Maria de Lurdes Pintassilgo

Entrevistas conduzidas por Maria João Avilez -  "Público" (1994)

ENTREVISTA COM MARIA DE LURDES PINTASILGO
 
Maria João Avillez
Igual a ela própria. Exuberante, enérgica, polémica. Como dantes, quando foi primeira-ministra, como depois, quando concorreu a Belém. Como hoje.
Formou-se em engenharia química, trabalhou para o Grupo Mello nas fábricas da CUF, no Barreiro, acreditou em Marcello Caetano - embora recusasse participar nas listas da União Nacional -, integrou a Câmara Corporativa.
Desde sempre inspirada pelos valores cristãos e norteada pela doutrina social da Igreja, Maria de Lurdes Pintasilgo nunca deixou ninguém indiferente. Polarizando os extremos, é capaz de galvanizar ou afastar, com a mesma dose de energia. Com tanta que se apontam, na sua caminhada, os sustos que pregou a líderes partidários quando as bases "pintasilguistas" se evidenciavam com maior vivacidade que as deles no horizonte político. Começou muito cedo a pertencer a diversos organismos internacionais e, de então para cá, não tem parado de viajar. Desde que, em 1979, abandonou a residência oficial de S. Bento, é (entre muitas outras coisas) vice-presidente do Conselho de Ex-Primeiros-Ministros ("uma coisa divertidíssima!"), onde têm assento trinta e seis homens e mulheres que presidiram aos governos de países de diferentes continentes. Mas aquilo que hoje mais a mobiliza é, sem dúvida, a presidência da Comissão Independente sobre a População e a Qualidade de Vida.
"É uma iniciativa de diversos governos - Suécia, Holanda, Inglaterra, Japão, Canadá, Alemanha -, patrocinada por fundações privadas norte-americanas e instituições multilaterais como a ONU ou o Banco Mundial, por exemplo, que pretende elaborar uma nova visão sobre questões internacionais da população, no contexto dos direitos humanos e das condições económicas e sociais." Um cargo e um tema talhados por medida para ela.
 
PÚBLICO - Um belo dia, os portugueses deram com eles a ver a tomada de posse de um governo dirigido por uma mulher. Ficaram surpreendidos. Também ficou?
LURDES PINTASILGO - Sinceramente, não. Essa questão tinha sido já discutida e como o então Presidente da Republica estava, como se recorda, num impasse político por causa da formação do novo governo, eu sabia que, de algum modo, poderia vir a ser escolhida.
P. - Porquê? Considerava que o seu protagonismo e a sua visibilidade na política justificavam essa escolha?
R. - Nos primeiros governos provisórios, tivera, no domínio dos assuntos sociais - especificamente, na saúde e na segurança social -, uma intervenção que apontara para algumas soluções que me pareciam importantes para o país. Em função disso, houve uma ala dos militares que integravam o Conselho da Revolução que viam com interesse e empenho a minha participação na vida política.
P. - Como se dá a sua aproximação à política? Por que vias?
R. - Foi determinada por muitos factos da minha própria história. Para responder, tenho de voltar atrás: a escolha do meu curso de engenharia foi logo uma aposta numa zona que aparecia como importante, nesses anos cinquenta, para instaurar novas relações sociais e ir ao encontro dos mais carenciados ou marginalizados. Aliás, devo dizer que esse curso me proporcionava fazer investigação - como fiz ainda, durante um ano, na Junta de Engenharia Nuclear -, mas o apelo veio justamente desse interesse pela realidade do mundo industrial e das pessoas que nele viviam. Fui também muito influenciada pelos ideais vividos no interior da Igreja Católica, em particular pela experiência dos padres operários em França, e pela própria experiência da filósofa Simone Weil.
