Adriano Moreira

Entrevistas conduzidas por Maria João Avilez -  "Público" (1994)

ENTREVISTA COM ADRIANO MOREIRA
 
Maria João Avillez
(FALTA ENTRADA)
PÚBLICO - Tratando-se de si, parece interessante recuar um pouco atrás: como analisa no tempo a evolução do antigo regime?
ADRIANO MOREIRA - O regime passou por três fases, independentemente até da lei constitucional ser sempre a mesma, porque há menos coincidência do que seria desejável entre aquilo que as Constituições dizem e o que ocorre na realidade política... O primeiro modelo correspondeu a uma ideia de presidencialismo e por isso mesmo o Presidente da República era eleito directamente por sufrágio universal. Na letra da Constituição, parecia ser a sede do poder e a chave do funcionamento de todo o regime...
P. - Não foi assim...
R. - Não. A evolução veio a traduzir-se na circunstância de que, à margem da letra da lei fundamental, a verdadeira sede do poder era o presidente do Conselho. Depois, o próprio dr. Oliveira Salazar teve uma Constituição que definia o Estado como corporativo mas efectivamente nunca chefiou um Estado com essas características.
Finalmente, há uma terceira fase que corresponde ao Governo do dr. Marcello Caetano, que julgo que pode caracterizar-se como um Estado de segurança nacional...
P. - O que quer dizer exactamente essa expressão?
R. - É um Estado autoritário que inclui as Forças Armadas entre os suportes importantes do poder, mas que procura defini-las como uma força a caminho de uma democratização, de uma implantação de respeito total pelo Estado de direito. Isso teve aliás reflexos interessantes em Portugal e julgo que foi nessa linha que se criou o Instituto de Defesa Nacional, inspirado pela doutrina e experiência do general Golbery no Brasil. Aqui em Portugal esse projecto foi implantado sob a direcção do general Câmara Pina. E ainda hoje, mudadas as circunstâncias, o objecto específico do Instituto de Defesa Nacional é a avaliação da função portuguesa no mundo.
P. - Uma evolução curiosa do regime, repartida como o foi, por essas três fases distintas...
R. - Foi curiosa, sim. Porque permitiu testemunhar a independência que foi assumindo, conforme as circunstâncias, um ou outro dos elementos do sistema. Por exemplo, no regime que tinha a sua sede de poder na Presidência do Conselho, a economia - que era privada e não liberal - foi a meu ver o aparelho organizado que mais tarde veio a assumir grande importância para a definição de um novo clima em relação à política africana. Esse aparelho deu-se afinal conta - mais cedo que qualquer outro - do nível de risco que fora atingido e naturalmente procurou eliminar esses riscos. A doutrinação do europeísmo - que veio desaguar nas formas modernas de hoje - encontrou a sua primeira raiz nessa orientação que o aparelho económico, amparado pela organização intervencionista do Estado, pareceu tomar.
P. - E, por seu lado, também o aparelho militar...
R. - ... também se independentizou. O que veio a ter um papel fulcral na descolonização...
P. - Mas antes disso: como analisa a "independentização" do aparelho militar, um suporte tão essencial no modelo de Estado então vigente?
R. - Há com certeza muitos elementos que merecem consideração, mas destacarei aquele que significa uma mudança estrutural e, por isso, extremamente importante. Para qualquer fase da evolução do regime, as Forças Armadas foram importantes: quando se passou do modelo presidencialista para o do presidente do Conselho, manteve-se o simbolismo da chefia do Estado ser sempre de um oficial general do Exército ou da Marinha. Ora, durante o período que vai de 1961 até 1974, continuou-se a manter as Forças Armadas como elemento fundamental, concentrando a sua atenção nas cúpulas. Eram precisamente a sua solidez e a sua fidelidade que davam ao regime a ideia de segurança...
