI Governo não fará demagogia nem iludirá o povo. E silenciar sobre os problemas nacionais seria uma forma de tentar enganá-lo.
Temos vivido, desde o 25 de Abril de 1974, em justificado ritmo de exaltação revolucionária. Na sequência de generosos impulsos temo-nos, por vezes, deixado cair na tentação de sacrificar o essencial ao secundário, o definitivo ao provisório, o futuro ao imediato.
Uma Revolução consciente nunca pode ser um êxito em termos de presente. Não se muda a face político-social de um País sem sacrifícios e renúncias. E no entanto, quantas injustiças sociais não corrigimos já?
Bastará que nos lembremos do fim das guerras coloniais e da própria situação colonial de que eram já precaríssimos suporte, com a sequela fatal dos apocalipses que conseguimos evitar a tempo. E bem precisamos de lembrar-nos de tudo isso para aceitarmos sem revolta alguns aspectos inevitavelmente negativos da descolonização.
Bastará que nos demos conta da liberdade de que gozamos e da dignidade que nos reoutorgamos. É-nos necessário isso para que aceitemos como o baixo preço de um bem inestimável as consequências do uso imoderado de algumas liberdades.
Não tanto pelo que conseguimos, mas pelo que evitamos e possibilitamos, podemos ter orgulho na nossa Revolução. Agora podemos ter esperança.
Mas é talvez chegado um momento de espera para balanço e aferição de resultados.
Aceitei a chefia do VI Governo com plena consciência de que se jogava no mandato recebido a última esperança de um Governo enquadrado nas estruturas constitucionais vigentes.
Sabia que me aguardavam dificuldades. Dificuldades emergentes de uma conjuntura internacional de crise, do legado político-social do regime fascista, e também de alguns erros cometidos no decurso do próprio processo revolucionário. Sabia, no entanto, que contava com uma ampla base de apoio. Não só a que suporta os partidos representados no Governo, mas das massas trabalhadoras que têm acompanhado com ansiedade a erosão de algumas regras de convivência tradicionalmente imunes a toda e qualquer revolução.
Entre elas a autoridade do aparelho de Estado e a disciplina funcional e cívica. Autoridade e disciplina que podem e devem ser, em si mesmas, revolucionárias. Mas que não podem, sob pena de se negarem, deixar de assegurar o exercício normal dos poderes do Estado.
Autoridade e disciplina que não devem nem podem ser puramente repressivas.
A verdadeira e única autoridade é a que é espontaneamente outorgada pelo povo a quem o governa; como a verdadeira disciplina é a que decorre da confiança mútua entre governantes e governados.
Mal o VI Governo - antes mesmo de ter podido dar ao País uma imagem actuante de si próprio - acentuou a necessidade, que tenho por irrecusável, de um poder efectivo, se bem que controlado pela mais ampla liberdade de crítica, logo vozes cépticas deram em imputar-lhe propensões direitistas. O resto fê-lo o verbalismo pseudo-revolucionário de certa Informação.
Viria depois um conjunto de acções que, na prática, dificultaram a acção do Governo. Destaco a destruição da Embaixada e Consulado de Espanha, a luta, basicamente justa, dos deficientes das Forças Armadas, que levou â ocupação da Emissora Nacional e à tentativa de sequestro do próprio Governo, o assalto à Emissora Oficial do Funchal e o desencadear de certas lutas reivindicativas que ameaçam afectar o próprio funcionalismo público, para não aludir senão aos factos mais salientes, contingências que, somadas à inflação crescente de manifestações políticas não podem deixar de roubar aos portugueses a necessária serenidade de espírito.
Todos estes acontecimentos podem contribuir objectivamente para a queda do VI Governo antes mesmo de ter podido começar a governar.
Mais grave é, porém, a campanha de indisciplina e descrédito militar recentemente surgida, que poderia conduzir - este ou qualquer outro Governo - a uma situação insustentável, na medida em que um Exército disciplinado e coeso é condição essencial para se poder governar.
Sem Forças Armadas não há autoridade, e sem autoridade não há Governo.
Urge, portanto, forjar uma autêntica disciplina revolucionária, nascida do próprio processo, livremente aceite e consentida, que leve rapidamente à união das forças Armadas, sem a qual não é possível garantir a continuidade do processo.
Ao povo caberá ajuizar sobre quem o ama e quem o despreza, quem o defende e quem o ataca, quem o respeita e quem apenas lhe gasta o nome. Estou tranquilo. Quando se acusa de reaccionário o VI Governo, o povo sabe que, em política, o que conta não são os adjectivos mas os resultados.
