O dia incomum de um exilado vivendo então em Vancouver

    
Sérgio Godinho 
 
0 DIA INCOMUM DE UM EXILADO 
VIVENDO ENTÃO EM VANCOUVER 

 
Era muito longe, ou seja 
no Pacífico 
Notícias de jornal, confusas: 
tanques ocupam a praça central 
de Lisboa 
Digo-me: mal eles sabem que se chama 
Rossio mas digo-me também: se é a revolução 
daquele do monóculo 
pouco tenho a esperar 
Depois espanto-me: como é possível 
que libertem assim 
sem mais nem menos 
os presos políticos 
e prometam a autodeterminação 
de colónias economicamente tão preciosas? 
0 povo saiu à rua e foi isso 
que mudou tudo, explicam-me então 
pelo telefone.
No dia em que abalei 
para aqui ficar  
deixei sem remorsos: 
a minha horta  
cujos legumes tantas vezes protegi 
um trabalho que tanto suspeitava amar 
e os amigos que, querendo ser generosos,  
me disseram:
«Vai, vais ver que não te arrependes»
Esquece-se muita coisa... 
a força de ver caras novas 
não sei se me lembro das antigas  
embora as veja tão bonitas 
e disponíveis 
na memória 
e por vezes em fotografia.
(Inédito) 
 
 
PoemAbril 
Antologia de autores organizada por 
Carlos Loures e Manuel Simões 
Fora do Texto - Cooperativa Editorial de Coimbra, CRL. 
Coimbra, 1994