P. - Mas com a guerra colonial isso começou a ser subvertido...
R. - Durante os 14 anos de guerra, a sede orientadora da coesão das Forças Armadas passou das cúpulas para as bases, com a presença de oficiais milicianos que nelas introduziram novas concepções de vida e novos valores. Não se pode ignorar o sacrifício que implicou para os oficiais milicianos ou dos quadros uma guerra tão longa... O resultado foi que a orientação dessas Forças Armadas passou a depender mais das bases do que das cúpulas. É por isso que o regime se enganou quando procurou, já no fim, obter publicamente a declaração de fidelidade das cúpulas, um acontecimento que veio aliás a ter a maior das importâncias....
P. - Essa "independentização" foi o princípio do fim...
R. - Porque a cadeia de comando foi totalmente modificada e subvertida sem que tenha sido organizada outra. Com as consequências que depois se viram, no processo que se seguiu. Julgo que tudo isto - que exigirá mais estudo, maior análise -explica a função importante que teve a chamada "ala liberal", indispensável aliás num projecto destes, de instaurar um Estado de segurança nacional, porque justamente podia ser a ponta avançada que anunciasse a democratização, o Estado de direito. A partir de determinada altura, esta intervenção já não foi possível e é o próprio presidente do Conselho, Marcello Caetano, quem a abandona... Mas o que houve de mais importante nesta evolução foi a dissolução do império.
P. - Como olha para isso?
R. - Como alguma coisa de grande importância para os portugueses porque é a nossa história, a nossa vida, a nossa função no mundo. Mas há que tomá-la como uma batalha que se insere numa guerra que o euromundo enfrentou e perdeu. Todos os impérios da frente marítima europeia regressaram a casa com dramas imensos, a França, a Inglaterra, o Vietname. Relembrem-se coisas graves a propósito da Inglaterra, por exemplo: a independência da Índia, a divisão entre dois Estados que custou, em primeiro lugar, o assassinato do único santo laico da vida política que conheço...
P. - Ghandi...
R. - Custou a vida de Ghandi e ainda o preço de uns quatrocentos mil mortos para que a separação entre os dois Estados fosse efectiva.
P. - Não separa pois os acontecimentos portugueses de um contexto internacional?
R. - É nesse recuo geral que se insere o recuo português. Cada modelo tem a sua característica específica. Em Portugal - como em França, com o caso da Argélia - é também o aparelho militar que intervém mas já subvertido e até com o efeito que podemos chamar "de Naguib": na revolução do Egipto, também se manteve um general clássico à frente - o que certamente inspira confiança -, mas com a sede de comando nas bases... Para lhe responder, considero que esta dissolução da cadeia de comando teve uma das principais responsabilidades no desastre total que foi a descolonização.
P. - Falando agora mais concretamente do seu caso pessoal: também passou por uma evolução na forma como foi avaliando a questão colonial?
R. - A primeira percepção que tenho do ultramar foi adquirida na escola, na aldeia de Grijó, em Macedo de Cavaleiros: as paredes tinham mapas dos territórios ultramarinos e a ideia da grandeza do país aprendia-se na instrução primária. Depois, a minha formação em Direito deu-me uma concepção puramente normativista, uma visão legalista - o sistema das leis e a sua coerência, etc. - que tinha pouco a ver com a realidade.
P. - Quando descobriu a falta de sintonia entre essa formação e a realidade?
R. - Quando o almirante Sarmento Rodrigues - um homem por quem tenho grande admiração - me convidou, era ele ministro do Ultramar, para eu fazer um projecto de reforma do sistema prisional do ultramar. Eu dedicava-me na altura ao Direito Criminal e aceitei fazer esse estudo. Visitei então Angola, Moçambique, São Tomé e Guiné.
P. - Em que ano, recorda-se?
R. - Talvez aí por 1953.
P. - Foi uma viagem determinante?
R. - Foi, porque alterou a visão que eu tinha. E foi determinante pelo desafio: todos os portugueses que passavam por África adquiriam uma noção de responsabilidade, de dimensão, que a sociedade metropolitana não fornecia. Havia infelizmente uma falta de correspondência nas imagens dos que tinham conhecimento africano e dos que apenas tinham uma experiência metropolitana: o ultramar real não era reproduzido nas preocupações de quem estava reduzido à metrópole e isso não foi bom para o país. Foi este conhecimento "in loco" da realidade africana que me levou a inflectir a orientação da própria escola onde passei a vida como professor e que evoluiu - bem ou mal - para uma escola de Ciências Sociais e Políticas, abandonando a tradição que era apenas a de dedicação à administração colonial.
