André Goçalves Pereira

Entrevistas conduzidas por Maria João Avilez -  "Público" (1994)

ENTREVISTA COM ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA

 

Advogado e professor catedrático em Direito Internacional, é uma "figura". E quem o conhece bem sabe que gosta muito de o ser. Foi um dos alunos dilectos de Marcelo Caetano - formou-se aos 21 anos em Lisboa com 18 valores -, por quem foi convidado para substituir Franco Nogueira na pasta dos Negócios Estrangeiros. Embora tivesse recusado, manteve-se até ao fim amigo do então presidente do Conselho, com quem trocou diversa correspondência e a quem haveria de encontrar com alguma frequência, durante os anos da passagem pelo poder do "marcelismo".

Espectador atento e interessado do fenómeno político, nunca porém abriu mão do seu "precioso" estatuto de independente, e foi nessa qualidade que aceitou o convite do seu amigo Francisco Balsemão para conduzir a política externa portuguesa nos anos de 1981 e 1982. Uma excepção, numa vida consagrada profissionalmente à advocacia e à universidade, e nas coisas da vida, à musica, à leitura, ao culto dos amigos.

Diz-se um "bon vivant" - é-o certamente -, mas a sua inteligência e a sua cultura esbarram na modéstia da definição. De tal modo que ele próprio é capaz de confessar a "vaidade" como o seu pior defeito. Mas quem não o aprecia - ou será afinal quem não o conhece? - coloca-lhe a "arrogância" em plano superior à "vaidade"...

Com um rigor sereno, alguns desabafos e umas boas histórias pelo meio, André Gonçalves Pereira é hoje, nesta série, o cicerone dos últimos vinte anos em Portugal.

PÚBLICO - Apesar de não se ter evidenciado na luta política, e desde sempre se manter como "independente", olhou sempre com uma atenção interessada o fenómeno político e nunca se alheou. Por isso mesmo: como viu o advento de Marcelo Caetano, a sua chegada ao poder?

ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA - Em primeiro lugar, tenho alguma dificuldade em ser totalmente imparcial em relação ao Marcelo Caetano...

P. - Isso já é interessante...

R. - Faço justamente esta advertência porque suspeito de que seja já uma verdade com algum "enfoque" sentimental e afectivo. O Marcelo desempenhou um papel importante na minha vida no plano académico. Convidou-me para assistente e estimulou-me a fazer o doutoramento. E não só isso. Sendo um homem extraordinariamente diferente de mim próprio - era um paradigma de austeridade e de um certo puritanismo -, via com bons olhos este aspecto lúdico do qual eu sempre rodeei as coisas e a vida. E por outro lado, mesmo quando ambos tivemos divergências mais ou menos sérias, nunca me retirou a sua amizade.

P. - Mas essa espécie de preâmbulo que entendeu fazer não o impede de me dizer o modo como "olhou" a chegada dele a São Bento...

R. - Vi-a com o mesmo entusiasmo com que, penso eu, toda a população viu, ou quase toda. Lembro-me de que fui com o Francisco Balsemão assistir ao seu discurso de posse. É preciso compreender que, para a nossa geração, era quase difícil admitir a ideia - gostasse-se ou não dele - de que um dia o Salazar desapareceria... Era como se tivéssemos um quadro pendurado na parede, que estava lá desde sempre e estaria... toda a nossa vida. No fundo, a verdade é que já ninguém era simpatizante do regime nos anos 60: uns faziam carreira por ele, outros opunham-se, mas ninguém simpatizava. Simplesmente, tudo aquilo parecia uma inevitabilidade! De tal forma que a escolha de Marcelo, o seu discurso de posse, os primeiros meses da sua actuação, pareceram de facto poder abrir as portas que estavam fechadas. E abri-las de forma pacífica. Durante um ano, ano e meio, partilhei o grande entusiasmo do país pelo Marcelo...

