Maria João Avillez

Maria João Avillez
 
Maria João Avillez, autora de "Do Fundo da revolução"
"Dêem-me uma pessoa e eu faço uma grande viagem!"
O livro intitula-se "Do Fundo da Revolução" e é lançado na próxima segunda-feira na galeria 111, em Lisboa. Acolhe dezasseis entrevistas saídas no PÚBLICO (que também edita o livro) entre Janeiro e Abril deste ano, feitas por Maria João Avillez a outros tantos personagens com histórias para contar de uma revolução de há 20 anos. Algumas delas com material que tinha ficado no gravador. Maria João Avillez, 49 anos, jornalista há 30, faz o elogio da entrevista como viagem. E paixão, mas não exclusiva: "Considero-me uma jornalista 'tout court'. E com muita honra!" A entrevistadora entrevistada.
O seu percurso profissional identifica-se com um género: a entrevista. Foi deliberado?
Estou consciente de que há essa identificação e tenho um bocado de pena, porque também gosto muito da reportagem. Penso que foram as entrevistas feitas no "Expresso" na década de 70, com todo aquele fervor e polémica do PREC, quando eu entrevistava de facto toda a gente, que me catapultaram como entrevistadora. Mas embora goste que me identifiquem, de um modo positivo, como entrevistadora, considero-me uma jornalista "tout court". E com muita honra!
Mas, aparentemente, nunca forçou o "destino" e continua muito ligada à entrevista. Porquê?
Porque gosto muito e porque me pedem. Uma entrevista, para mim, é assim: dêem-me uma pessoa e eu faço uma grande viagem! Como todas as viagens, pode ser esplendorosa, surpreendente, decepcionante. Não há nada melhor do que a natureza humana, poder falar sobre ela e convidar os outros para nos acompanharem nessa viagem. A entrevista tem um carácter de que eu gosto muito, que é o tornar mais luminoso, o dar a ver, revelar. Se eu conseguir revelar uma boa fotografia com palavras, estou a dar a ver alguém a outros e isso é um privilégio e um desafio. É uma coisa que me fascina, hoje como há 30 anos.
Falou em "viagens decepcionantes". Quando isso acontece como é que as justifica?
Sou tentada a achar que a culpa é minha. Ou porque não compreendi bem o entrevistado em toda a sua complexidade ou até pela coisa banal de estar com pressa, porque tinha de entregar o trabalho. Porque, apesar de tudo, há sempre um lado para se chegar lá, mesmo que esse "lá" possa ser menos interessante do que outros. Antes de começarmos uma viagem, não sabemos o que é que nos espera. É exactamente a mesma coisa antes de começar um diálogo denso e tenso com alguém. Digo denso e tenso porque, normalmente, a densidade e a tensão não estão ausentes das minhas entrevistas.
 