P. - E onde trabalhou, então?
R. - Aceitei o convite do dr. Jorge de Melo para integrar a equipa de estudo e de investigação da CUF. Trabalhei em contacto directo com essa realidade e esse ambiente: pude viver, nas fábricas da CUF, no Barreiro, ao pé de pessoas que diariamente respiravam a poluição e nunca podiam, por exemplo, ter um vaso de flores no quintal. Esta experiência arrastou outro tipo de interrogações: como era possível que, numa empresa onde inclusivamente havia, da parte dos seus proprietários, uma preocupação social evidente, não se pudesse avançar com as ideias que se defendiam nem concretizar as medidas sociais que se justificavam? E foi conversando com os seus responsáveis que me fui apercebendo dos condicionalismos que o poder político impunha à iniciativa privada. Isso acentuou ainda mais o meu interesse pelas questões políticas.
P. - Um interesse nunca desligado, no seu caso, dos princípios e valores do cristianismo e, sobretudo a partir de certa altura, da doutrina social da Igreja...
R. - Sem dúvida.
P. - Em ultima análise - ou em primeira, neste caso -, foram sempre esses princípios cristãos que determinaram a sua acção? Mais do que uma corrente de pensamento ou que...
R. - Sim, sobrepôs-se sempre a tudo o resto. O que, aliás, me levou a correr alguns riscos.
P. - Que tipo de riscos ?
R. - O risco de não ser compreendida, justamente. O Evangelho é qualquer coisa de muito radical. Quando Jesus Cristo se apresenta na sinagoga diante dos sacerdotes do seu templo, abre o livro do profeta Isaías e lê: "Eu vim anunciar a boa nova aos pobres, libertar os cativos, dar vista aos cegos e tornar livres os oprimidos." Depois, fechando o livro, diz apenas: "Aqui se cumpriu a profecia." Ora isto é... terrivelmente claro. E terrivelmente forte.
P. - Participava, aliás, desde muito nova em diversos movimentos de inspiração cristã, organizações católicas...
R. - Sim. Muito especialmente no GRAAL - um movimento de mulheres que tentam viver em conjunto o seu empenhamento de cristãs na vida social. O GRAAL tem, pelo mundo fora, diversas equipas, muito mobilizadas para aquilo a que se chamou o desenvolvimento comunitário - adquirindo, mais tarde, expressão concreta na teologia de libertação. Libertação entendida como conceito de libertação das sociedades, num plano social, económico e necessariamente político. Tudo isto norteado pelo ideal cristão, com o qual me identifico totalmente.
P. - Desde muito cedo que teve também contacto com o mundo internacional, viajou, conheceu gente, trabalhou no estrangeiro. Em que medida é que isso também foi determinante?
R. - Considero isso indiscutivelmente um privilégio. Desde o tempo da universidade que vivi a dimensão internacional das coisas, que acompanhei a evolução do pensamento da Europa, viajei muito, conheci outros continentes e outras formas de pensamento...
P. - Foi abrindo um caminho por aí...
R. - Sim, que sempre me inspirou muito. Sabe, eu admiro as pessoas que, no nosso país, conhecem a realidade até ao mais ínfimo pormenor, que sabem de cor os factos e os números. Mas justamente, por vezes, é essa análise face ao imediato que impede que se veja o resto... que se esteja a par do que vai pelo mundo, que se descubra onde está (e de que é feito) o pensamento inovador... Porque o problema fulcral é ser capaz de relacionar isso com a questão meramente política. Pode ter-se uma boa ideia, mas, entre a ideia e o acto, há uma série de "démarches" e de etapas - e todas elas têm de ser criativas e fiéis à sua inspiração original, e, simultaneamente, adaptadas ao momento concreto que vive a sociedade em que se inserem.
P. - E, quando foi primeira-ministra, como é que fez para transpor tudo isso para a acção política? Que marca é que disse a si própria que gostaria de deixar no Executivo, na sua passagem pelo poder?
R. - Nessa altura, era ainda tentar recapturar aquilo que eu sentira no ano que se seguiu ao 25 de Abril: ser capaz de construir as estruturas de uma sociedade mais justa. Esse foi, sem dúvida, o meu objectivo número um.