P. - Levando esse entusiasmo ao ponto de estar disponível para colaborar directamente com ele?

R. - Não, justamente. Nunca foi meu propósito exercer nenhum cargo político.

P. - Continuava a ver Marcelo Caetano apesar das tarefas governativas?

R. - Sim. Mantivemos intactas as nossas relações pessoais, com o mesmo afecto e a mesma proximidade. Aliás ele nunca deixou de se interessar pela Faculdade, pela qual tinha um amor real. E eu era o elo de ligação, quando ele queria saber o que se passava. Via-o normalmente todos os meses...

P. - Onde?

R. - Sempre em sua casa, nunca fui a São Bento. Por vezes almoçávamos em sua casa, e mais raramente era ele que vinha almoçar à minha. Mas os encontros mais frequentes eram em sua casa, depois do jantar. Sempre a sós, e sempre com grande simplicidade.

P. - Justamente sabendo-se - à luz do que ocorreu nestes últimos vinte anos - que veio a aceitar funções governativas depois de 1974, num dos governos da AD, o que o levou então a recusar ao seu amigo Marcelo Caetano a colaboração que se sabe que ele lhe pediu?

R. - Em primeiro lugar, um certo desejo de independência pessoal. Não nego que talvez um pouco exacerbado e... confortado pela capacidade de angariar subsistência por mim próprio, sem recurso a apoios políticos, o que sempre me levou a desconfiar e a retrair-me em relação a adesões políticas.

P. - A desconfiar até esse ponto?

R. - A política pode, sem dúvida, ser uma acção nobre, mas na maior parte dos casos é uma acção subordinada em que se recebem ordens e se fazem coisas que nem sempre corresponderão àquilo que pensamos ou que desejaríamos fazer... Sempre tive o desejo ou o gosto de fazer e dizer aquilo que me apetece...

P. - Habituou de resto as pessoas a isso mesmo! E por vezes com algum excesso...

R. - ... Nesse sentido nunca me interessou uma carreira política. E no caso de Marcelo Caetano, a relação próxima que tinha com ele era apesar de tudo marcada pela distância de uma geração. O que fazia com que fosse igualmente marcada por um certo respeito, o que era natural. Portanto, com tudo isto, se eu tivesse aceite ter sido seu ministro, passava indiscutivelmente a ter um patrão. Teria sido a única vez na vida! Foram estas as razões que me levaram a recusar o convite que ele me fez.

P. - Como foi esse convite?

R. - Quando em 1969 Franco Nogueira saiu do Governo, Marcelo Caetano convidou-me para os Estrangeiros, tinha eu então 33 anos. Era aliciante, e os que me conhecem sabem que não sou de modo algum insensível às honrarias e à possibilidade de desempenhar um lugar na vida social. Mas, para além das razões que acima referi, já nessa altura - passado que era um ano da chegada do "marcelismo" ao poder - começava a ter fundadas dúvidas sobre a capacidade do regime em resolver o problema colonial. E como ministro dos Negócios Estrangeiros não via bem qual era a política que nesse contexto eu iria executar.

P. - Como reagiu o presidente do Conselho?

R. - Aceitou muito bem as minhas objecções. Embora acrescentasse: "Bem, se as pessoas boas não querem, não se admirem depois de eu ter colaboradores maus!" Mas nunca alterou nem o seu trato nem a sua relação comigo, o que não posso deixar de registar.

P. - Só um parêntesis, para frisar aí um aspecto psicológico que é curioso: preferiu nessa altura desperdiçar a glória de aos 33 anos ser titular do Palácio das Necessidades e substitui-la pela glória de não ter um patrão... Porquê?

R. - Essa primeira glória era apesar de tudo relativa: eu já era conhecido nesse tempo e via por isso alguns inconvenientes em aceitar o cargo. E também não me escapou o facto de, sendo possivelmente uma janela aberta para a dita glória, ela poder vir a comprometer uma vida que estava no bom caminho, mas no seu início. Os motivos não foram assim excessivamente "nobres", houve alguma precaução se quiser... Mas não chamo "glória" a ser independente - prefiro dizer ausência de sujeição -, o que vejo é "desglória" em não o ser.

P. - Surge a Ala Liberal, um tempo depois a Sedes. Mas o regime vai-se mantendo. Isso foi agudizando a sua descrença, ou não?