Mas normalmente as suas entrevistas "fluem" com uma leveza, uma espécie de informalidade que não deixa ver o trabalho de bastidores...
Porque eu gosto das pessoas! Mas o trabalho está lá!
Não duvido. Mas é uma questão de técnica ou há uma "arte" da entrevista?
Há duas coisas: uma preparação em função da pessoa específica que irei ter diante de mim e há a minha intuição e o meu instinto. Mesmo que, após essa preparação, elabore um questionário, sou a primeira a levantar voo se pressinto que o entrevistado está a ir noutra direcção. Digamos que funciona muito o instinto e a intuição. Mais do que a razão ou a mente, quem sabe? Se as entrevistas são fluídas é porque eu gosto muito de conversar com as pessoas, tenho curiosidade sobre elas, gosto de saber se estão felizes ou infelizes, como é que acordaram, o que é que querem. Nunca é um esforço, nunca!
Improvisa em função das respostas do entrevistado ou também entram no jogo outros sinais, gestos, hesitações?
Não é bem uma improvisação, é seguir os sinais que o meu instinto capta. Porque se os seguir sei que sigo bem: tem-me sido preciosa a intuição! E funciona em relação a tudo, porque também funciona na minha própria vida: pode ser um olhar, um gesto, o respirar, uma hesitação, uma palavra...
É por isso que raramente se nota agressividade...
Nota, nota! Se me disser que, porventura, utilizo dois registos - na política um combate de boxe em que sou sempre o advogado do diabo e na cultura um registo mais intimista -, posso estar de acordo. Mas não me diga que não sou agressiva! Nas entrevistas que deram origem a este livro, optei por ser muito mais ouvidora do que advogada do diabo ou julgadora. Quis ouvir aquelas pessoas, os seus sentimentos, desabafos, frustrações, anseios, realizações, tudo o que ocorreu. E optei, propositadamente, por não ser agressiva. Para, digamos, não espantar a caça: o que eu queria é que eles dissessem o que estava lá dentro deles.
Você disse que gosta das pessoas. É nesse sentido que falava de falta de "agressividade", de não querer forçar as pessoas a uma entrevista pré-concebida...
O meu ponto de partida para uma entrevista é a disponibilidade total! Mas sobre isso há um eterno personagem ao qual regresso sempre, porque é o paradigma de todas as entrevistas não sucedidas, que é o dr. Álvaro Cunhal. Ao contrário daquilo que muito ligeiramente se possa pensar - que eu consegui boas entrevistas com ele -, foi ele que conduziu sempre as entrevistas. E aí havia, de facto, uma pré-intenção minha, que era tentar revelar aquela personalidade. Nunca consegui. Porque ele fez sempre o que quis, e fez mais: "fingiu" que tinha dito alguma coisa, para eu ir muito contente com a cassete para casa, e afinal não tinha dito nada. Mas tudo isto de uma forma muito sedutora...
Quais foram os critérios para a escolha dos 16 entrevistados deste livro?
O critério foi só um: evitar que a comemoração dos 20 anos do 25 de Abril tivesse uma só versão, a oficial. Portanto, lembrei-me de ir buscar pessoas que, da extrema-direita à extrema-esquerda, tivessem tido um papel. Mas não o principal: os dois únicos protagonistas são Melo Antunes e o dr. Soares. Queria pessoas que tivessem uma história para contar, que fosse simultaneamente a história da Revolução, a história deles e a história deles próprios na Revolução. E assim oferecer às pessoas - e isto é a coisa mais importante para mim - um belo princípio de reflexão sobre o que ocorreu há 20 anos. Princípio, atenção, porque acho que, daqui a uns anos, hão-de vir mais coisas...
Com algum deles foi particularmente difícil o "jogo" da entrevista?
Posso dar-lhe um exemplo: pensei que o professor Adriano Moreira, que é uma pessoa que admiro intelectualmente, quisesse ir muito mais longe. Ele não quis - e o erro foi meu, provavelmente - e, nesse sentido, foi difícil e foi também uma decepção, porque eu sabia, à partida, que a entrevista poderia ser muito melhor se ele se tivesse disposto a falar mais.
Em contrapartida, outros, menos "mediáticos", foram mais abertos. O tempo tornou as pessoas mais disponíveis para falarem de temas "difíceis"?
Tão difíceis que eu sei menos agora! Apetecia-me voltar a falar com eles todos. E com outros. Não me importava de recomeçar isto tudo outra vez. Mas as pessoas, realmente, dispuseram-se a falar e isso foi uma surpresa muito grande para mim. Porque era uma aposta um bocado no escuro, não sabia se havia já essa disponibilidade.
Ficou muito material no gravador? Costuma ser o "drama" das entrevistas...
É dramático e, curiosamente, 30 anos depois é o mesmo drama em estado quimicamente puro. Tenho um defeito, reconheço, que é não saber escrever curto. Não tenho a escola anglo-saxónica. Tenho o defeito dos adjectivos, do intimismo, e nas entrevistas ainda mais. Sei que é uma má escola, mas paciência, é a minha, foi assim que comecei... E depois, tão aliciante como a conversa com o entrevistado, é a parte do texto propriamente dito, quando me sento diante do computador e começo a montar - no sentido nobre do termo, evidentemente - a entrevista, a dar-lhe ritmo e fluidez. Um pouco, talvez, como um realizador de cinema quando monta o filme na moviola. E quando tenho que cortar um parágrafo sofro como se cortasse um dedo... É um drama sempre que faço uma entrevista, porque por mim fazia um jornal inteiro. Mas acaba por não sobrar muito material porque consigo negociar bem o espaço...
Mas as entrevistas vão sair no livro exactamente como saíram no PÚBLICO ou recuperou material não utilizado?
Mexi nas dos militares e nas de Manuel Lucena e de Vítor Cunha Rego. Alonguei-as, recuperando coisas que tinham ficado no gravador. Nas outras não mexi porque me tinham parecido já equilibradas como estão e também porque o livro não podia ter 500 páginas. Como foram os militares que fizeram o 25 de Abril, optei por aumentar as entrevistas com eles, em primeiro lugar, e as outras duas porque me pareceu que ficariam melhoradas.
Uma pergunta quase sacramental: tem algum projecto semelhante para os próximos tempos?
Tenho um projecto de um livro com o dr. Mário Soares, no qual estou a começar a trabalhar. Mas ainda não sei se será uma entrevista-"fleuve" ou se adquirirá outra forma. Estou no trabalho de preparação, que é exaustivíssimo e está longe de estar completado.
Mário Santos