P. - Embora tivesse, à partida, um calendário marcado no tempo e um governo com prazo...
R. - Mas isso foi secundário! A política também tem isso... a não ser quando se produzam na sociedade fenómenos muito especiais de conformismo... A política, em democracia, é justamente uma interrogação quanto aos termos, quanto à duração do poder. Sabia-se, de facto, a duração do meu Executivo, mas, se formos a ver, desde o 25 de Abril até ao momento em que saí de S. Bento, a média de duração dos executivos era de oito meses...
P. - Isso não a afligiu absolutamente nada!
R. - Nada. Foi uma experiência que, também por isso mesmo, me apareceu como extremamente dinâmica! De resto, um dos meus ministros, o engenheiro Frederico Monteiro da Silva, titular da pasta dos Transportes, exprimiu isso muito bem: tinha, no gabinete, um calendário com a contagem decrescente do tempo. Sabia muito bem o que tinha de ser feito, até quando, etc.
P. - Então, o que fez? Ou melhor, o que ficou feito em relação ao seu objectivo prioritário?
R. - Algumas coisas ficaram realmente feitas. Mas um dos aspectos que considero mais importantes no plano da elaboração estrutural de uma sociedade mais justa (de que lhe falava há pouco) foi justamente a criação de um sistema mínimo de segurança social para todas as pessoas. Isto é, criou-se um esquema de segurança social que não tinha como base o vinculo do trabalhador ao seu empregador - pretendia que houvesse um espírito onde coubesse a aceitação de que a vida de cada pessoa tem que ser assumida por toda a colectividade. Isso foi um dos aspectos indubitavelmente muito importantes do meu governo.
P. - E mais?
R. - Tentei igualmente - o que me pareceu quase mais importante que a simples tomada de medidas concretas, a seguir umas às outras - que se equacionassem os problemas na sua globalidade e logo que o governo passasse a funcionar de outra maneira... Repare que a estrutura dos governos é praticamente a mesma desde os primeiros tempos da industrialização, com a sua sufocante parcelização das responsabilidades... Longe, portanto, da exigência que marca os tempos modernos. Por exemplo, está a Saúde de um lado, a Educação do outro, o Emprego do outro... numa altura em que sabemos que não se solucionam os problemas a não ser de uma forma integrada! Tem que haver mecanismos que permitam uma circulação, não só entre os membros do governo como em todas as fases de execução das suas políticas!
P. - Foi o que fez?
R. - Foi. Para além das áreas que estruturam o próprio Estado - justiça, administração interna, defesa e Estrangeiros -, organizei o governo em três grandes áreas: económica, social e cultural. A área social integrava o Trabalho, a Saúde, os Transportes e Obras Públicas - visto que tudo isto é uma realidade social. Isto nunca foi retomado... Do mesmo modo que, na área cultural, tinha a Educação, a Ciência e a Cultura. Uma das pessoas que percebeu isto bem foi o Lucas Pires: no governo seguinte, da AD, exigiu que a Ciência e a Cultura permanecessem juntas.
P. - O facto de ser uma mulher acarretou problemas extra?
R. - Acho que sim. Não no contacto com o povo, nem obviamente no Conselho de Ministros - nunca houve qualquer tipo de problema. Mas originou-se uma reacção violenta por parte de alguma classe política, devido a uma outra forma de encarar as coisas, de olhar para os problemas. Por outro lado, penso que houve outras pessoas que, talvez mesmo sem o formularem, viam na presença de uma mulher no topo do Executivo um abanão, um desafio a preconceitos ou ideias que vinham de há muito tempo. Olhe, a propósito de contactos com o povo, recordo-lhe que saíamos muitas vezes de S. Bento, para o contacto directo com as populações...