Pelos governantes de que tenho a honra de ser o Primeiro-Ministro responderá a sua prática política. Seria descabido defendê-los de um qualificativo lançado à toa.
De qualquer modo, a situação está clarificada: o VI Governo, com o aval, recentemente reafirmado, do Conselho da Revolução, sabe os inimigos que tem e os apoios com que conta. Não confunde o País com Lisboa, como não confunde um facto com o seu empolado eco.
Sabe, enfim, que o povo, aquele que vale, também não embarca nessa confusão.
Nada predisposto à limitação das liberdades tão a custo reconquistadas, deixará que a condenação dos erros dos que as usam, mas no fundo as desprezam, seja um firme e crescente repúdio popular. Só essa condenação é definitiva e salutar.
A cada um a sua opção e a correspondente responsabilidade. As tentativas do seu derrube, o VI Governo responderá governando.
O VI Governo continuará a defender a Revolução e o seu programa socialista, tanto contra os ataques que a reacção lança pela direita como aqueles que a reacção desfere pela esquerda.
Fascismo outra vez, não.
Prometi ao País um ponto da situação à partida do VI Governo.
Reconheço agora que não há poder de síntese que faça caber numa simples comunicação televisionada - que não deve ser enfadonha - uma pálida ideia do volume e da gravidade dos problemas com que o Governo se debate. Limitar-me-ei, por isso, a aflorar os aspectos mais salientes.
Seria descabida a preocupação de dramatizar a situação herdada e muito menos a de enjeitar a responsabilidade que, por actos ou omissões posteriores ao 25 de Abril, alguns de nós retirámos dela. Não me refiro aqui, é evidente, à cruel herança recebida do fascismo, que está na origem de todos os males.
Por outro lado, é necessário que o povo conheça a verdade toda, para que possa, ele também, ao assumir as responsabilidades que lhe caibam, contribuir com os sacrifícios e renúncias que se impõem para a solução de problemas que são de todos e só colectivamente podem ser resolvidos.
É aqui que assume relevo a necessidade de os trabalhadores reverem alguns aspectos da sua atitude em face do futuro do País.
A lição colhida até agora é a de que uma certa euforia reivindicativa e um relativo afrouxamento do esforço produtivo, desatentos, quer às possibilidades quer às necessidades do aparelho económico, são, em certa medida, responsáveis pelas dificuldades económicas e financeiras que se nos deparam. E digo isto com o maior à-vontade, porque sei, e os trabalhadores não desconhecem, que estar ao lado dos que trabalham não ê apoiar posições irrealistas que conduzem, em linha recta, ao caos e ao fascismo, mas criar condições reais para que Portugal não seja de uns poucos, de dentro ou fora, mas de todos os portugueses.
Até agora temo-nos, talvez, empenhado mais em denunciar as culpas alheias - que são muitas - do que em reconhecer as próprias. E a verdade é que, apesar de termos sido vítimas de mal disfarçados bloqueamentos, de mais ou menos patentes sabotagens, sobretudo de formas de resistência passiva de alta potência corrosiva, em grande medida estamos sendo vítimas da nossa própria ingenuidade, do nosso próprio egoísmo, da nossa pouca consciência do esforço colectivo e dirigido que nos exige a edificação, ao menos para os nossos filhos e para os filhos dos nossos filhos, digo para sempre, de uma sociedade autenticamente socialista.
Nenhum Governo pode ser revolucionário se o não for o Povo por ele governado. O sucesso de qualquer revolução passa pelo trabalho. Nessa medida, só quem trabalha pode ser revolucionário. Inversamente, todo aquele que não trabalha é, digamo-lo sem receio, contra--revolucionário.
As contas públicas saldar-se-ão, no exercício corrente, com um défice previsional que ultrapassará os trinta milhões de contos, contra o défice de 11,2 milhões de contos em 1974.
Aquele resultado duplicará o défice admitido pelo próprio orçamento (de 15,7 milhões de contos) em si justificado pelo incremento das empresas de investimento, orçamentadas em 12 milhões de contos.
Existem algumas boas razões para que o Estado suporte, este ano, um défice superior ao de períodos anteriores.
Desde logo o elevado défice da balança de pagamentos - cerca de 32 milhões de contos. O Estado e as empresas, vendo como viram, diminuídos os seus lucros, teriam de ser afectados com destaque para o primeiro, num ano em que se distribuiu mais rendimento à população trabalhadora, tanto quanto possível sem comprometer as condições financeiras da actividade administrativa.