R. - O ponto de viragem para muitos - e para mim - foi inegavelmente a reeleição de Américo Thomaz. Fui dos que disse inúmeras vezes a Marcelo Caetano que a única solução seria ele assumir a Presidência da República, nomeando um presidente do Conselho da sua confiança. Eliminaria assim o único obstáculo jurídico e político à sua liberdade de acção. Não duvido de que se tivesse tido essa liberdade de conduzir as coisas - mesmo que de forma cautelosa - no sentido da descompressão, e sobretudo da resolução da questão africana da única forma que infelizmente aparecia como possível...

P. - Qual?

R. - A curto ou a longo prazo, com maior ou menor ligação a Portugal, a cessação da soberania portuguesa em África. Para compreender porque é que Marcelo Caetano não o quis, há evidentemente várias interpretações...

P. - A primeira terá sido a de que ele não quis enfrentar - e combater - Américo Thomaz?

R. - Em parte. Mas é preciso ver que tudo isso se insere num conceito mais vasto: Marcelo era acima de tudo um intelectual e um extraordinário professor da Universidade. Todos os seus alunos, independentemente dos seus pontos de vista políticos, o reconhecem. Mas, diferentemente de Salazar - que era um realista e por vezes um cínico -, Marcelo Caetano era um intelectual e um jurista. E, muito mais que Salazar, era, sobretudo de um ponto de vista jurídico, um dos teorizadores do Estado Novo. Como tal, acreditou na estrutura jurídica que criara; e mais, acabou por se enlear de tal modo nela que foi incapaz de a romper, chegando ao extremo de atribuir importância ao cargo de Américo Thomaz: o cargo teria, a pessoa não tinha nenhuma! E assim, Marcelo procurou até ao fim apoios dentro de um sistema que ele próprio criara, quando - e a evolução posterior veio a demonstrá-lo - só o sufrágio universal lhe poderia ter servido de apoio.

P. - Nunca lhe fez ver isso mesmo?

R. - Várias vezes. E aconselhei-o a apresentar-se à candidatura desse sufrágio em 1971. Não quis, embora na revisão constitucional de 1958 o tivesse defendido. Lembro-me mesmo de ele me ter dito, nesse mesmo ano, que "se fôssemos para uma eleição inteiramente livre, provavelmente o Mário Soares seria eleito Presidente da República" - facto que aliás já tive ocasião de contar ao actual Presidente.

P. - Nessas conversas também falavam da questão colonial? Havia a noção clara de que essa era "a questão"?

R. - Devo dizer, e isso pode ser uma surpresa, que se havia um tópico principal nas nossas conversas, ele era a universidade: tomava isso muito a peito, interessava-se, queria saber dos professores, de alguns alunos, etc. Mas claro que também falávamos de África. Já em 1961, quando começou a guerra e quando Goa foi invadida, tive, como a maior parte do país, uma reacção hostil. Aliás ainda hoje persiste a discussão de saber se o "povo" apoiava ou não a questão africana, se estava contra, etc. O que houve foi uma evolução... E com o andar dos tempos e o evoluir do contexto internacional - ao qual eu era particularmente sensível -, a opinião foi mudando.

P. - Em 1969 e por aí fora, pensava já que a nossa opinião pública...

R. -... Era já muito pouco favorável. E muitas vezes discuti isso com Marcelo. Simplesmente, entrávamos aí num círculo vicioso: eu argumentava com o cansaço, a evolução internacional, etc; ele contra-argumentava que tinha estado em África, referia o entusiasmo com que fora recebido... Um dia, disse-lhe que só haveria uma maneira de saber de facto o que o povo pensava: perguntar-lhe directamente! Contrapôs que "seria quebrar o mito". E acrescentou que se, por absurdo, houvesse um referendo para saber se Portugal devia ou não continuar em África, isso significaria a saída de Portugal... Claro que eu reconhecia a realidade deste dilema e por isso esta questão, não sendo a única como já referi, era uma das que discutíamos sempre. Para além da Faculdade, Marcelo também gostava de saber o que se passava cá fora, na vida social. E tudo o interessava, já que as pessoas naquela situação têm sempre dificuldade em obter informações fidedignas.