P. - Como assim?
R. - Levei a cabo um trabalho de conhecimento "in loco" e, posteriormente, de acompanhamento das questões. E foi possível, durante cinco meses, estar em oito zonas diferentes do país, trazendo depois para Conselho de Ministros os "dossiers" de algumas questões que sabíamos ser prioritárias para as zonas visitadas. O ponto de partida era um trabalho conjunto entre o poder central, distrital ou municipal, conforme os casos e os locais. Um ponto de partida que, aliás, verifiquei com apreço que o dr. Mário Soares veio, de certa a forma, a prosseguir, enquanto Presidente da Republica, nas suas "presidências abertas". Ceio que o espírito era o mesmo.
P. - Voltando agora um pouco atrás, antes de prosseguir: qual era a sua relação com o poder vigente antes do 25 de Abril? Aceitou pertencer à Câmara Corporativa. O que é que isso implicava da sua parte?
R. - Implicou algumas coisas. Em primeiro lugar, uma sincera confiança na capacidade do dr. Marcello Caetano de mudar as coisas e abrir as portas... Havia ali duas questões: por um lado, as desigualdades sociais, verdadeiramente gritantes. Dou-lhe dois exemplos que me ocorrem agora: tínhamos na altura, no tecido industrial, mais de 60 por cento dos trabalhadores sem a instrução primária completa; e, quando introduzimos o salário mínimo, ele veio atingir mais de 50 por cento das pessoas! Por outro lado, dado o meu permanente contacto com gente lá de fora e com outros continentes, cada dia sentia mais a preocupação relativamente à nossa posição internacional: os movimentos de libertação ganhavam terreno; desde 1957 que se processava a independência de diversos países, sobretudo dos africanos. Parecia-me que teria de haver, da nossa parte, o assumir desta situação, tanto mais que se estava já em 1969 e havia oito anos que durava a guerra colonial.
P. - Aceitou, então, colaborar com Marcello Caetano...
R. - Aceitei em parte: comecei por ser convidada para integrar a lista da União Nacional para a Assembleia, mas recusei. Se não concordava com um regime de partido único, não podia participar na sua lista...
P. - Como é que ele reagiu?
R. - Penso que terá compreendido. Mas foi uma excelente conversa, falámos de muitas coisas e, quando recusei este convite, o professor Marcelo Caetano perguntou-me então da minha disponibilidade para outro tipo de colaboração que não envolvesse os meus princípios, os quais eu não queria pôr em causa. É neste contexto que surge a Câmara Corporativa. Entrei para a sua Comissão de Política Geral, onde me mantive até ao 25 de Abril.
P. - Valeu a pena?
R. - Ah, foi extraordinariamente interessante! Pude aperceber-me, em contacto com diversos ex-ministros de Marcello Caetano que não pensavam de modo nenhum da mesma maneira -, do que era a política concreta, e pude observar, do interior, as suas estruturas, o seu modo de funcionamento, os erros, etc. Havia discussões muito ricas entre todos, sobretudo entre alguns ex-ministros que manifestavam já uma séria revolta em relação ao estado das coisas e outros que nunca se questionavam... Por outro lado, esta experiência foi-me impedindo de julgar as pessoas e as questões de forma maniqueísta...
P. - Manteve-se na Câmara Corporativa até ao 25 de Abril de 1974. E depois?
R. - Fui logo convidada a colaborar com o primeiro governo. Eu passara as três semanas que se seguiram ao 25 de Abril tentando perceber o que se estava a passar na sociedade portuguesa, tentando compreender a que é que tudo aquilo conduziria. Num congresso que a Françoise Giroud realizou em Paris, por essa altura, lembro-me de ter dito que, "em Portugal, se fazia uma revolução no masculino, apesar de a palavra ser feminina". As notícias visavam apenas os homens, tudo se passava entre eles, etc. Estava eu nesta constatação quando Mário Murteira - indicado para titular dos Assuntos Sociais - me convidou para sua secretária de Estado. Foi a minha primeira função no Executivo.