Também a necessidade de manter o nível da actividade económica, estabilizando o emprego e compensando a quebra do investimento privado com o aumento do investimento público, a quase duplicação das despesas extraordinárias: 15,2 milhões de contos contra 7,6 milhões em 1974.
Infelizmente o défice acrescido que se prevê não corresponde a despesas de investimento - hipótese em que seria salutar - que serão, inclusivamente, inferiores às inicialmente previstas.
Os Governos anteriores foram cedendo a variadas pressões para aumentarem as despesas correntes, quer autorizando sucessivos créditos especiais, quer deixando crescer a dívida flutuante junto do Banco de Portugal através de operações de tesouraria à margem de execução orçamental.
Do lado das receitas merece destaque uma quebra significativa da contribuição industrial, em resultado da crise que a maioria das empresas atravessa, sendo de prever, para 1976, uma acentuação dessa quebra. O peso dos impostos indirectos tenderá, assim, a crescer no nosso sistema tributário, com toda a margem de injustiça social que esse facto representa, visto que, como se sabe, os impostos indirectos atingem indiscriminadamente os cidadãos pela via dos preços. Não nos resta, sequer, o recurso ao esforço das taxas dos impostos directos sobre os rendimentos pessoais - já fortemente aumentadas até ao limite do desestímulo do investimento privado - sendo que a punção nos altos rendimentos das classes possidentes foi feita através das nacionalizações.
A cobertura do elevado «déficit» orçamental terá, assim, de ser assegurada por meio de empréstimos - internos, se possível, externos sempre que necessário - e Junto do Banco de Portugal, através da criação de moeda.
Esta solução, perigosamente fácil, tem, como se sabe, consequência fatal no agravamento da inflação, com todo o cortejo de injustiças que traz associadas.
A este panorama, de si pouco animador, há que adicionar a situação dos fundos e serviços autónomos, das autarquias locais e da Previdência.
Levar-nos-ia longe uma análise detalhada dessa situação. Bastará que se refira que, só o Fundo de Abastecimento fechará este ano com um «déficit» de cerca de três milhões de contos, o que elevará para cerca de dez milhões o seu «déficit» acumulado.
Para aquele resultado contribui decisivamente a política de subsídios aos preços de artigos de consumo, que custará ao País cerca de 2,6 milhões de contos. Se àquele «déficit» acrescentarmos o débito ao fundo, dos organismos de coordenação económica, da ordem dos 9,2 milhões de contos, teremos a imagem da situação a que conduziu a política de preços fictícios que vimos praticando em relação à maior parte dos produtos básicos.
Para dar um só exemplo, o Estado suporta quase 30 escudos do preço de cada quilo de carne.
Não desconheço que esta política visou a contenção do processo inflacionista. Mas é bom que nos não iludamos. Se, para praticarmos essa política, temos, como acabamos de ver, de pôr a trabalhar as rotativas do Banco de Portugal, tiramos à inflação com uma mão o que lhe devolvemos com outra.
Preocupante é também a situação das empresas públicas e nacionalizadas, bem como a daquelas em que o Estado interveio ao abrigo do decreto-lei n.° 660/74. Números exactos serão em breve fornecidos ao País. De momento bastará que se realce que quase todas apresentarão, neste ano, consideráveis prejuízos, de vários milhões de contos, que terão de ser cobertos por financiamento das instituições de crédito, ou seja, uma vez mais pelo Estado, visto que estas recorrerão, por simpatia, ao Banco de Portugal, e este à emissão da moeda. Até porque, dada a natural relutância das instituições de crédito em concederem crédito a empresas de duvidosa capacidade de pagamento, o Estado tem vindo a conceder avales em garantia desse pagamento. A um conjunto de 54 empresas o Estado concedeu já avales no montante global de 10,6 milhões de contos para crédito interno e de 4,7 milhões para crédito externo. Muitos desses avales serão, necessariamente, convertidos em pagamento efectivo, uma vez mais pelo Estado, dos montantes avalizados.
Trata-se de uma situação em absoluto insustentável. As empresas públicas e nacionalizadas - hoje cerca de 1200 - incluem praticamente as grandes empresas do País, e nelas terá, necessariamente, de se formar uma parte significativa do excedente indispensável ao financiamento do investimento público e das despesas públicas através dos impostos.
