Dossier 25 de Abril.06 de Abril

06 DE ABRIL
 
"Mon cul!"
Brighton. Desde há dias que o nome da cidade inglesa rivaliza com os maiores acontecimentos da actualidade, tal qual a lê a imprensa portuguesa, que oferece o melhor dos seus espaços (chamada de primeira página, centrais) aos seus enviados especiais (repórter e fotógrafo) ao Festival da Eurovisão. Das 17 canções concorrentes só três não falam de amor, contabilizam uns, enquanto outros se maravilham com o anúncio de que a transmissão do espectáculo poderá ser vista também na Sibéria!
Paulo de Carvalho é o "representante" de Portugal, tem vindo a escrever-se, para grande irritação de Augusto Abelaira. "Como se pode dizer que uma canção escolhida por 48 pessoas representa um país?", interroga-se o escritor, na sua crónica diária em "O Século".
Não nos antecipemos, contudo, à grande desilusão de logo à noite. Hoje é sábado, dia de "Expresso", um semanário com pouco mais de um ano de vida mas que já se vê envolvido em polémica com o jornal do regime, "Época". No centro do debate, uma interrogação do semanário sobre se o país "tem a informação de que necessitaria para se lançar decidida e corajosamente nos rumos do desenvolvimento, paz e justiça social".
Os corifeus do regime não gostaram e reproduzem um diálogo "ouvido há pouco entre dois escritores, um nacionalista e um social-democrata". Inquirido se não adoptaria também um regime de censura caso ocupasse o poder, o social-democrata terá respondido que sim. "E uma censura que não fosse para brincadeiras."
O jornal dirigido por Pinto Balsemão (seu proprietário) comenta que não é com um exemplo anónimo de uma história "escolhida por medida" que se debatem as ideias, mas não foge ao desafio e declara, premonitório: "Se alguém do 'Expresso' um dia detivesse posição de responsabilidade política no sector informativo, coerentemente defenderia a mesma posição que sempre defendeu como mero cidadão."
O jornal dá ainda relevo a um inquérito junto de banqueiros nacionais sobre o estado da economia portuguesa ("do optimismo de uns ao pessimismo de outros") e a um apelo à unidade feita pelos bispos de Moçambique, em Quelimane, onde se reuniram com o núncio apostólico José Sensi. O comunicado diz que os "dolorosos acontecimentos de desinteligência e divisão (...) que se viveram (...) no seio desta Igreja, nos últimos tempos", constituíram uma "provação vivificante". O "Expresso" chama a atenção para o qualificativo, bem como para "este inédito reconhecimento da crise atravessada pela Igreja de Moçambique".
Nas páginas interiores, o protesto de figuras da cultura, face à iminência da destruição da Igreja de S. Julião, na zona da Baixa pombalina lisboeta - uma inevitabilidade legal, segundo justifica, em carta, o presidente da Câmara, Silva Sebastião.
"Foi a Igreja de Santo André de Estremoz, foi o Palácio de Cristal do Porto, símbolo de uma época, transformado em 'ring' de patinagem, foi toda a Alta medieval de Coimbra, está a ser a Avenida da República... Foi... é... será?", comenta o semanário num texto de apresentação dos depoimentos de Alexandre O'Neill (ver poema, em baixo), Ruy Cinatti, Noronha da Costa, Eduardo Nery e Francisco Caldeira Cabral.
"No dia 6 de Abril, o chefe do Estado lançou na sua agenda a nota interrogativa seguinte: 'Os capitães continuam agitados?' E acrescentava outra a essa interrogação: 'Ninguém lhes dá um calmante?' Razão havia, portanto, para o comentário, atrás feito, às últimas palavras proferidas pelo ministro da Defesa, no dia 4 [na cerimónia comemorativa dos 25 anos da NATO, durante a qual Silva Cunha alertara para a necessidade de reconverter os conceitos de estratégia do Ocidente face à expansão do inimigo]. Thomaz verbera os seus ministros: 'Criticávamos com toda a razão os procedimentos e os erros alheios, mas não atentávamos devidamente nos nossos.'"
Américo Thomaz, in "Últimas Décadas de Portugal", vol. IV, ed. FP, 1983
"O culto do passado
oculto do passado?
Mon cul!
Para que vos quero, pedras?
Furo para o futuro
e vou melhor assim,
com andorinha e alecrim,
olaré, pim!
'...mais alegre...', '...pois, pois...',
não esqueças o buldozer
mai-la junta de bois.
Ah
e os brazões!
Passado, estamos quites.
Futuro, estamos kitsch.
Deixa o presente,
mon cul!"
Alexandre O'Neill sobre a destruição da Igreja de S. Julião, in "Expresso" de 6/4/74