P. - Seguiram-se outras... .
R. - O Governo durou cerca de dois meses, findou com a crise Palma Carlos. No segundo Governo Provisório, entrei já como ministra dos Assuntos Sociais.
P. - Há, normalmente, uma má ideia quanto a esses governos: surgem-nos na memória como desligados, trabalhando muito e mal, etc.
R. - Mas justamente repare que vivíamos uma época curiosa: tínhamos as tarefas governativas mas, como não havia ainda Parlamento, cabia-nos redigir a lei dos partidos políticos, a lei eleitoral, preparar eleições, etc. A nossa tarefa era gigantesca e pioneira ao mesmo tempo... devido a este acumular de tarefas em simultâneo... Os Conselhos de Ministros tinham aspectos aliciantes: era necessário não só preservar o equilíbrio, já de si frágil, do Executivo - com o PS, o PSD, o PCP, os militares e os chamados independentes - como manter vivo o compromisso assumido mutuamente entre o MFA e os partidos. Isto tornava o consenso muito mais difícil - as reuniões chegavam a durar oito horas e, por vezes, doze! -, tudo se passava dentro daquelas quatro paredes, era como que uma câmara de eco da revolução que ocorria na rua... Sublinho que havia ainda um outro fenómeno perante o qual um ministro não podia ficar insensível ou, pelo menos, desatento: era o de tentar compreender a pressão que, durante décadas, se exercera sobre um povo que agora se inebriava com a possibilidade de dizer as coisas de forma aberta e audível... Ora isso desaguou naquele tremendo desejo de tomar a palavra, de gritar...
P. - Não olha, então, para esses governos com o olhar pessimista ou impiedoso com que ainda hoje são recordados...
R. - Não, repito: tínhamos que organizar os aspectos políticos que normalmente caberiam a um Parlamento; cumprir a gestão corrente e gerir a revolução na rua... e em cada um dos nossos ministérios. Era preciso, da nossa parte, ter suficiente paciência para conduzir este processo de tal forma que todos tivessem justiça e sentissem solidariedade.
Para lhe dar um exemplo, surgido no meu próprio Ministério: apareceu-me uma lista com 500 pessoas para sanear! Devolvi a lista com diversas interrogações consoantes pessoas e casos: porquê este saneamento, quem deve substituir esta pessoa, por quem, etc. Resultado: ninguém foi saneado, todos foram recolocados.
P. - Continua no Governo até ao dia 11 de Março. Nessa própria manhã, houve reunião do Conselho de Ministros. Que se passou?
R. - Lembro-me de que vimos os helicópteros a passar pelas janelas... Alguém vem logo avisar o dr. Cunhal, depois o dr. Salgado Zenha e depois é alguém que diz ao próprio primeiro-ministro que "estava a haver um golpe"! Alguns de nós decidimos logo ir ter com o dr. Soares ao Palácio das Necessidades. Mas, como isto sucedeu à hora em que os nossos motoristas tinham ido almoçar, encaixámo-nos à pressa - éramos cinco ou seis - no carro do então ministro da Economia, dr. Rui Vilar, e fomos ter com o dr. Soares. Recordo-me de uma coisa deliciosa: alguém sugeriu que, "se calhar, tínhamos que ir para a clandestinidade" e outro alguém perguntou: "Mas onde é a clandestinidade?". E é então que se ouve o dr. Tito de Morais, que estava presente, murmurar que "podia ser em sua casa..."
P. - Estavam divididos quanto à natureza e origem do que estava a ocorrer?
R. - Penso que nenhum de nós compreendeu o que sucedia. Ou, pelo menos, essa compreensão não foi explicitada sobre de onde é que as coisas partiam... e sobre quem as organizava... E, como tal, não houve uma análise profunda, limitámo-nos ao imediato: ficamos ou não ficamos, o que é que cada um devia fazer para surgir uma acção concertada. Penso que os ministros partidários se dirigiram às sedes dos seus partidos e que os independentes como eu, por exemplo, se rodearam dos seus colaboradores mais próximos.