P. - Esse seu primeiro olhar sobre África foi de resto complementado por uma ida às Nações Unidas, integrado numa delegação portuguesa, em 1958...
R. - A delegação era chefiada pelo doutor Paulo Cunha - um professor de grande prestígio de quem tive a felicidade de ser amigo. Estive como delegado de Portugal à ONU no final da década de 50. Isso permitiu-me ter uma noção do enquadramento internacional, da evolução rapidíssima que se estava a verificar no mundo e, sobretudo, da necessidade de acompanhar um mundo que era cada vez mais interdependente e onde os pequenos países seriam cada vez mais exógenos, isto é, mais subordinados a variáveis externas que não podiam controlar.
P. - E não o afligia observar que em Portugal se continuava de olhos fechados perante esse enquadramento internacional, em particular perante uma realidade que, como acabara de verificar "in loco", não era a autêntica?
R. - Não posso dizer que afligiu, não é o termo exacto. Estimulou. A mim e a outras pessoas que tiveram grande participação. Estimulou tanto que alterei, como já referi, o sentido da estrutura e da função da minha escola... O que posso dizer é que contribuí para multiplicar muitas investigações em diversos domínios e também para que aparecessem - em numero apreciável - jovens que nessa altura se dedicaram a essas áreas e que hoje são valores das universidades portuguesas.
P. - Houve assim uma mudança na sua avaliação que veio a ter consequências?
R. - Houve. E foi ela que implicou em mim a adopção de atitudes reformistas...
P. - Dizia por vezes que "as reformas adiadas tornam as revoluções inevitáveis"...
R. - Pois, não sou um revolucionário e parecia-me que a razão devia ser um instrumento suficiente para que responsáveis e interessados - não apenas em causa própria mas nas questões do país - assumissem que uma reforma tinha de ser feita e mesmo acelerada.
P. - É isso que o leva a aceitar o convite de Salazar, em 1961, para ministro do Ultramar? Nunca estivera ligado a nenhuma organização política...
R. - Não fazia parte das minhas preocupações. A minha intervenção foi sendo feita através de escritos, aulas, lições publicadas - aquilo que é a vida normal de um professor.
P. - Nunca sentira a necessidade de se situar politicamente face ao regime, ou a vontade de intervir ?
R. - Não. Tinha a vida académica, trabalhara muitos anos como advogado de barra - o que depois vim a abandonar -, mas nunca participara em movimentos políticos.
P. - O convite de Salazar para a pasta do Ultramar surpreendeu-o?
R. - Na altura em que fui convidado, eu tivera já uma intervenção com alguma importância nas consultas que por vezes esse ministério me fazia ou à minha escola. Foi devido a isso, aliás, que fui integrado na delegação portuguesa à ONU. Parecia-me normal que professores de uma escola com aquelas características fossem chamados a dar pareceres, intervir em estudos ou mesmo em organismos consultivos do próprio ministério, como o Conselho Ultramarino, por exemplo.
P. - Mas não respondeu...
R. - Quando fui chamado, fui confrontado, em primeiro lugar, com algumas ideias minhas que entretanto se haviam tornado conhecidas: o dr. Salazar disse-me ter notícia de críticas que eu fazia nas aulas sobre a questão colonial. E eu respondi-lhe que o que se dizia nas aulas não era confidencial. Em seguida, houve um desafio ao meu sentido de responsabilidade cívica para implementar essas ideias... Entendi que não devia recusar, embora soubesse que não poderia contar com nenhum apoio político - a não ser o do próprio presidente do Conselho -, já que não pertencia a nenhum grupo.
P. - Mas Salazar manifestou-lhe de imediato esse apoio, quando o convidou?
R. - Manifestou. Foram então feitas algumas reformas que considerei importantes; se não fosse assim, não as teria concretizado...