Em termos de balança de pagamentos, o «déficit» foi de 00 milhões de contos em 1974 e duplicará sensivelmente em 1975, atingindo cerca de 10 por cento do produto nacional. Esta situação deriva de razões estruturais não superáveis a curto prazo (é o caso da nossa dependência do exterior em produtos agrícolas), por razões de conjuntura internacional, onde à recessão económica se junta um acentuado aumento de preços e ainda das condições de instabilidade interna em que temos vivido. Some-se a tudo isto a consabida margem de hostilidade de alguns países de que somos clientes tradicionais, aquilo que sem razão consideram um excessivo enfeudamento do novo regime português a países e regimes a que são hostis.
É aqui que ganha relevo o grau da nossa dependência económica em relação aos países capitalistas, na medida em que sofremos os reflexos das oscilações económicas e posicionais que, em geral ou em relação a nós, nesses países se verificam.
Razão têm os que apelam para o reforço e a defesa da independência nacional. Mas não é com solenes afirmações de princípios nem com salutares indignações que o problema se resolve.
A balança comercial tem-se caracterizado, por seu turno, por um desequilíbrio crónico. Em 1974 registou, no entanto, o seu saldo mais elevado de sempre - 51,5 milhões de contos.
Há alguns anos vinha o seu «déficit» a ser compensado pelos saldos positivos nas transacções de serviços com destaque para o turismo, e pelas remessas dos emigrantes. A evolução desfavorável das receitas turísticas e das transferências privadas vem provocando e acentuando um processo acelerado de drenagem para o exterior de meios de pagamento em moeda estrangeira que deixa prever o seu muito próximo esgotamento, e a necessidade de utilização das reservas de ouro.
Factores fundamentalmente influentes no agravamento do nosso «déficit» comercial são o baixo volume das nossas exportações e a evolução nitidamente desfavorável dos preços médios de importação.
O comportamento mais recente das nossas exportações encontra, por outra via, explicação nos seguintes factores, entre outros:
- Crise da economia do mundo ocidental, revelada pela quase estagnação da procura de importações nos países da O. C. D. E., que absorvem cerca de 80 por cento das exportações portuguesas;
- Dificuldades de financiamento das importações, associadas ao retorno de nacionais e ao fecho de certos mercados coloniais;
- Perda de competitividade dos produtos portugueses nos mercados externos, traduzida por aumentos de custos de preços superiores aos registados nos países da O. C. D. E., e agravada pela facilidade em encontrar ofertas de produtos similares aos por nós exportados;
- Dificuldade das pequenas e médias empresas em se adaptarem a custos de produção rapidamente crescentes, nomeadamente em razão da flutuação dos salários;
- Incerteza quanto à nossa capacidade de cumprimento dos prazos contratuais de entrega.
Neste domínio não é famosa a nossa capacidade de manobra, mesmo explorando a possibilidade de mercados alternantes. Os bens importados susceptíveis de ser rotulados de não-essenciais constituem uma pequena parte do conjunto. Em 1974, 5,6 por cento. Os efeitos de uma severa limitação à importação desses bens repercutir-se-iam modestamente numa estratégia de contenção de importações.
Por outro lado, os componentes mais representativos das nossas importações são os produtos alimentares, as matérias de base, a energia e os bens de equipamento, onde não são fáceis limitações significativas.
Só em 1974, face à quase estagnação da produção interna de produtos alimentares despendemos 17,2 milhões de contos com a importação desses produtos. As aquisições de combustíveis atingiram, por sua vez, 14,6 milhões de contos, e as de bens de equipamento cerca de 19 milhões de contos. Como a situação tende a agravar-se, é natural que, mesmo quanto a estes bens, tenhamos de encarar algumas limitações e sacrifícios.
Em resultado deste panorama, não constituirá surpresa, nem talvez notícia, o facto de o VI Governo ter iniciado o seu mandato no ponto em que as reservas de divisas do Banco de Portugal se aproximavam, a termo de dias, no ponto crítico, vizinho do ponto zero, que nos obriga a lançar mão de novas soluções, que passam, imediatamente, pela obtenção de empréstimos externos caucionados pelas reservas ouro. Mas não tenhamos ilusões. Ao ritmo que levamos, o próprio ouro - cujo preço de mercado se encontra em fase descendente - não nos garantirá nada que se pareça com o tempo decorrido após o 25 de Abril.
Impõem-se, pois, operações externas de carácter financeiro, e foi essa uma das primeiras preocupações e tarefas do VI Governo.