P. - Entretanto o regime cai. Na sua opinião, cai pela questão colonial?

R. - Com certeza. Mas gostava de referir um factor que marca a evolução do próprio Governo do professor Marcelo Caetano: ele passou seis anos preocupado, temendo a hipótese de um golpe militar de direita. O próprio Américo Thomaz, antes de lhe dar posse, tinha-o mais ou menos anunciado, quando avisou que se a política ultramarina fosse alterada, as forças armadas interviriam. Marcelo viveu alguns anos preocupado com a direita e acabou por cair através de um golpe militar de esquerda! É muito fácil criticar hoje a sua timidez ou a sua falta de coragem, mas ninguém sabe se de facto não teria ocorrido esse golpe de direita com uma inflexão mais rápida na política colonial. Ele, pelo menos, estava convencido disso. E só no último ano se terá apercebido da evolução que entretanto se operava nos quadros das próprias Forças Armadas.

P. - Que pensou no dia 16 de Março de 1974?

R. - Dois ou três dias depois escrevi uma carta ao presidente do Conselho dizendo-lhe, em duas palavras, que tudo aquilo tinha acabado e que o melhor que ele faria era sair. E regressar à Faculdade para discutirmos Direito Administrativo. Passados três dias, responde-me dizendo-me... que "gostara da ideia de voltar a discutir coisas jurídicas." Mas rematava assim: "A nossa diferença não é de opinião mas de posição. Se estivesses no meu lugar não podias com tanta facilidade sair de São Bento e voltar para a Faculdade." Aliás, naquela altura ele já tinha apresentado a sua demissão ao almirante Thomaz, que a recusou. Venceu uma vez mais o juridismo, Marcelo foi incapaz de bater com a porta porque acreditava na força institucional do Presidente da Republica. Creio que nos últimos dois meses estava já convencido de que iria cair, vítima do Movimento dos Capitães. Só não sabia nem o dia nem a hora.

P. - E você, sabia?

R. - Tinha informações vagas. Fui durante dez anos professor no Instituto de Altos Estudos Militares, o que me fez conviver com muitos dos capitães de Abril: Vítor Alves, Firmino Miguel, Costa Brás e muitos outros. Apercebi-me claramente de que o ambiente nos jovens quadros não era favorável: talvez não tanto ao regime, mas sobretudo à continuação da guerra. E que as coisas iriam estalar. Além de que a pressão internacional era impossível de manter.

P. - Como analisa os dois anos do PREC [Período Revolucionário Em Curso]? As vitórias e as derrotas de uns e de outros?

R. - Passaram-se duas coisas simultâneas: o MFA [Movimento das Forças Armadas] fez um pronunciamento militar vitorioso; e o Partido Comunista fez uma revolução - com notável destreza -, aproveitando o facto de ser a única força organizada que estava no terreno. Essas duas linhas não eram coincidentes, ou não eram totalmente coincidentes. Havia muitos oficiais que não eram de obediência comunista, embora muitos outros o fossem. À medida que se dá a clivagem entre as duas linhas (a revolução foi muito mais rápida do que os autores do golpe jamais imaginaram), sucedeu que outras forças foram surgindo na sociedade.

P. - Refere-se à Igreja, aos outros partidos políticos?

R. - Refiro-me em primeiro lugar à Igreja Católica, cujo único objectivo era reconciliar-se com a democracia e fazer esquecer a sua ligação ao regime anterior. É evidente que a Igreja, que quer estar sempre de bem com o poder, por razões respeitabilíssimas que consistem na liberdade da sua mensagem,teve de se virar contra o poder de então. A partir do 28 de Setembro e sobretudo, do 11 de Março, achei que a evolução não seguiria aquele rumo revolucionário.

P. - Nunca lhe ocorreu partir para o estrangeiro?

R. - Não. Nunca pus seriamente a hipótese. Continuei aqui, por vezes com algumas dificuldades, mas sem grandes preocupações. Não tendo tido actividade política no anterior regime, não receava sanções. Em todo o caso, sublinho que muitos dos meus amigos foram presos e que a grande maioria emigrou para o estrangeiro. Eu fui ficando: nunca me pareceu que Portugal tornar-se-ia um país comunista, não só por razões geopolíticas, mas também pela natureza do povo português.