P. - Poderia falar dessas reformas, das que conseguiu fazer...
R. - Não, não vou falar delas porque acho que isso pertence à crítica histórica. Direi apenas que o principal do que levei a cabo foi a revogação do estatuto dos indígenas. Fora um documento elaborado com as melhores intenções mas que se transformara num símbolo de discriminação.
P. - Essas reformas começaram logo a provocar reacções...
R. - Provocaram, como é normal. Mas há aqui um ponto que é curioso lembrar agora: eu não conheço nenhum doutrinador da unidade portuguesa que alguma vez tenha lastimado a independência do Brasil... Pelo contrário: todos achavam sempre que o Brasil era uma glória portuguesa. Ora o Brasil foi efectivamente um Estado tornado independente por acção dos próprios portugueses, que, ao verificarem a evolução da conjuntura, procederam a uma avaliação dos riscos para o regime de então - o regime monárquico - e fizeram a independência que salvaguardou a presença portuguesa e a sociedade integrada que ali se desenvolvia. Ora sempre me pareceu que um dos elementos fundamentais da concepção portuguesa era o de que as sociedades deviam ser integradas. Seria justamente a presença dos europeus que podia efectivamente consubstanciar o fermento da construção de uma sociedade civil.
P. - Nada disso foi afinal possível...
R. - Ainda hoje, quando a inquietação internacional é no sentido de levar a todo o mundo - e especialmente a África - a democracia e a economia de mercado, julgo que é necessário que se avalie muito bem que não há economia de mercado sem sociedade civil e que esta foi destruída com a expulsão da população europeia que ali estava radicada para ficar.
P. - Está a pensar na África do Sul e no que lá ocorre hoje?
R. - Estou. Repare o empenho com que neste momento todos querem que a população europeia ali radicada não se retire!
P. - Quando esteve na África ex-portuguesa, encontrou gente, população europeia, que também queria ficar?
R. - Encontrei não só europeus que queriam lá permanecer - e muitos deles eram independentistas -, como um grande entendimento sobre esta necessidade!
P. - Que modelo queriam?
R. - O modelo era sempre o da sociedade integrada, entendido no conceito de que tanto europeus como africanos eram todos naturais da mesma terra. Era a ideia que tinham. Mas, por razões que muita gente saberá explicar, este processo reformista ao qual eu metera ombros em África foi interrompido...
P. - Porquê? Na sua opinião, porque é que ele foi interrompido?
R. - Bem... eu tenho uma noção do "porquê"... Mas mais uma vez não lhe responderei. Sabe, é que não sou indulgente para com uma literatura - que aliás se tem multiplicado por aí, nos últimos tempos - à qual chamarei "de justificação"...
P. - Não lhe é pedido que se justifique mas que explique...
R. - ... é que essa literatura de justificação não só não contribui para o entendimento da História - que nunca passa por ela -, como vai ser necessário corrigi-la em muitos lugares e passos. É melhor que não se persista nessa autojustificação e que deixemos a História para os investigadores e para os críticos.
P. - Sai do Governo de Salazar em 1963, volta à escola e ao ensino. Entretanto, os anos passam. Tinha a noção de que o regime agonizava?
R. - Julgo que há muita gente que, como eu, conhece alguns acontecimentos e ocorrências a que o regime não parece ter prestado a devida atenção... Estou-me a lembrar do Congresso de Aveiro que não podia ser mais expressivo no seu diagnóstico da situação e da crise.
P. - Mas havia mais.
R. - Há um outro aspecto que foi muito importante: a fadiga da juventude. Foram anos de muito sacrifício. No início, é verdade que houve uma grande mobilização nacional, não se pode negar o que foi a adesão portuguesa à defesa do ultramar contra uma violência que se podia vir a transformar - como transformou - no motor da evolução. Mas houve autenticidade nisso... Só que o tempo é um grande dissolvente das coisas e catorze anos geraram um grande cansaço na juventude.
