Memória de Abril (2007)

    
Augusto Monteiro Valente 
   
  

 
A memória assume para os democratas uma primordial importância simbólica, como cultura de valores cívicos fundamentais para a construção do futuro. O 25 de Abril de 1974 inscreve-se na linha do 24 de Agosto de 1820 e do 5 de Outubro de 1910, ou seja, na tradição histórica da liberdade contra a opressão da autoridade. Mas, passados trinta e três anos, o 25 de Abril é cada vez mais lembrança distante e menos memória presente! Será que os portugueses não têm predisposição para a vivência democrática? Ou não será a situação resultado de um processo deliberado de esvaziamento do conteúdo simbólico do 25 de Abril – como aconteceu com o 24 de Agosto e o 5 de Outubro? E não estará o regime democrático a seguir os passos do Liberalismo e da I República?

Os revolucionários do vintismo e do republicanismo ambicionaram resolver os ancestrais bloqueios da sociedade e instaurar em Portugal um Estado moderno. Bateram-se pela participação dos cidadãos na actividade pública, pela moralização da vida política, pela instrução, educação e formação profissional, pela reorganização do Estado, por uma política económica favorável às classes médias. Esses esforços foram frustrados pela recuperação da estrutura da sociedade tradicional e pela reacção das oligarquias dos velhos interesses e privilégios, tudo no sentido de preservar um sistema de dominação económica de uma minoria, apoiado na força de uma banca parasitária e nos rendimentos dos grandes negócios especulativos. Num e noutro caso acabou por se optar pelos valores e interesses instalados, à custa de uma actuação fortemente autoritária, opressiva e corruptora, contra as reformas sociais e o progressismo cívico que ambas as revoluções haviam anunciado. O Estado Novo mais não fez do que consolidar esta anacrónica ordem social, pela anulação das incipientes tentativas de modernidade, refugiando-se na glorificação do passado quinhentista e seiscentista, fazendo da repressão arbitrária e violenta da liberdade dos cidadãos uma prática normal e legal, arrastando finalmente os portugueses para uma trágica guerra colonial que não podia ganhar nem podia perder.

Esgotado o ciclo do «Império», a Revolução de Abril «nasceu acompanhada da vontade de inventar um outro destino para Portugal» - na feliz expressão de Eduardo Lourenço. Os militares de Abril cumpriram no essencial as suas promessas fundamentais, de devolução da soberania à Nação e da liberdade aos portugueses, de democratização do país segundo os princípios da soberania popular, do pluralismo político e da participação cívica, e lançaram as bases de um desenvolvimento visando a realização da democracia económica, social e cultural para um Portugal mais livre, justo e fraterno. Com todas as dificuldades, limitações e contradições, qualquer balanço sério não poderá deixar de evidenciar o claro progresso registado no país depois daquela histórica data.

É verdade que ficou muito por fazer. Mas o grave é que, passados trinta e três anos, persista um nível médio de desenvolvimento e de qualidade de vida da população em grande desfavor face à generalidade dos Estados-membros da União Europeia. E o mais preocupante é que, em aspectos essenciais, se tenha trocado o projecto de Abril pela teologia de um mercado, novamente ao serviço de uma minoria predadora da riqueza nacional, onde o negócio especulativo, o enriquecimento fraudulento, a corrupção económica e fiscal, a promiscuidade entre o político e o económico e entre o público e o privado acabam por ditar as regras.

Os efeitos são cada vez mais visíveis:
 agravamento das assimetrias regionais e das desigualdades sociais;
 aumento do desemprego, da pobreza e das injustiças sociais;
 regresso da fome e da emigração;
 deterioração dos direitos à saúde, educação e segurança social;
 destruição da segurança no trabalho e enfraquecimento da classe média.

 Tudo sob o argumento equívoco do controlo das contas públicas e da preservação do futuro dos portugueses. É certo que existe uma situação de défice orçamental excessivo que é necessário corrigir. Mas, como noutras épocas, o mal principal de que sofre o país é mais profundo. O que em Portugal está em crise, e há muito tempo, é a própria sociedade. E o tratamento entretanto aplicado apenas tem reduzido os efeitos secundários, agravando a doença principal. Será que os portugueses não aprendem com a sua história? Ou não será antes que alguns a deturpam, silenciam e lha fazem esquecer? 

O 25 de Abril foi liberdade e foi cidadania. Como o tentaram ser antes o 24 de Agosto e o 5 de Outubro. Mas trocaram as suas bandeiras pela autoridade e pela ordem. Por isso falharam os primeiros. Por isso o 25 de Abril está a falhar! Mas quem falhará com ele será, outra vez, Portugal! A solução está em mais cidadania, mais participação dos cidadãos, mais Abril. Não em outra!
 
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