P. - A partir dessa data, deixa o governo. Porquê?
R. - Por imposição do Partido Comunista. Face a esta atitude do PC relativamente a mim, o PS insiste junto de Vasco Gonçalves com o meu nome, com o argumento de que eu vinha de uma força social relevante na sociedade portuguesa - a Igreja Católica. Mas como o PS insistia também na manutenção do dr. Salgado Zenha no Governo - que os comunistas também não queriam -, os socialistas acabaram por obter apenas uma destas suas duas reivindicações. E contra a ala ainda dominante no Conselho dos Vinte, acabou por vencer a tese do meu abandono de funções.
P. - Porque é que acha que o PC não a queria por ali?
R. - . Houve uma razão. Em teoria, o PC trabalhava para as classes mais desfavorecidas. Ora como eu também manifestava preocupações sociais muito fortes nesse domínio - e agia segundo essas preocupações -, comecei a granjear a simpatia de muitos militantes de base vindos do PC... Com o passar do tempo, isto foi fazendo com que eu começasse a corporizar uma ameaça para eles... Parece ridículo dizer isto, mas creio corresponder à verdade dos factos com esta explicação...
P. - Como se comportavam os lideres dos Partidos? Cunhal, Zenha, Soares...
R. - O dr. Mário Soares nem sempre podia estar presente nestas longuíssimas reuniões do Conselho de Ministros. Mas recordo, de forma muito impressiva, os grandes debates ideológicos - personificados pelo dr. Cunhal e pelo dr. Salgado Zenha... Eram umas sessões interessantíssimas... Quem não soubesse nada de comunismo e de socialismo democrático, ficava a saber! Foram umas discussões memoráveis... . Recordo particularmente as discussões sobre a lei da unicidade sindical, um debate tão violento entre os dois, quanto interessantíssimo...
P. - E Vasco Gonçalves?
R. - Falava de vez em quando... Preferia sempre intervir em questões ideológicas e quase só dava a sua opinião quando de tratava de conflitos sociais. Quem, de facto, liderava e moderava o Conselho de Ministros era Vítor Alves. Devo dizer que o fazia de forma muito eficaz.
P. - No fundo, esteve sempre perto daquilo que depois teve um nome, um rosto e uma bandeira: Melo Antunes e o "melo-antunismo".
R. - Vínhamos de experiências - e de áreas - muito diferentes. Mas a verdade é que tínhamos, afinal, uma percepção convergente da situação de Portugal no contexto dos grandes movimentos do mundo. Tanto ele como eu assumimos totalmente o facto de Portugal ser fundamentalmente (como ainda é, de resto) um país do Sul da Europa. De outro modo, não permaneceríamos o país mais pobre da União Europeia, nem faríamos tanto alarde do dinheiro que vem da CE - duas atitudes típicas de países do Sul. Isto hoje pode parecer utópico mas, na altura (há vinte anos!), tinha grande sentido no contexto das correntes da época, nos cenários em que se discutia a evolução das sociedades. Tratava-se de ponderar, de procurar, uma via para Portugal que não ocorresse nos mesmos termos em que se tinha processado a dos países altamente industrializados. Isto é, sociedades marcadas por um extremo consumismo e por uma marginalização crescente dos fracos - os quais nunca chegavam a aceder a esse consumo!
P. - É-lhe possível explicitar, concretizar, o que se pretendia?
R. - É-me impossível resumir em três linhas, e no contexto de uma entrevista, o que se pretendia... Mas convido-a a ler o programa que elaborei para o Ministério dos Assuntos Sociais, onde estruturei todas as prioridades (explicitando a sua importância e oportunidade) e que, mais tarde, tornei a repor naquele Programa Económico e Social que, sob a tutela de Melo Antunes, um grupo de pessoas - Vítor Constâncio, Rui Vilar, eu própria, etc. -, redigiu em Sesimbra, no final de 1974, e a que também o major Vítor Alves emprestou o seu habitual dinamismo...