Algumas dessas operações - já anunciadas e em fase de concretização - não teriam sido possíveis sem a garantia, que o VI Governo representa, de uma democracia socialista e pluralista. Na mesma linha vão ser exploradas outras perspectivas de financiamento externo para projectos de investimento.
A prática do apoio financeiro inter-Estados é corrente, sem excluir o âmbito das relações entre a União Soviética e dos Estados Unidos, sem que envolva, quando realizada em moldes selectivos, o tão propalado risco da perda da independência nacional. Pelo contrário, seriam a miséria e as grandes carências, o desemprego e o isolamento internacional, o caminho mais recto e mais curto para humilhantes situações de dependência e sujeição.
De qualquer modo, impunha-se que os detractores do recurso ao financiamento externo, dissessem claramente como, sendo Governo, resolveriam a situação de grave crise financeira herdada pelo actual Governo. Nomeadamente como, sem meios externos de pagamento, manteriam o nível da importação de bens essenciais, e sem meios internos de pagamento continuariam a despender milhões de contos com os «deficits» das empresas assistidas, incrementariam o investimento, consumariam a descolonização e fariam face ao desemprego, tudo sem reforçarem incomportavelmente a inflação, ou seja sem entrarem no círculo vicioso que faz resvalar os cidadãos para a miséria e os povos para o fascismo.
Para todos estes problemas só há uma resposta: temos de produzir e vender mais e de consumir menos. Eis um programa linear de Governo cujo êxito como sempre, passa pela consciência cívica nacional. Temos de entrar num período de relativa austeridade que, infelizmente, terá de atingir todos os portugueses. Austeridade significa restrição de certos consumos - públicos e privados. E em grande parte essa austeridade terá de ser conseguida através do aumento de alguns preços, provavelmente através da correcção de alguns impostos indirectos, tão selectiva quanto possível, do aumento de algumas tarifas, do reforço do investimento público, dada a retracção, que urge combater, do sector privado e, ainda que provisória, de alguma inflação.
Mas não nos iludamos: a recuperação não será possível, e o socialismo será dentro em breve uma esperança que deixou saudades, se as massas trabalhadoras não chamarem a si um acréscimo de esforço que garanta à revolução e ao País o «controle» da produção e um aumento de produtividade. Temos de trabalhar mais e com mais qualificado rendimento. Nessa medida, os que reivindicam salários incomportáveis pelo orçamento das respectivas empresas ou do Estado, redução de tempo de trabalho e, sobrepõem à solução específica dos problemas económicos do respectivo sector intermináveis e estéreis discussões políticas, julgando que servem a revolução, agem ainda que na melhor das intenções, como agiriam, e sem dúvida agem, os mais expeditos contra-revolucionários.
Não teremos tempo de acabar as nossas discussões sobre a melhor forma de organizarmos politicamente a sociedade portuguesa se essas discussões continuarem a servir ou a ser utilizadas para desviar a atenção do problema básico de toda e qualquer sociedade política: a da sua própria existência como sociedade autónoma, ou seja, capaz de produzir o equivalente aquilo que consome.
Neste momento, o VI Governo enfrenta um «déficit» anual nacional de tesouraria da ordem dos oitenta milhões de contos, uma massa salarial que quase se equivale ao produto interno nacional, cerca de 300 mil desempregados com tendência para mais e uma acentuada faixa de subemprego.
Digo aos portugueses, com toda a rudeza, e não menor determinação: se queremos ser livres e iguais em direitos e oportunidades, devemos exigir já de nós próprios, de todos nós, enquanto povo, duros sacrifícios, positivos contributos e uma vigilância, consciência cívica do reflexo nacional dos nossos actos.
Tenho perfeita consciência de que, anunciar sacrifícios, não é um programa popular de Governo. Popular, eu sei, é exigir tudo e tudo prometer. Mas o VI Governo o que pretende é salvar o País. Nessa medida merece a gratidão dos portugueses, a coragem e o patriotismo dos partidos políticos que o apoiam e o ajudam.
Era-me impossível poder tratar, com igual amplitude, a situação dos restantes sectores da Administração Pública. Sob pena de ter de me limitar a uma tão exígua afloração que corresse o risco de não ser minimamente esclarecedora, preferia deter-me um pouco no sector em que todos os demais se reflectem: o das contas públicas.
Direi, no entanto, sobre alguns dos restantes departamentos, mais alguma coisa. O sector dos transportes, cuja importância é inútil realçar, encontra-se numa situação particularmente difícil.
