Vasco Vieira de Almeida

Entrevistas conduzidas por Maria João Avilez -  "Público" (1994)

ENTREVISTA: VASCO VIEIRA DE ALMEIDA
 
Na adolescência leu muito, conheceu Cortezão e Sérgio, descobriu a política. Em casa a figura tutelar do pai foi desde cedo a referência fundamental, hoje ainda intacta, na saudade e na memória.
Na Universidade, o curso de Direito seguiu de par com uma intensa actividade politica começada nos bancos do liceu no MUD Juvenil. Entre 70 e 74, passa com brilhantismo pela Banca onde é olhado como um "sobredotado": é administrador do Português do Atlântico e, depois, Presidente do Conselho de Administração do Crédito Predial. Nos intervalos, continua a devorar livros, a praticar desporto, a tocar piano.
A queda da ditadura e o advento da democracia fazem-no de novo mergulhar na politica, desta feita, à luz do dia: é ministro da Coordenação Económica do primeiro governo saído do 25 de Abril de 74. Mas, logo a seguir, deixa o Terreiro do Paço na célebre crise Palma Carlos.
Em 75 muda-se para Luanda e em representação do Governo Português, é o titular da pasta da Economia no Governo de Transição de Angola. Duas experiências que ele resume de forma tão seca quanto frontal: "Foram duas reais derrotas".
Talvez também por isso - mas certamente pela sua aversão a cingir-se a disciplinas partidárias e outras -, desiste da politica e escolhe a advocacia. Hoje possui um dos mais reputados escritórios de Lisboa.
Vinte anos depois de ter vivido muita coisa, visto quase tudo e ouvido outro tanto, aceitou viajar por esses anos - tão polémicos quanto ele próprio.
Não contou tudo: a sobriedade, a discrição - e porque não dizê-lo, a aura de mistério que sempre o envolveu -, traços essenciais da personalidade e do carácter de Vasco Vieira de Almeida, impedi-lo-ão sempre de romper os segredos e os silêncios até ao fim.
 