P. - Talvez possa aduzir duas ou três grandes linhas...
R. - Tratava-se de dar forma a ideais de solidariedade social e de defesa dos direitos humanos por uma via que tivesse em conta a nossa maneira de ser e a situação económica da maioria da população. Tratava-se de "inventar" a redistribuição dos bens, dos serviços, de modo a que os portugueses pudessem encontrar uma nova dignidade perante si próprios e perante o mundo. Tratava-se de garantir à cultura do povo, a todos os níveis, o seu direito a moldar o presente e o futuro.
P. - Uma bandeira que sempre foi a sua...
R. - Sempre, sempre... Eu sempre defendi a tradução da organização política, ou melhor, a sua transposição para o quotidiano das pessoas... Há uma frase da Constituição que diz que a soberania reside no povo...
P. - Mas isso é uma utopia! Consultar permanentemente o povo? Como?
R. - Evidentemente que fazê-lo sempre de uma forma directa pode ser utópico... Temos aí o exemplo da Suíça e das abstenções cada vez maiores que têm vindo a sofrer aquelas permanente consultas... Mas lembre-se, por outro lado, da proliferação de organizações de todo o tipo que então pululavam pelo país fora: as comissões de pais, de moradores, de trabalhadores, de bairros, etc., etc. Não se podia passar ao lado desse sinal evidente, ao lado do que isso significava, de vontade de participação... Uma participação que não se esgotasse nos partidos políticos organizados segundo um manual, uma cartilha, um programa, necessariamente redutores desta tal ânsia participativa e afuniladores dos seus projectos, ideais, propostas... Ainda hoje considero que continua por estudar, por trabalhar, o tipo de participação específica das pessoas no fenómeno político para alterarem, de facto, os seus quotidianos: como é que, a cada momento, se pode mobilizar um ser humano com vista à sua própria melhoria e à melhoria da sociedade em que está inserido?
P. - O serviço cívico, da forma como foi, a dada altura, teorizado por si em Conselho de Ministros, correspondeu a esse tipo de preocupações e reflexões?
R. - Correspondeu, com certeza. A certa altura, era evidente que as universidades não comportavam os seus 28 mil aspirantes. Alguém, em Conselho de Ministros, trouxe a lume a ideia de um serviço cívico, um projecto que depois me pediram que teorizasse. Fi-lo com gosto. E porquê? Porque me parecia que, num país sem a mínima orientação profissional e vocacional - e onde o trabalho manual era totalmente desprezado por quem detinha o poder e o saber -, era fundamental que os jovens que aspiravam à universidade tivessem a possibilidade, durante um ano, de contactar com a realidade da vida, de descobrir outra maneira de se inserirem na sociedade e de lhe serem úteis, diferentes daquela que os pais sempre tinham dito e às quais (por educação ou hábito) haviam aderido. Tratava-se, assim, de dar aos jovens a possibilidade de descobrirem um sentido de engajamento e de empenhamento face à realidade da sociedade em que viviam.
P. - Em 1986, concorre a Belém. Porque se candidatou à Presidência da República? O que retém hoje desse seu gesto?
R. - Digo-lhe em duas palavras: a minha candidatura foi, de forma organizada, o último sobressalto do espírito do 25 de Abril na sociedade portuguesa. Sabe que, a uma dada altura da minha campanha eleitoral, estavam abertas mais sedes no país do que as que contava o PS, implantado há anos na sociedade portuguesa? Penso que houve, de facto, uma imensa - e espontânea - mobilização em torno do que significou essa minha corrida eleitoral...