Essa situação emerge fundamentalmente:
- Da degradação acumulada durante os longos anos do regime anterior;
- Da forte dependência, das principais empresas de transportes, da situação colonial ;
- Da acumulada carência de investimentos e estruturas de gestão;
- Da correcção de algumas injustiças sociais.
Terreno propício a conflitos laborais, até pelas injustiças cronicamente enquistadas na massa dos seus quase 300000 trabalhadores, viria a registar um acréscimo salarial, na globalidade do sector, da ordem dos 55 por cento, após o 25 de Abril.
Como quer que seja, a massa salarial absorve já, em média, cerca do 80 por cento das receitas do sector. Logo sem margem para cobertura dos restantes custos, nomeadamente para a amortização do capital investido, e para a acumulação do capital a investir. Não espantará, pois, que o «déficit» global atinja, em 1975, a cifra astronómica de seis milhões de contos.
Eis uma situação que nos dá a certeza de que algo está, também aqui profundamente errado e a apontar para uma revisão em profundidade do próprio sector dos transportes privados. Se queremos uma sociedade socialista não podemos querer ao mesmo tempo que o excelente transporte privado de alguns tome o lugar impossibilitando-a, de uma razoável rede de transportes colectivos, ao alcance de todos. Também aqui, no entanto, há que avançar com cautela, dada a necessidade de não criar, sem os prevenir, desequilíbrios nos actuais circuitos industriais e comerciais ligados aos meios privados de transporte.
O sector da indústria, particularmente o da indústria transformadora, acusa, mais do que qualquer outro, os efeitos da recessão económica mundial, para além dos emergentes das débeis estruturas empresariais e do artificialismo das relações económicas que o regime anterior promoveu e protegeu.
Particularmente em crise se encontram os sectores têxteis, das indústrias alimentares, e em geral da exploração mineira.
Acabo de ler que elementos ligados à indústria têxtil entendem que, se o VI Governo não tem solução para a crise do ramo, deve demitir-se. Fá-lo-á sem dúvida quando vir demonstrado que a sua demissão resolve a crise. Até lá é talvez oportuno perguntar àqueles elementos se, ao ângulo da sua experiência, não encontram eles próprios melhor solução.
Temos, é evidente, de procurar soluções globais, sem prejuízo das sectoriais que estiverem ao nosso alcance. O sector industrial é precisamente um dos mais instrumentalizados, ou seja, dos que mais reflectem a crise os sectores que os seus produtos alimentam.
Sirva de exemplo a sua dependência do sector da construção civil, nomeadamente da habitação e das obras públicas.
A sua importância é indiscutível. Responsável por 50 por cento do produto nacional bruto, e por um terço da população trabalhadora, é nele que uma criteriosa política de investimentos pode encontrar resposta para a solução da crise de desemprego, esta só susceptível de duas soluções: a tradicional, que consiste no estimulo à emigração; a nossa, que passa pela criação de novos postos de emprego, ou seja, pelo investimento.
Assume aqui especial relevo o arranque e a dinamização de projectos industriais já relativamente amadurecidos, como é o caso dos complexos petroquímicos de Sines e do Porto, o plano siderúrgico, o aproveitamento das pirites alentejanas, o plano eléctrico, que inclui novos centros de produção, as linhas de transporte e a electrificação rural.
Estes projectos representarão um investimento global da ordem dos 100 milhões de contos, a realizar nos próximos seis anos. Teremos também de nos abalançar em direcção a projectos que diminuam o grau da nossa dependência dos mercados externos, assumindo especial relevo a produção de açúcar de beterraba, tractores e máquinas agrícolas, camiões, electrodomésticos e motores de combustão interna.
Mais milhões que teremos de procurar, precisamente em nome do reforço da independência nacional, no recurso ao crédito externo.
Isto sem prejuízo de medidas de reestruturação que afinem o aparelho produtivo e conduzam à plena utilização das capacidades existentes, à eliminação das actuais distorções do binómio custos--preços, ao reforço da produtividade, enfim, ao termo, a curto prazo, da situação de dependência financeira, em relação ao orçamento do Estado, em que muitas empresas se encontram.
Só para as pequenas e médias empresas - que nos merecem um especial carinho - teremos de orçamentar, para 1976, a prolongar-se a actual situação, um apoio financeiro global da ordem dos 7 milhões de contos.
