25 anos do 25 de Abril - Vozes da Mudança (1999)

Eduarda Dionísio 
  
 
25 ANOS DO 25 DO ABRIL-VOZES DA MUDANÇA 
 
1.  
Primeiro ponto: tive sorte. Como alguns milhões que estavam vivos quando o 25 de Abril nos caiu do céu e nos aterrou em casa. Falo dos que não tinham nada a perder.  
Ficou-me a memória de um tempo em que as pessoas (muitas) se puseram a tratar por tu e as gravatas desapareceram até dos telejornais e dos ministérios. 
E com o gosto de uma vida assim fiquei, alguns ficaram. Repugnam-me um tanto lançamentos, casamentos, condecorações, comemorações e outras cerimónias que pouco (ou nada) contribuem para a mudança do mundo. 
Foi um tempo sem relógios, sem “calendarizações” e “filofaxes”,  em que a noite era tão ou mais importante do que o dia. A urgência era a vida, muito mais do que uma solução para os atrasos.  
Fiquei com o tempo assim subvertido. Muitos ficámos. Não entendo a felicidade com hora marcada, de fim de semana no campo, de dia fixo na discoteca. Nem que a igualdade das mulheres possa passar por horários bem comportados nos parlamentos como são.  
Tenho a memória de um tempo “rentável” em que o impossível se reduziu a quase nada, com o encolher da burocracia e o eclipse parcial dos intermediários. Foi estreita a margem entre o decidir e o fazer, entre o dizer e o acontecer. 
E com a certeza desta possibilidade fiquei. Alguns ficámos. Evito quanto posso repartições públicas, concursos, pedidos de subsídios. Continuamos alguns em pequenas “aventuras” hoje quase invisíveis. Com muito gosto.  
Tenho a memória de um tempo em que alguma coisa do que fazíamos aparecia nos jornais. As secções não reproduziam os organigramas dos governos e dos ministérios, as greves não iam para a secção da economia. Foi um tempo de máquinas de escrever, de copiógrafos, de paredes que se pintavam.  
Passei a entender-me bem com fotocópias, faxes, e-mails e até com internet. Conservo essa ideia de que a imprensa serve para nos informarmos uns aos outros. E também o vício de “publicar”, de divulgar, de partilhar o que se sabe (ou julga saber), de apelar, de juntar pontas. Mesmo quando dizem que é “para nada”.  
Tenho a memória de um tempo em que as vozes das mulheres se ouviam mais do que muitas outras fora de casa,  e essas vozes chegaram às casas de cada um.  
E com o som da alegria, da razão e dos divórcios para novas vidas fiquei. Não chego a entender o que sejam “quotas”.  
Falo dum tempo em que subitamente cada um descobriu que sabia muito mais do que tinha aprendido. Os saberes nasciam da necessidade, do entusiasmo, da curiosidade por aquilo que não existia ainda, da atenção aos outros e às coisas, às palavras.  
E com a crença de que só assim se aprende fiquei. Sou estranha às sábias ponderações sobre formação profissional, sucesso escolar, cultura com vista ao “desenvolvimento”…  
Guardo a imagem de um imenso laboratório de fotografia de onde iam saindo rolos e rolos, ininterruptamente. Em negativo, claro. E era a própria luz do dia e os nossos olhares que os imprimiam. Melhor ou pior. 
2.  
1999. Descubro numa página de publicidade que os industriais portuenses são uma nova “voz da mudança”. A AIP, na comemoração dos seus 150 “prósperos” anos, oferece-nos uma fatia de cultura: o surrealismo - artistas devidamente “comissariados” por “gestor cultural”, explicados por “especialistas em arte”, “patrocinados” por 60 e tal logotipos de empresas várias, MC incluído.  
É uma mudança: os patrões das fábricas onde foram vegetando operários numa miséria à Dickens (e que prescindiram dos seus Grémios no 25 de Abril…) interessam-se agora por Arte e escolhem aqueles que há 60 anos clamavam: “Transformar o mundo’, disse Marx, ‘mudar a vida’, disse Rimbaud - estas palavras de ordem são para nós uma só”.  
O Ministro da Cultura tinha entretanto feito sua a primeira metade de um slogan dos operários italianos dos anos 70: “a cultura não é uma flor na lapela”. Apesar de não ter adoptado a segunda metade (“é crescimento colectivo e conhecimento da realidade para sabermos modificá-la”), também aqui há uma “mudança”… 
O discurso da “mudança” é o discurso de hoje. É ponto assente que a “globalização” impõe “mudanças”, que as “novas tecnologias” as ampliam (ou vice-versa),  que nos cabe saber “aproveitá-las”, que a civilização está “mudada”, que a cultura  é “outra coisa”.  
Mas essas “mudanças”, que se enquadram na tendência dominante para o “consenso” (o contrário da democracia) e que frequentemente se confundem com “democratização” (e até com “conquistas de Abril”) são na realidade a “certidão de óbito” do 25 de Abril como instrumento. Acompanham a sua transformação em objecto de evocação e de comemoração.  