P. - Conhecemos outros povos cuja natureza também não...

R. - Claro, mas era preciso uma coisa e outra.

P. - De facto, a revolução morre a 25 de Novembro...

R. - No 25 de Novembro, dá-se sobretudo a derrota da extrema-esquerda anárquica e do Partido Comunista, porque, pela primeira vez na história da Internacional Comunista, o PC comprometeu-se com alguma dessa extrema-esquerda, um erro histórico único! Mas não se pode falar em vitória porque não houve a "vitória" de ninguém. Isso ficou para discutir depois... Eliminou-se, sim, o excesso e o radicalismo. O resto levou dez anos a digerir. Gostaria ainda de acrescentar o seguinte: o 25 de Novembro foi, a meu ver, o fruto de uma realidade anterior: as eleições para a Constituinte...

P. - Facto quase incrível num processo revolucionário!

R. - É que não há, nem houve nunca, um PREC no mundo com eleições livres pelo meio!

P. - E aí chegamos a Costa Gomes?

R. - Exactamente: ainda ninguém compreendeu como é que o homem que permitiu que essas eleições se realizassem veio a ter depois aquele comportamento... São coisas inexplicáveis para mim. Mas a partir do 25 de Novembro, a palavra passou a ser, sobretudo, dos eleitores. Nesse sentido, foi o fim da revolução.

P. - Houve uma troca de legitimidades...

R. - Daí eu atribuir uma importância verdadeiramente extraordinária às eleições do dia 25 de Abril de 1975! Repare que depois disso nenhum processo revolucionário seria legítimo. E até lá o próprio PREC era mais legítimo do que o regime anterior - pura e simplesmente uma ditadura sem apoio popular. Ora é essa legitimidade popular e revolucionária que se esgota quando é substituída por uma legitimidade popular mas... eleitoral.

P. - Mas antes disso crepitou um bom par de meses...

R. - É certo que os piores momentos ocorrem depois das primeiras eleições. Esse paradoxo é porventura explicado pelo desespero e pela necessidade de correr para a frente. A verdade é que a partir das eleições de 1975 não tive dúvidas de que o caminho estava irreversivelmente traçado.

P. - Considera Costa Gomes, por tudo isso, a personalidade mais enigmática ou contraditória de entre os militares de Abril?

R. - Uns meses antes do 25 de Abril, lembro-me de ter perguntado ao Marcelo Caetano o que "era um movimento de capitães de que se falava, uma coisa que andava aí no ar..." E ele respondeu-me: "Sim, há por aí qualquer coisa, mas o Costa Gomes tem isso controlado e tem-me dado conta do que se passa"... De facto, o general Costa Gomes - a quem todos reconhecem qualidades intelectuais e de aptidão profissional - é uma figura enigmática: como compreender que um homem que a certa altura aparece totalmente identificado com o Conselho Mundial da Paz e outras forças que eram puros instrumentos da então União Soviética, foi o mesmo que permitiu que houvesse eleições em Portugal... É ele que põe os pés à parede, vai para a frente com a data e concretiza as eleições... Porque o problema era justamente saber se após o 11 de Março essa data se manteria... Curiosamente, o país deve-lhe muito, embora não seja um elemento da minha galeria pessoal de heróis...

P. - Sei que ia a África com alguma frequência. Continuou a ir depois do 25 e Abril, antes das independências?

R. - Estive em Angola várias vezes em 1974 e 75 e também em Moçambique. Tinha lá amigos e interesses. Pude aperceber-me do que era inevitável: a partir do momento em que o 25 de Abril foi um movimento militar e que as Forças Armadas foram o seu agente, perdeu-se a hipótese de uma descolonização pacífica e tranquila. A condição da descolonização era uma presença militar que pudesse garantir algum peso à parte portuguesa nas negociações.