P. - O que pensa que mobilizava as pessoas? O facto de ser uma mulher?
R. - Acho que, sem dúvida, tinham a noção de que eu simbolizava um poder que se iria preocupar com elas. Isto foi, a meu ver, fundamental. Considero também que havia como que uma espontaneidade, quase que um "não dito" que se prendia com o facto de eu ser uma mulher... Contou ainda o impacto que produziram no país os breves meses em que estive como primeira-ministra. A verdade é que essas pessoas esperavam "outra coisa", queriam "outra coisa", pensavam noutras formas de intervir ou de vir a protagonizar o seu contributo político. Isto foi particularmente nítido em relação a quadros, intelectuais, etc. Uns viam ali uma porta aberta, outros encontravam uma sintonia... Lembro-me de que alguém perguntou ao escritor Lobo Antunes - apoiante da minha candidatura - porque é que ele me apoiava. Ele limitou-se apenas a dizer "porque sim". Portanto, era qualquer coisa de visceral, que tinha que ver com o modo como as pessoas se situavam no mundo e na sociedade.
P. - O que era o "pintasilguismo"?
R. - Não é nada. Acho totalmente provinciano, totalmente limitado, personificar no nome de uma pessoa uma corrente de ideias e de aspirações que ultrapassa, de longe, essa pessoa.
P. - A propósito de tudo isso, das eleições a que concorreu, etc. Julgo saber que Álvaro Cunhal a procurou várias vezes - creio mesmo que aqui, em sua casa -, mas que o fez justamente até às eleições presidenciais de 1986 e nunca depois...
R. - Não o nego. O dr. Álvaro Cunhal era um dos políticos com uma noção muito clara da força social que está contida no próprio cristianismo. Vendo-me como católica activa e empenhada, procurava, por um lado, entender qual era a minha análise concreta da situação que se vivia e, por outro, procurava também mostrar-me onde residiam, a seu ver, as maiores urgências de acção. E, por seu turno, também me indicava claramente qual era a posição que ele tomava e por que razões o fazia.
P. - Que reteve desses encontros?
R. - Pessoalmente, retirei desses momentos uma percepção muito clara do que tinha sido, até então, a política, enquanto relação de forças.
P. - Hoje pensa que o PC teve medo da sua candidatura?
R. - Ainda hoje isso é um mistério para mim...
P. - Sentiu-se a "correr" ao lado das "poderosas" máquinas partidárias?
R. - Dada a desproporção entre a mobilização que essa minha candidatura provocou e o seu resultado, a minha derrota tornou claro que uma candidatura independente dos partidos políticos não tem condições para uma vitória eleitoral. Esta minha experiência foi, aliás, depois verificada na Áustria, com o resultado obtido nas presidenciais pela senhora Freda Meissner-Blau. E não está, de modo nenhum, ausente do espírito de pessoas como o Jacques Delors - que teve ocasião de mo dizer pessoalmente -, quando equaciona a possibilidade da sua própria candidatura ao Eliseu.
P. - Como olha estes vinte anos que agora se comemoram? Que Portugal hoje?
R. - Foram anos de grande mudança, sem dúvida. Mas o mundo inteiro mudou tanto nestes vinte anos que numerosas zonas de interrogação se abrem hoje, de novo, à nossa criatividade e à nossa capacidade de arriscar. Num mundo que torna a democracia um sistema político a condicionar a plena aceitação na vida internacional, procura-se uma nova maneira de entender a democracia e de a traduzir na prática. É hoje - treze anos depois do manifesto "Para o aprofundamento da democracia" -, a convicção generalizada de que a democracia carece de ser reinventada.
P. - É um tempo em que...
R. - É, antes do mais, um tempo em que a exclusão de muitos não pode ser aceite. A justiça social deixou de ser um ideal remoto para se transformar num imperativo incontornável. Por isso, os dois milhões de pobres do nosso país são a grande interrogação sobre o que não conseguimos fazer nestes vinte anos e sobre o que devemos fazer, onde quer que estejamos. Não num futuro longínquo, mas hoje. A dignidade humana não pode ser adiada.