P. - Vamos voltar àquela interessante evolução que ocorreu também no aparelho económico?
R. - Julgo que esse aparelho económico fez um diagnóstico da gravidade do risco e mudou o centro de atenções. O europeísmo começa aí. Não o europeísmo histórico português, a contribuição portuguesa para a Europa, não é disso que estamos a falar. Mas o europeísmo que mais tarde se haveria de desenvolver e aparecer como opção inevitável começa com esse diagnóstico.
P. - E há todo o contexto internacional da época...
R. - Para compreendermos o que se passou em África, é também necessário referir isso mesmo: as guerras em Angola, em Moçambique, eram feitas por procuração, quem combatia eram de facto as superpotências, elas é que alimentavam os movimentos de libertação. Julgo que isso é hoje uma evidência que ninguém pode negar pelo facto de a guerra ter continuado até hoje com os mesmos apoios.
P. - Está a dizer que Portugal saiu e a guerra continuou?
R. - Estou. A guerra continuou até hoje com o efeito terrível que tem nas populações e na devastação dos territórios. Mas há outra evidência, também ela muito inquietante: as mudanças de apoios. Agora, a mesma potência que apoiou a UNITA durante tanto tempo apoia hoje o Governo de Luanda - o qual combateu durante anos. Naturalmente que isto corresponde ao realismo da política: os interesses são permanentes, os inimigos não... Isto demonstra claramente que as populações foram objecto de confrontos que em grande parte nada tinham a ver com os seus próprios interesses. Tudo o que temos vindo a lembrar teve assim importância para o desgaste da capacidade de um país pequeno, exógeno, à medida que a comunidade internacional mudava de estrutura...
P. - E essa estrutura foi alterada de forma acelerada! Temos sido contemporâneos de mudanças radicais...
R. - Portugal sofreu na vida de uma mesma geração uma mudança fundamental no que toca às suas fronteiras e à capacidade de as defender: durante a última guerra, as fronteiras de Portugal eram todas com soberanias ocidentais, excepto a China, que não pesava; na década de 60, passámos a ter umas doze fronteiras com Estados que foram tornados independentes e nenhum era de cultura ocidental, excepto a Espanha. Isso pressupõe uma mudança radical da função e da capacidade do país para enfrentar a conjuntura internacional. E, finalmente, após o 25 de Abril, Portugal ficou só com uma fronteira! E tudo isto teve que ser absorvido pela mesma geração que está hoje ainda viva.
P. - Que fazia no dia 25 de Abril de 1974?
R. - Quando saí do Governo voltei para a actividade que sempre tinha tido: o ensino. Nunca participei em nenhum movimento político, nem em qualquer actividade revolucionária. Tinha abandonado a actividade do foro, continuando como consultor, o que me dava mais liberdade para me dedicar ao ensino como eu gostava. No dia 25 de Abril, era esta a minha situação. Mas não fui rigorosamente surpreendido. Como muitos outros, previa o que iria acontecer. Soube do 25 de Abril pela rádio.
P. - O 25 de Abril foi uma revolução?
R. - Foi uma revolução. Dinamizada principalmente pelo novo braço militar e orientada por alguns objectivos que se anunciaram na altura...
P. - Os três "d": democratizar, desenvolver, descolonizar.
R. - Exactamente. Mas julgo que sem programa para as consequências das consequências.
P. - Já uma vez se referiu a isso num dos seus livros. O que eram para si as consequências das consequências?
R. - Escrevi-o no "Novíssimo Príncipe". Resumo-o agora dizendo que não havia um programa, ninguém tinha um programa. E, de todas as forças envolvidas, apenas o Partido Comunista tinha a percepção da situação internacional, tinha uma interpretação da História, tinha objectivos e programa. Portanto, ocupou um espaço vazio. A seguir, tudo se traduziu numa luta para recuperar a sociedade civil e o Estado de direito. E para finalmente se implantarem padrões que estavam mais de acordo com a cultura portuguesa e a Europa em que Portugal entrava como inevitável opção.
P. - Sentiu-se mais impressionado ou mais mobilizado pelo PREC que ocorria aqui, ou pelo que se passava em África?
R. - Pela intervenção que tivera no ultramar e pelo próprio objecto dos meus estudos, o que de imediato me chamou a atenção foi o descontrolo total da descolonização. Também temos aí muita literatura de justificação... Mas, com ela ou sem ela, nada diminuirá o desastre humano que se traduziu na perda de tantas vidas. Naturalmente que também o processo interior do país, a ameaça de marxização - que foi séria -, me preocupou.