P. - Aliás o rosto institucional que nos surge no dia 25 de Abril é o de Spínola, que se sabia que não defendia uma descolonização como a que veio a ocorrer e que era totalmente contra essa "inevitabilidade"...

R. - Acontece que o plano de Spínola, honroso mas utópico, é, em 1974, totalmente impossível. Não o seria porventura se tivesse sido esboçado aí pelos anos 50, uma evolução para uma "commonwealth" - como aliás curiosamente Marcelo Caetano havia proposto quando defendeu, a partir de 50, uma solução federal para o conjunto do império colonial português.

Recuso-me sempre a fazer a história do que "teria sido", mas se tivesse havido uma maior permanência das Forças Armadas no terreno, não havendo o descalabro que efectivamente entregou o poder a movimentos de libertação por vezes pouco vitoriosos, a evolução teria sido mais moderada. E teria sido salvaguardada uma independência em que a única força não fossem movimentos de obediência marxista. Em resumo: se não culpo exclusivamente os militares e os políticos dessa época, também não deixo de considerar que procederam - e aceitaram tudo - com demasiada "leveza".

P. - Andando para a frente, pós-PREC: porque aceitou o convite de Francisco Balsemão para o mesmo cargo que havia recusado a Marcelo Cateano? Nem sequer pertencia ao PSD...

R. - Não pertencia, embora desde o início estivesse mais próximo desse partido...

P. - ... Aliás, o PPD veio ao mundo no seu escritório de advogado...

R. - Foi constituído em parte no meu escritório. O Francisco Balsemão tinha lá gabinete, o Sá Carneiro e o Magalhães Mota iam lá muitas vezes. E quando estavam a redigir os estatutos, de vez em quando falavam-me pelo telefone interno a pedir ajuda sobre as questões jurídicas. Eu conhecia o Sá Carneiro da Faculdade e mais tarde, já como advogado, foi meu correspondente durante muitos anos no Porto.

P. - Sá Carneiro nunca o convidou para o Governo da AD?

R. - Falou-me do assunto... Embora adiantando sempre que havia o problema de eu ser independente e isso suscitar reacções dentro do PSD. Apercebemo-nos ambos de que o único lugar que me poderia interessar seria o dos Estrangeiros, mas estava reservado ao Diogo Freitas do Amaral, no âmbito do acordo entre o PSD e o CDS. Nunca mais pensei nisso e continuei a colaborar com Sá Carneiro durante esse ano, nalguns projectos jurídicos que ele me pedia. A verdade é que já desde o tempo do convite de Marcelo a ideia me tentava. Tinha alguma experiência na matéria, sou professor de Direito Internacional, dou prioridade às questões internacionais. E não escondo que, não sendo a pessoa mais modesta do mundo, o facto de vir a desempenhar o cargo não era desprezível...

P. - Até que surge o terceiro convite, o de Balsemão... Às três é de vez?

R. - Francisco Balsemão começou por convidar-me - e insistiu - para as Finanças, o que recusei. Teria mais dificuldades em preenchê-lo, tanto mais que sucederia ao professor Cavaco Silva. Aceitei então os Negócios Estrangeiros, sabendo que o meu amigo Francisco Balsemão nunca me criaria problemas. A nossa relação foi sempre impecável, nunca tive a sensação de ter um "patrão", mas um amigo cuja posição era simplesmente mais importante do que a minha. E que eu respeitava.

P. - A AD estava fragilizada e dividida pela morte de Sá Carneiro, Francisco Balsemão não fora uma escolha pacífica. Tendo em conta que iria exercer o seu cargo em muito piores condições políticas, o que contou em última análise foi a sua amizade por ele?

R. - Embora não ignorasse que essas condições eram evidentemente mais difíceis, não me assustei. Aliás recordo que nessa altura a autoridade dos governos era menor: não só não tínhamos maioria absoluta de um partido, como havia o Conselho da Revolução - que veio justamente a desaparecer nesse período, graças à acção do então primeiro-ministro. Mas tínhamos sobretudo condições financeiras gravíssimas, não havia fundos europeus nem sequer um mínimo de estabilidade orçamental.

