Dossier 25 de Abril.21 de Março

21 DE MARÇO
 
foto Risos ANP (século) ou Café Londres?/D.Popular, pag. 11
Nemésio apátrida
"Tocada de vento, goticulada de chuva e logo depois com muito sol - assim nos chegou a primavera, de manhã, e nos tomou o braço e se fez connosco à vida", noticia o "Diário de Lisboa". Nas páginas interiores, a foto da anciã Arminda de Jesus Paiva, "de mais de 80 anos", vergada ao peso de um molho de carqueja. É assim todas as semanas, da Granja, freguesia de Mões, para Castro Daire, dez quilómetros a pé para lá, outros tantos para cá, para conseguir 12 escudos e 50 centavos. "Das suas filhas", dá nota a fotolegenda, "julga saber que estão para Lisboa".
Comenta-se em todos os tons os dois empates europeus, a propiciarem destinos diferentes nas respectivas competições ao Sporting (apurado para a eliminatória seguinte da Taça das Taças, após um empate a uma bola com o Zurique e uma "actuação brilhante de Dinis") e ao Setúbal (afastado da Taça UEFA pelo Estugarda).
Uma cómoda em pau santo estilo D. José vai à venda num leilão, em Lisboa, por 144 contos. Desaparece o Café Londres, para dar lugar a uma "loja de refeições rápidas". Sá Machado, 40 anos, toma posse como administrador na Sonap, em representação da Gulbenkian, de que é também administrador.
O programa da RTP Livros e Autores é inteiramente dedicado a Vitorino Nemésio, cujo magistral discurso há duas semanas, no acto de receber o prémio Montaigne da Fundação F.V.S. de Hamburgo, começa a ser publicado, na íntegra, no suplemento de Letras e Artes do "DN" (ver texto abaixo).
No temido Tribunal Plenário, em Lisboa, presidido pelo desembargador Morgado Florindo, principia o julgamento de "sete indivíduos" acusados de pertencerem à ARA (Acção Revolucionária Armada, ligada ao clandestino PCP). Seis testemunhas de acusação contra 99 de defesa. E um friso impressionante de defensores: Salgado Zenha, Luso Soares, Manuel João da Palma Carlos, Lopes de Almeida, Costa Simões, Lucília Santos e Maria Adelaide Paiva. O juiz adia o julgamento, perante a ameaça de Palma Carlos de abandonar o tribunal caso não lhe seja concedida a possibilidade de examinar livremente os autos. Recorrem para o Supremo das penas de prisão maior aplicadas aos seus clientes, os advogados de António Perez [Metelo], Jofre Justino e João Duarte de Carvalho, acusados de ligações ao Comité Revolucionário Marxista-Leninista.
Spínola dá uma entrevista à televisão francesa (então uma apenas, a nacionalizada) e a agência ANI (pró-governamental) diz que ele disse que o livro "Portugal e o Futuro" não é uma obra política, e que não tem "divergências fundamentais de opinião" relativamente à política do país.
Deixa o comando da Academia Militar (onde estavam colocados, entre outros, Otelo Saraiva de Carvalho e Almeida Bruno) o general Amararo Romão, a desempenhar funções desde 1968.
Num carro estacionado num terreno baldio em frente da Penitenciária de Lisboa, o capitão Luís Macedo (a partir daí adjunto operacional de Otelo e mais tarde chefe de gabinete do do primeiro-ministro Vasco Gonçalves) avisa o seu companheiro de armas de que "a malta está toda desorientada" e que, se o Movimento "demora muito tempo sem fazer nada, a malta desmobiliza totalmente".
Documento
"Velho e gasto já não aprendo linguagem. Foi, aliás, a fabricá-la que me gastei. Mas se por fabricar se entende o recebê-la em menino como matéria semiótica do segundo grau (depois do gesto, da careta e do berro pueris, enfim, como forma de descobrir o 'eu' e entrar na alteridade regressando sempre ao 'me ipsum') então sim, tenho de reconhecer que fui um bom operário da fala, oral e escrita. (...) Pois eu, sou ao mesmo tempo e acima de tudo, português europeu, americano-brasileiro, e, por tudo isto, românico-hispânico e ocidental, e gostava de ser homem de todo o mundo. E até mesmo apátrida (heimatloss...) que o é porque os estados (?) lhes problematizam ou burificam o estatuto da natividade - pois eu bem sei que a carta de cidadania é preciso para voto e passaporte, mas também se passa sem essas coisas: sem pão e verdade é que não." (Vitorino Nemésio, ao receber o prémio FVS de Hamburgo, "DN", 21/3.)