As mudanças que se deram há 25 anos foram rompimentos. De regime, mas também de referências, de conceitos, de relações, de gestos, de modos de vida, de linguagens. E o maior terá sido dar voz a quem não a tinha. Foi em conflito (em que uns perderam e outros ganharam - eu, por exemplo, perdi quase sempre…) que a democracia nasceu. Foi de rompimentos que ela se fez. Esquecer e silenciar isto não transformará a História.  
A primeira voz  que aqui trago é a de João Martins Pereira, que, em 1983, lembrava aos “intelectuais” o que se começava a esquecer:  
"Esses dois anos terão sido para muitos (para eles próprios, mas sobretudo para uns milhões de trabalhadores da cidade e do campo, de "deserdados", de explorados, de moradores de bairros da lata, de velhos e novos, homens e mulheres) os dois únicos anos da sua vida - até ver - em que agiram, comunicaram, decidiram, enfim, intensamente viveram" . 
E a segunda voz é a de Vítor Hugo Lucas, da Comissão de Moradores do Bairro da Liberdade, em Setúbal, fundador e gestor da creche, e que, durante anos, até descrer, esteve, em pleno uso quotidiano das palavras e das ideias. Conta o que aprendeu (por exemplo: que havia leis escritas, que elas podiam ser usadas) e o que ensinou. Sobre os engenheiros e arquitectos do SAAL, com quem diariamente conviveu, afirma: “eles aqui é que vieram aprender”. 
3.  
De facto, de um momento para o outro, milhares de pessoas que nunca tinham pegado espontaneamente numa caneta ou num pincel passaram a usar folhas brancas (que se tornaram comunicados e cartazes) e também paredes onde inscreveram, a preto e branco ou a cores, letras e imagens. Para viabilizar empresas, fábricas e terras, para construir casas, puseram-se elas a fazer projectos, orçamentos, actas, a falar umas com as outras e tu-cá-tu-lá com o poder. Foi de “conquista da felicidade” que se tratou. 
O que começava a mudar era a vida. E com ela o conceito de cultura e o seu lugar no quotidiano.  
Poucos artistas e intelectuais repararam que era o próprio terreno da cultura que se ia deslocando. Lembro-me do João Mota que notou a diferença que era ter passado a fazer teatro “sem polícia e sem bombeiro”, e na rua; de Ernesto de Sousa que insistiu na importância das manifestações teatrais fora da capital, do “número extraordinário de publicações”, das paredes anónimas de Lisboa.  
Sobre essas paredes (que em breve seriam “limpas”) Fernando Azevedo diria: "A humanização da cidade não teve estratégia. Eclodiu. (...) A dimensão estética que inovou não teve assinatura. Foi obra do povo e sinal do seu poder".  
É natural que, no meio destas mudanças, os artistas “a sério”, os escritores, não tivessem muita importância quando, ainda por cima, os grandes rompimentos de linguagens (talvez anunciadores do 25 de Abril) já se tinham dado uns anos antes e nada indicava que outros estivessem em preparação.  
O que mudava eram os processos de produção, de distribuição, de consumo, com o “quem” (que se alargava e diversificava) ao centro: quem fazia, quem mostrava, quem recebia.  
O significativo aumento, de 73 para 75, das idas ao teatro e ao cinema e das tiragens dos livros entra neste quadro de “movimento colectivo”, de “saída de casa”, de “descoberta do desconhecido”. Os números começariam a descer a partir de 76, para chegar, em 94 (ano da Capital da Cultura), a 1/6 do que eram então no caso do cinema, a 1/3 no caso do teatro e a metade no caso das tiragens de livros em 1ª edição.  
Não existiu, portanto, um alheamento dos produtos culturais nestes tempos “conturbados”. Também não foram pequenas leis nem “grandes realizações” do Estado com vedetas no cartaz que fizeram aumentar os consumos. 
4.  
O painel feito por 48 pintores (muitos deles hoje com alta cotação no mercado), no primeiro 10 de Junho que não foi “da Raça”, não terá sido um “rompimento” de fundo, mas pôs os problemas com que as artes e a cultura se debatiam. Os artistas, aliás, não demorariam muito a “regressar à normalidade” e a apostar no seu novo papel de promotores de “consenso”.  
A terceira voz que aqui trago é de a de António Mendes, autor de um dos 48 rectângulos do imenso painel, que ardeu em 81:  
“Um grupo de pintores” … “no dia 1 de Maio, na rua” … “sugeriu que se fosse pintar as paredes do Técnico.” … “Eram feias assim” … “apetecia tornar as coisas bonitas” … “Era agora altura para cada um se manifestar, fazendo aquilo que sabe fazer, ao ar e à vista de todos” … “Depois, veio a fase da organização”… “Eu que tinha aderido a um puro divertimento, a uma festa, vi-me embarcado numa seriíssima 'homenagem'”... “que não se passava ao sol mas num espaço fechado” ... “que já não era o cobrir de uma parede cega mas a pintura de uma convencionalíssima tela...” … “Fui sem vontade”... “Mas a festa fez-se e acho que resultou melhor do que era de esperar”... “brutalmente cortada - é certo - pela cena da censura da televisão que todos sabemos.”  