P. - Não pensa que no que toca à questão da descolonização se tem frequentemente caído num maniqueísmo que impede qualquer análise?
R. - É por isso que refiro com algum desgosto essa tal literatura de justificação... Porque muitas vezes se pretende dar a impressão de que estamos perante uma divisão que se traduz em que o regime, até ao 25 de Abril, só teve decisões acertadas e depois disso decisões erradas, expondo até isto como uma espécie de mistério bíblico: os bons não são recompensados e os maus são-no. Ora isso não é verdade...
E não é verdade porque é preciso ver que a geração que fez a descolonização - e tem por isso que ser responsabilizada -, essa geração nasceu, cresceu e foi formada pelas escolas e pelos instrumentos de integração que vigoraram até ao 25 de Abril! O tempo, como ensinava Gilberto Freire, é tríbulo. É sempre o mesmo tempo, com três pontas, que são o passado, o presente e o futuro: o passado está sempre presente e o futuro já vive entre nós. Esta noção de responsabilidade colectiva dos portugueses tem de ser assumida, ninguém é inocente neste processo.
P. - Em que momento destes últimos vinte anos gostaria de se atardar? Qual destaca com maior ênfase?
R. - Há vários certamente. Uns mais depressivos, outros mais animadores. Em todo este longo processo destaco, como mais importante, o momento da Aliança Democrática e da liderança de Sá Carneiro.
P. - Porquê?
R. - Porque foi um ponto decisivo da recuperação de valores fundamentais, da sociedade civil, de um julgamento equilibrado da posição do país na comunidade internacional e da necessidade de novas opções.
P. - Foi essa avaliação que fez do espírito da AD e da personalidade de Sá Carneiro que esteve na origem da sua entrada na política activa? Participou como independente nas listas da AD.
R. - Foi dentro dessa atmosfera que aceitei esse convite. Mas gostaria de dizer o seguinte: eu praticamente não conheci o dr. Sá Carneiro, conversei com ele muito vagamente, apreciei-o de longe e, portanto, o meu julgamento pessoal não tem nada que ver com um trajecto comum, não tem nada a ver com isso... O meu julgamento residiu na importância que teve para a época a sua intervenção e o seu projecto.
P. - Foi convidado pelo CDS?
R. - Fui. Foi por intermédio do CDS que procurei dar a minha contribuição e pela primeira vez entrei numa organização política. Mas não lhe vou dizer se estou arrependido ou não...
P. - Agora já se antecipa, pela não resposta, àquilo que pensa que irão ser as perguntas!
R. - Sou fiel aos meus compromissos e julgo até que temos dado uma contribuição apreciável para a estabilidade e evolução da vida portuguesa.
P. - Não muito correspondida pelo eleitorado?
R. - Gostaria que tivesse sido melhor correspondida. Mas não é isso que me impede de pensar e de dizer que a nossa contribuição tem sido importante.
P. - Depois foi líder do próprio partido. O que retém hoje dessa experiência?
R. - Passei a compreender melhor algumas coisas que só conhecia teoricamente....
P. - Como viu a nossa integração na Comunidade Europeia? Havia outra alternativa?
R. - Penso que Portugal não poderia deixar de aderir a esse projecto.
P. - Não podia?
R. - Não. Trata-se de um país exógeno, com sinais de Estado exíguo. Uma situação comum a muitas dezenas de Estados participantes da ONU. Isto é uma coisa. Outra, diferente, é o entusiasmo com que, de cada vez que a Comunidade dá um passo, considerar-se como "não europeus" aqueles que não acompanham esse passo... Portugal deve acompanhar a marcha da Comunidade mas tem de defender a sua identidade, a sua autonomia, a sua posição. Uma situação que deve mobilizar a solidariedade dos pequenos Estados europeus.