O sector do Equipamento Social e Ambiente, responsável pelo planeamento e concretização de infra-estruturas e equipamentos colectivos é, porventura, um dos que o VI Governo recebe em mais grave fase de frouxidão. A conhecida crise da construção civil, responsável por um significativo contributo para a nossa taxa de desemprego, tem de ser prontamente detida. O Governo tem de encontrar uma resposta para as novas exigências resultantes do incremento da participação do Estado na satisfação das necessidades colectivas, o que passa, uma vez mais, pelo reforço do investimento público.
Mas é bom, é que se tenha consciência de que continuamos a não poder dispensar a iniciativa privada, cuja retoma tem de ser incentivada por meios adequados, nomeadamente no âmbito do mercado de habitações sociais.
Algumas medidas de indiscutível coerência política, e não menos justiça social, tiveram o efeito reflexo da liquidação do mercado da habitação e da paralisação da iniciativa privada, com a sequela de novas formas de injustiça.
Tomemos um exemplo: por generoso impulso revolucionário, assistiu-se ao movimento desgarrado de ocupação de casas devolutas - aliás nem sempre. Que não devam existir casas vazias, logo inúteis, enquanto houver quem não tenha casa, é um princípio socialmente válido. Mas uma coisa é isso contra um ataque frontal à propriedade privada, sem lei que o permita, ou à margem dela, precisamente num domínio em que é particularmente sensível o apego a ela da grande maioria do povo português,consabidamente individualista.
O caso é este: finda, supondo-a possível, a ocupação de todas as casas devolutas, haverá, seguramente mais desalojados do que dantes, já que as habitações deixadas de construir devido à crise do sector, superariam, em muito, as já construídas entretanto ocupadas. Eis um exemplo de aparente coerência revolucionária mais ingénua do que eficaz em termos de pragmática revolucionária. Além disso condenável, por irrespeitosa de sentimentos dignos de respeito, e, sobretudo, alienados
Temos, por isso, de regulamentar, por via legal, a plena utilização do parque habitacional devoluto.
Para além disso, há que desburocratizar a disponibilidade pelo Estado de terrenos destinados à satisfação de objectivos sociais, e o lançamento de vastos planos de loteamento e construção, através da recuperação de empresas entradas no domínio público ou em regime de intervenção do Estado. O que tudo passa pela coordenação e animação dos processos de comercialização, a montante, dos materiais de construção, e a jusante da construção acabada.
Neste domínio, o papel essencial do sector público deve ser completamente por iniciativas aceleradas das autarquias locais e das cooperativas de habitação não lucrativas.
No sector das obras públicas há que incrementar a satisfação das necessidades mais prementes das populações mais desfavorecidas, com prioridade para o saneamento básico - água e esgotos - e a construção de estradas, e que executar grandes empreendimentos de efeito multiplicador em ordem ao desenvolvimento económico-social, regional e nacional.
No que concerne à agricultura, por se tratar do sector tradicionalmente mais anquilosado, mais retrógrado e mais sedento de justiça social, lançamo-nos resolutamente no caminho da reforma agrária numa base inicial da Revolução. Mas, por isso mesmo, são inúteis, além de perniciosas, as acções que a ela se antecipam.
Não se há-de estranhar que, uma reforma que está na infância não tenha resposta imediata para todos os problemas ou não vá além de respostas apenas aproximativas.
O que conta é que queremos a reforma e estamos determinados a fazê-la.
Já o VI Governo tomou medidas de efeito imediato em ordem a facilitar o crédito e a disponibilidade de maquinaria agrícola. O que de momento se verifica é uma relativa falta de iniciativa dos agricultores ao nível da procura de crédito.
Serei a última pessoa a não reconhecer a justiça da maioria das reivindicações formuladas, mas não quero que os pequenos e médios agricultores e as cooperativas agrícolas vejam por mim alimentada a ilusão de que todos os seus problemas têm solução imediata e fácil, ou de que podem constituir solução ocupações de terrenos à margem dos casos e formas previstos na lei da reforma.
A única solução, em termos globais e definitivos, também aqui só é possível produzindo mais e melhor.
É devida ao País uma palavra sobre o sector da Educação. A autoridade tradicional passou há alguns anos a ser atacada. A partir daí entrou-se em declive permissivo, tanto mais perigoso quanto é certo que a semente era lançada em terreno propício à generosidade e à exaltação. Os resultados estão à vista, um pouco por toda a parte, entre nós agravados pela justa repulsa que a juventude portuguesa fez cair sobre o regime para sempre odioso que durante anos a manipulou e escravizou. De um modo geral os estudantes não estudam, os professores não ensinam, os critérios de avaliação de conhecimentos não asseguram, de modo nenhum, que um engenheiro saiba engenharia e um médico medicina. A explosão escolar, consequente do acesso ao ensino de estratos populacionais aos quais até há pouco foi vedado, e, ao nível superior, o encerramento do primeiro ano escolar em 1974/75, chegou até ao VI Governo convertida num problema de muito difícil solução global. Podem tratar-se arremedos de solução, e vão ser tentados. Mas, uma vez mais, bom é não alimentar ilusões.