Foi assim que muitos artistas e intelectuais “perderam o pé” na complicada encruzilhada de três inconciliáveis desejos: 1º “a poesia está na rua”(sem autor portanto); 2º os poetas têm direitos de autor e sindicais; 3º o Aparelho de Estado é um lugar para poetas.  
E a quarta voz que aqui trago é a de Ernesto de Sousa, uma grande excepção, que conta o seu quotidiano em 75. Deitar às 5, levantar às 8. E, num só dia, reler uma mesa redonda do Jornal Novo sobre “Revolução Cultural”, uma nota da Quinta Divisão sobre a polémica da Exposição de Paris, escrever uma crónica para a Vida Mundial, participar num júri da SNBA, fazer uma sessão de diapositivos no ARCO com uma escultora belga, encontrar-se com Mário Pedrosa (ex-director do Museu de Santiago do Chile), ver a exposição “Colagens” na SNBA, participar numa mesa redonda sobre o conflito no IPC, montar um super 8 da Festa da Electricidade para os amigos da Dinamização, pôr em dia a correspondência com o realizador Robert Kramer e o pintor Robert Filiou. E no fim exclama: “Eu sou um trabalhador, não acham? Pois, um trabalhador intelectual, e depois?” 
Já em 77, poria de pé uma inesperada “Alternativa Zero”, com o apoio da SEC então ocupada em “moralizar” o teatro independente … “Criação consciente de situações”. “Entrar no quotidiano” sem a “mentira dos objectos”. 10000 visitantes no Mercado de Belém. Artistas consagrados e estreantes. Movimentos artísticos “de ponta”. Participação activa do público.  
Mas já era tarde para provar que o difícil, o diferente, o abstracto ou o conceptual não é necessariamente igual a “elitista” e que o fácil, o habitual, o naturalista, o figurativo, o decorativo não é igual a “popular”. Tinha-se dado o regresso aos quartéis e começavam os regressos a casa. O 25 de Novembro apanhou na rede também  a “Alternativa Zero”: possibilitou a sua concretização ao mesmo tempo que esvaziou a sua proposta.
5. 
Vinte e cinco anos depois, falar do 25 de Abril é falar do 25 de Novembro, que aconteceu menos de dois anos depois, e onde houve vencedores e vencidos. Vivemos num pós-25 de Novembro e não no pós-25 de Abril. É útil perceber o que, sendo radicalmente novo, terminou na sua sequência e o que, apesar dele, continuou. E vamos parar às lutas mais radicais. Ou seja às que colocaram  a questão de uma “outra cultura”.  
Penso nos geralmente mal etiquetados casos República e Rádio Renascença; mas também na esquecida ocupação da Gulbenkian; noutras lutas localizadas - contra os patrões no Círculo dos Leitores, contra os filmes da Lusomundo - empresas hoje mais poderosas e mais consensuais do que nunca.  
Histórias com morais diferentes, ao longo das quais os derrotados foram semeando mudanças. Lembro que a luta da Rádio Renascença começou, ainda em Abril de 74, com a proibição da administração (a Igreja) de transmitir declarações de Cunhal, Soares, JM Branco e L. Cília, regressados do exílio; que na Gulbenkian a luta começou, logo em Maio, com a proibição de uma reunião de trabalhadores por Azeredo Perdigão em pessoa.  
E são estas as últimas vozes que aqui trago, de 75, contemporâneas das “paredes”:  
Uma: “A Fundação continua a insistir no mesmo tipo de relação cultura-público e a servir a este o mesmo género de concertos, exposições, livros, etc. Deplorando esta situação, os trabalhadores estão determinados em mudar a concepção de cultura suscitando novas relações que ultrapassem o simples âmbito dos meros sinais exteriores de que a prática cultura se reveste”.  
E outra: “Nós, trabalhadores da ‘República’, somos conscientes de que estamos numa sociedade a que falta ciência e educação, a que falta portanto uma política de informação que, em vez de mutilar as classes trabalhadoras exploradas e pobres, lhes dê o poder da inteligência e da economia” (…) “declaramos que na Informação os trabalhadores têm de poder determinar que o fruto do seu trabalho - o jornal - seja aplicado em realizações que dizem respeito à transformação do homem e da vida e não em objectivos belicistas dos políticos, em privilégios de minorias corruptas ou em exibicionismos partidários”. 
Perceber estas propostas (vencidas) de mudança, em vez de obstinadamente lhes descrevermos os fastidiosos itinerários partidários, talvez esteja mais do que nunca na ordem do dia, quando velhos espectros com roupagens novas nos atacam e quando a dificuldade de os combater é cada vez mais declarada. Para citar só alguns: iliteracia, pensamento único, exclusão. Não era disto mesmo que estas últimas vozes falavam? 
Não ter medo de fantasmas é a única forma de ver claro. Para poder utilizar hoje a sorte que tivemos ontem. Seria bom que “comemorar o 25 de Abril” pudesse significar fugir a sete pés do domínio das ideias feitas e do consenso obrigatório.
 
27 FEV 99