P. - Acha que hoje ainda não se reconhecem essas dificuldades e que a tendência é para continuar a catalogar os Executivos de Balsemão como de "péssimos"?

R. - Acho que isso é natural na vida política! Se as pessoas não reconhecem sequer as qualidades dos que estão, quanto mais as do que já estiveram...! Não se pode ir para a política à espera de gratidão. Eu por exemplo fui por interesse pessoal... Não fui por achar que tinha um "papel" na História ou que tinha de me "sacrificar" - custa-me até ver pessoas inteligentes virem a público invocar "sacrifícios" ou "missões"! Tive o meu orgulho em ser ministro dos Estrangeiros de Portugal, um país pequeno e que estava em dificuldades. Mas uma vez em funções - a função faz o homem - procurei sempre identificar-me com aquilo que eu achava ser o interesse nacional. Certamente que cometi erros e que as minhas orientações terão sido certas ou erradas... Mas nunca se tratou de uma missão de sacrifício.

P. - Vamos por partes: falou de interesse pessoal. Sendo aquilo que se chama uma pessoa rica, tendo um nome indiscutível na advocacia e outro, de peso, na universidade, o que o motivou então? Uma conjugação entre a vaidade e o gosto pelo Palácio das Necessidades?

R. - Em primeiro lugar, isso do "rico" necessita de aspas: em Portugal ninguém que viva do seu trabalho é "rico". Depois, o facto de ser professor deu-me muito mais trabalho do que ser ministro... Digamos então, para lhe responder, que o facto de ter desempenhado funções ao nível internacional me fez sair de uma certa mediania. Como não sou modesto, gostei.

P. - O que ficará escrito da sua passagem pelas Necessidades?

R. - Pouco, sejamos claros. Havia, ao tempo, na política externa duas tarefas essenciais a fazer: a reconciliação com os países africanos de língua oficial portuguesa e as negociações da adesão à CEE. Havia mais, naturalmente, mas as prioridades eram estas.

P. - Como pensa que se saiu delas? Começando por África...

R. - Empenhei-me muito, fiz o possível, mas devo dizer que cometi alguns erros: usei por vezes de alguma susceptibilidade pessoal no tratamento das questões. Não voltaria a fazê-lo...

P. - Por exemplo?

R. - Por exemplo quando fui a Moçambique com o então Presidente Eanes, achei que o Presidente Samora Machel estava a tratar Portugal de alto, com um desprezo, uma sobranceria, que me desagradaram. Reagi de uma forma porventura mais emocional do que política. E a certa altura aquela tarefa que era a mais importante, a do lançamento em Angola e Moçambique, e também nos outros países lusófonos, das bases para um novo entendimento, pareceu-me ser de tal forma espinhosa e difícil que não tive tempo (no sentido da duração do Governo) nem disposição para a cumprir como devia. Reconheço que houve coisas que poderia ter feito de outra forma. Talvez fosse um mal eu não ser um político profissional... Dou outro exemplo: o Presidente Eanes, depois da visita a Moçambique, foi a Angola na primeira visita de Estado de um Presidente português.

P. - Lembro-me de que você não foi...

R. - Não, não fui. Temendo precisamente que se repetisse em Angola o que sucedera em Moçambique. Ora estes motivo pessoais deviam evidentemente ter sido subestimados. Hoje tenho pena de não o ter feito.

P. - Nunca se deu bem com o general Eanes pois não?

R. - Não é bem isso... Julgo ter em relação a ele o mesmo reconhecimento que têm todos os portugueses: no primeiro mandato concretizou a tarefa inestimável de trazer as Forças Armadas para a vida democrática normal. Nesse sentido, o seu papel foi determinante. Além disso, foi alguém que me tratou sempre com extrema cortesia enquanto estive no Governo. Dizia geralmente "senhor professor" em vez de "senhor ministro".... E eu, como evidentemente tinha muito mais gosto em ser professor do que ministro, gostava...