P. - A identidade está em risco?
R. - Não. É preciso dizer que não. Porque um país que resiste a estas mudanças que temos vindo a referir, numa mesma geração, que resiste à perda do conceito estratégico nacional e vive sem ter conseguido formular outro dá um extraordinário exemplo de capacidade e de identidade.
P. - Quais são as suas preocupações a respeito da Europa?
R. - O pior que pode acontecer à Europa é que se venha a estabelecer um directório ou uma hierarquia de Estados e há vários sinais de que isso possa vir a ocorrer. Sempre que tal aconteceu, não foi bom nem pacífico para o convívio entre Estados europeus... Não é bom o predomínio que os grandes países europeus estão a tomar nas decisões, à margem dos tratados, nem a independência que tomam na política externa, sem necessidade de um acerto dessa política como impõem os tratados em vigor.
P. - Por exemplo?
R. - Algumas intervenções, como a da Alemanha no reconhecimento das repúblicas da Jugoslávia, que julgo ter influído o desastrado processo que se seguiu; a reunificação da própria Alemanha; a fixação das suas fronteiras no Oder-Neisse; o acordo com a Rússia para a retirada das suas tropas; a venda que fez de uma esquadra à Indonésia. São exemplos de decisões tomadas sem prestar atenção às obrigações que dizem respeito à política externa comum.
P. - Esses exemplos não ilustram precisamente a impossibilidade da União Europeia se entender numa política externa comum?
R. - O que principalmente mostra é que, como referi, é necessário não alienar a capacidade de cada Estado -independentemente do seu poder - impedir que a situação na Comunidade possa ser instrumentalizada pelos mais poderosos.
P. - Com tais exemplos não pensa que está em crise o Estado nacional?
R. - O que está em crise é o Estado soberano e não o nacional. Uma questão que se tornou aguda desde a fundação das Nações Unidas. Os Estados nacionais são muito poucos no mundo mas a nação é um valor tão importante que os Estados adoptam com frequência um projecto nacional, isto é, o objectivo de criar uma solidariedade de natureza nacional. A crise da soberania dos Estados foi resolvida no Bloco Leste com a imposição da doutrina da soberania limitada. No espaço atlântico, essa solução foi sempre condenada, apelando-se à cooperação e ao repúdio da institucionalização da hierarquia dos Estados.
P. - Para terminar este capítulo: sem perda dos valores fundamentais, o que temos de ser capazes de enfrentar?
R. - Em relação a Portugal, julgo que não pode ser abandonada a vocação atlântica. Mas não é com critérios economicistas que ela deve ser avaliada... Caiu um regime político, caiu uma estrutura imperial mas não se afundaram os territórios nem desapareceram as gentes; não foram extintos os usos nem os costumes, não se perdeu a língua. O sincretismo e a própria miscigenação continuam, a área está lá. O que é necessário é reconstruir um novo modelo de convívio. Por isso mesmo ligo uma importância muito grande ao projecto da comunidade dos povos de expressão oficial portuguesa...
P. - Uma iniciativa do Brasil...
R. - É uma iniciativa do Brasil que está em desenvolvimento. Penso que devemos acompanhá-la; tenho dado o apoio que posso. Parece-me tratar-se de um projecto importante para equilibrar a função de Portugal... espero que em termos que não sejam puramente poéticos, já que esta situação é justamente a que nega ao nosso país um destino periférico, que é um conceito económico. Trata-se agora de um destino de país de fronteira ou de articulação, se quiser. O projecto deve ser estimulado, porque enriquece a Europa e enriquece esses novos Estados. E porque a presença portuguesa seria neste contexto a de uma soberania de serviço e não uma soberania de domínio, podendo, por isso mesmo, desempenhar uma grande função e dinamizar esse espaço.
P. - Para terminar: como sentiu, na sua vida, a passagem de um regime político para outro? Ou melhor, como lhe foi possível passar tão bem de um para o outro?
R. - Seguindo um conselho de Charles Morgan: é preciso ser como o eixo da roda que acompanha a roda mas não anda.
P. - O que significa...
R. - ... o que significa que há valores que nunca podem ser abandonados.