E como o Governo não está disposto a enveredar por formas de disciplina escolar compulsiva, melhor ê que estudantes, professores e funcionários ligados ao ensino se compenetrem de que serão as primeiras vítimas das suas incompreensões e dos seus erros. Um estudante que se reclama de revolucionário só o será estudando, como um trabalhador só o será trabalhando. Se o estudante não estuda e o trabalhador trabalha, o primeiro será parasita do segundo.
Importantíssimo, na vida de um País e no sucesso de uma Revolução, é o sector da Justiça. Uma comunidade humana converte-se em Nação e organiza-se em Estado, se viver de acordo com um corpo de leis que representem a vontade da maioria dos cidadãos e escolher o seu acatamento. Essa concordância tem tradicionalmente sido assegurada nos países que se reclamam de democráticos, escolhendo o povo, de preferência directamente, o corpo dos seus legisladores. Para ser justa, deve a lei ser igual para todos. Para ser eficaz, deve o seu acatamento poder ser imposto àqueles que lho recusem.
Chega sempre o momento em que, por inadequação, as leis perdem o assentimento da maioria daqueles a quem se dirigem, representado pela vontade dos cidadãos mandatados para revogá-las. Devem então ser revogadas. Quando, porém, não uma lei mas o corpo de todas as leis se torna tirânico, surge o direito da rebelião, de que o País fez justo uso em 25 de Abril.
A que temos nós assistido? A contestação indiscriminada, lei a lei, mesmo das promulgadas após a Revolução. A pretensão, a que aderem alguns cidadãos mais responsáveis, de que pode desacatar-se uma lei com base na discordância com ela, individual ou de grupo. Mais do que isso, à contestação frontal da própria autoridade dos tribunais, passo fundamental para a recusa de toda e qualquer autoridade.
Passou a falar-se, com frequência, em leis revolucionárias. Em período revolucionário, devem as leis sê-lo, como instrumento que são da própria Revolução. Mas sem deixarem de ser leis, no sentimento de voluntária ou compulsivamente respeitadas como normas de conduta e de convívio social. Por lógica extensão têm de ser respeitados ou tribunais e as suas decisões, o que é bem sentido por aqueles que os procuram em demanda de reparação e de justiça.
Somos um povo civilizado e um Estado de Direito. Daríamos uma má ideia de nós próprios, e poríamos em causa o básico sentimento de segurança dos cidadãos, se não vivêssemos de acordo com o pacto social expresso no corpo de leis que nos regem a conduta.
Não devem confiar na impunidade ou não complacência do Governo os que julguem poder viver contra a lei ou à margem dela. O Governo, por seu turno, espera do civismo dos portugueses o seu escrupuloso acatamento.
Aproximo-me do limite de tempo que me impus, ainda que sem ter referido todos os pontos que mereciam sê-lo.
Não quero, porém, findar sem uma palavra sobre a descolonização. Aproxima-se agora do seu termo. Mas coube ao VI Governo ter de enfrentar o saldo da descolonização de Angola e Timor, tão matizado de tragédia, e as suas inelutáveis consequências, das quais a mais significativa, e também a mais dramática, é o problema dos retornados.
Já o VI Governo aprovou um crédito de 4 milhões de contos para fazer face às despesas do seu transporte e primeira assistência. O seu definitivo enquadramento na sociedade portuguesa seria um desafio para qualquer Governo. Muito mais o será para este VI Governo, tão cravejado de dificuldades e tão limitado de meios. Mas não nos falta determinação e contamos com a compreensão e ajuda dos próprios retornados.
Finda a descolonização, cujas dificuldades não chegam para neutralizar os seus méritos - até porque na base das primeiras estiveram razões alheias ao nosso querer e à nossa capacidade de controlo - poderemos, superada a dispersão, concentrar-nos sobre o rectângulo europeu e ilhas adjacentes que basicamente fomos e sempre seremos e, de novo integrados na comunidade das nações, resolver em paz os nossos problemas, continuar a nossa marcha para o socialismo, e voltar a ser caminho e a ser exemplo.