P. - Mas quando se critica Eanes não é por ele não ser cortês... São as diplomacias paralelas, a ambiguidade...

R. - Eu já lá ia... É verdade que durante todo o meu tempo de governo continuaram a desenvolver-se essas diplomacias paralelas às quais ele não era alheio. Por outro lado, verifiquei durante essa viagem a Moçambique que, sendo ele um homem íntegro, tinha uma enorme falta de capacidade de decisão...

P. - É a tal ambiguidade...

R. - Sim, uma certa ambiguidade. Mas por outro lado nunca me passou pela cabeça que houvesse qualquer ligação entre ele e o Partido Comunista, como se aventou. O que houve foi a tentativa dos comunistas de se encostarem ao general Eanes. A conjugação de algumas circunstâncias excepcionais fizeram-no chegar a Presidente - o que nada, nem no seu currículo, nem na sua personalidade, indicava...

P. - Não se pode ser mais claro. E o "soarismo"?

R. - O dr. Mário Soares é um caso humano e afectivo. Conheci-o quando ambos éramos colegas advogados. Um dia em que tínhamos um caso judicial, falámos os dois. Na conversa vieram à baila os poderes da PIDE [Polícia Internacional de Defesa do Estado]. E eu lembro-me de lhe ter perguntado: "Se amanhã tivesse o poder, daria as mesmas garantias que nessa altura exigiam aos seus adversários políticos, nomeadamente, os da PIDE." O dr. Soares respondeu com muita naturalidade que "com certeza" E acrescentou: "E se não houver outro advogado para defender o Silva Pais, vou eu." Fiquei convencido de que aquilo era de facto verdade. Sempre vi no dr. Mário Soares um homem das liberdades e da tolerância.

P. - Pensa que é o grande traço que o define e caracteriza?

R. - Penso que sim. Mas há outro, muito importante. O De Gaulle, nas suas memórias, diz que o Churchill "não era verdadeiramente um homem de Estado mas um lutador". Ele é com certeza um lutador, ou foi-o, durante uma grande parte da vida: infatigável na luta contra o antigo regime, e depois infatigável durante o PREC por causas com as quais eu me identificava largamente.

P. - Considera que é mais um lutador do que um homem de Estado?

R. - Citei aquele texto relativamente ao Churchill e não ao dr. Soares... Não será um gestor nem um administrador, mas é um homem de Estado. E se nunca fui partidário da sua gestão como primeiro-ministro, ele consegue que as pessoas tenham confiança quanto ao seu próprio estatuto político e quanto às suas liberdades públicas. Pelo menos é o que me acontece a mim...

P. - Já que estamos nesta: e o "cavaquismo"?

R. - É uma gestão profissional, competente e sem sonho. Um conselho de administração honesto. Já é uma grande coisa. Felizmente a democracia não exige aos governantes que sejam heróis. Há coisas de que eu não gosto, mas apesar delas tenho votado no professor Cavaco Silva e provavelmente continuarei... Nenhuma das alternativas me parecem nem melhores nem mais interessantes. E sabe que o facto de não ter sonho, de certo modo, tranquiliza-me: em democracia nós só damos aos governos e às instituições uma pequena parte da nossa vida. Não são eles que têm de tratar da nossa felicidade...

P. - Vinte anos depois, que Portugal?

R. - Não sou pessimista mas vejo que agora há aí uma certa onda... Após o 25 de Abril houve pessimismo, a perda do Império arrastou naturalmente uma crise de identidade. Assumiu-se depois um certo optimismo, fruto da conjugação das responsabilidades positivas de Cavaco Silva na governação com a adesão à CEE - e, felizmente para o actual primeiro-ministro, ambas as coisas são historicamente indissociáveis. Um optimismo muito português que nos levou a pensar que a Comunidade resolveria todos os problemas e solucionaria todas as questões... E hoje, naturalmente, o pessimismo que há sobre a Europa transfere-se para o caso português.

Apesar dos dois anos do PREC, Portugal passou muito bem de país atrasado e com uma carga histórica irresolúvel para um país que é hoje relativamente moderno e progressivo. E acho também que o povo português vota sempre de forma sensata, o que me dá um certo optimismo quanto ao futuro: tenho visto disparates cometidos pela classe política, mas não pelo eleitorado.