PÚBLICO - Como chegou à politica antes do 25 de Abril? Pelo ambiente familiar, a personalidade de seu pai, a universidade?
VASCO VIEIRA DE ALMEIDA - Por isso tudo. Mas o ambiente familiar foi definitivo. O meu pai, que teve sempre uma grande intervenção cívica e politica, era excepcional pela cultura e pela inteligência, marcou-me muito. Foi preso duas vezes, a ultima das quais com setenta e tal anos. Em casa tive sempre um ambiente liberal, não empenhado ideologicamente, o meu pai era anti-ideologia. Por tudo isto lidei desde novo com gente da oposição: o Cortezão, o António Sérgio, etc. E no final do liceu entrei para o MUD Juvenil onde tive grande actividade política.
P. - Que prosseguiu na Faculdade de Direito?
R. - Sim, uma época em que conheci muita gente da oposição de quem passei a ser amigo: Carlos Brito, Pedro Ramos de Almeida, Veiga Pereira,João Monjardino,João Pulido Valente, ainda hoje grande amigo...
P. - ... gente mais ligada ao PC, ao contrário de outra esquerda, que já marcava a Faculdade nesse tempo... Isso influenciou-o desde logo?
R. - Não. Todos os meus amigos eram da oposição ao regime mas de todas as espécies... Havia os da Seara Nova - como o Vasco Martins - que nada tinham a ver com o PC e outros que provavelmente nessa época, ainda não eram comunistas, tinham apenas começado uma luta política. É verdade que discutíamos ideologia - eu discutia muito -, que estive muito próximo de gente ligada ao Partido Comunista - eram aliás pessoas que respeitava pela coragem política e por terem uma acção consequente -, mas não tiveram influência directa em mim.
P. - Não tiveram?
R. - Não.Aquilo que penso que aconteceu foi uma reacção minha contra o liberalismo do meu pai. Eu não era certamente um liberal, naquela altura estava muito próximo das ideias da esquerda, e influenciado pelos autores que lia..
P. - Quais, por exemplo?
R. - Fartei-me de estudar os revolucionários do século XIX, estudei o Marx concerteza e isso influenciou-me durante toda a vida. Ainda hoje sinto essa influência em certos aspectos... com as devidas reservas e distâncias. Nesse sentido, é verdade, estive muito próximo de muita gente que depois foi do PC.
P. - Mas você nunca foi?
R. - Não.
P. - Porquê, se tudo se encaminhava ou o encaminhava para lá?
R. - Pela mesma razão pela qual nunca fui para partido nenhum. Nunca fui. Na altura o que contava era sobretudo o meu gosto lúdico pela luta politica. Além disso era suficientemente heterodoxo para poder encaixar-me em partidos, sobretudo naquele que tinha a disciplina mais apertada. Mas naquela altura, no tempo da ditadura, não tinha duvidas em colaborar em acções concretas com o PC.
P. - O que o leva a ser preso mais que uma vez...
R. - Duas vezes: a primeira no dia das eleições do Humberto Delgado, em 58. A segunda, em 63, estava já na direcção do Banco Português do Atlântico.
P. - Da segunda vez, lembro-me de que se atribuía essa prisão ao facto de constar que era você quem dirigia e orientava as finanças do Partido Comunista...
R. - Era o que dizia a PIDE, nos interrogatórios...
P. - Se fosse só a PIDE que dissesse isso não me valeria a pena colocar-lhe hoje a questão. Justamente, havia sectores - alguns da oposição - onde isso circulava.
R. - Sim, isso constou na altura. A razão por que fui preso é simples: ajudei comunistas a fugir na célebre evasão da prisão de Caxias, abriguei-os na minha casa e depois distribuí-os pelos locais combinados. Havendo uma ditadura, eu ajudaria quem quer que fosse a lutar contra ela. E tive o maior gosto em fazê-lo naquela altura.
P. - Esse gesto não lhe causou "maçadas" com a administração do Banco onde trabalhava?
R. - Não e reconheço que isso foi extraordinário. Quando saí da cadeia disse ao Cupertino de Miranda que me ia embora por ele não poder ter na direcção um tipo que fora preso pela PIDE. O Cupertino respondeu-me apenas: "volte para a sua secretária e continue a trabalhar, os depósitos subiram". Foi o que fiz, voltei para a secretária, continuei a trabalhar...
P. - Já conhecia o dr. Álvaro Cunhal nessa altura?
R. - Não, só o conheci depois.
P. - Soube antes do 25 de Abril que ele iria ocorrer naquela data?
R. - Não.
P. - Mas logo a seguir começou a colaborar?
R. - Sim. Fui contactado horas depois. A primeira pessoa que falou comigo foi o general Galvão de Melo. Pediram-me que ajudasse a tomar as medidas económicas de emergência que se achava - e com razão - que eram necessárias dado o solavanco que o 25 de Abril iria provocar: as corridas aos bancos, etc. A seguir conheci o general Spínola e depois aquele grupo com quem viria a entender-me especialmente bem: o Melo Antunes, o Vítor Alves etc, que integravam a Comissão do Programa do MFA, creio que se chamava assim... Dois dias depois já estava a trabalhar na Cova da Moura.
P. - Trabalhava na direcção de um banco, estava a fazer uma carreira, tinha nome e prestígio. O que o fez saltar, de um minuto para o outro, para a Cova da Moura, para a revolução e para os militares?
R. - Várias coisas: o estar na Banca não era incompatível com uma acção politica e a história da minha prisão mostrava-o bem. Por outro lado, convenci-me naquela altura de que poderia ter interesse fazer política, construir qualquer coisa de novo. Mas não me passou pela cabeça, quando surgiu o 25 de Abril, que viria a integrar, logo a seguir, o I Governo Provisório...
P. - Foi convidado para Ministro da Economia, o país estava em efervescência e sem regras. O que disse a si próprio? Como mergulhou em tudo aquilo?
R. - O que disse a mim próprio? Basicamente que estavam criadas as condições de liberdade em Portugal e esse era para mim um objectivo fundamental. Mas por outro lado, nunca achei que a democracia fosse apenas o objectivo final: se era um objectivo em si mesmo, tinha também de ser instrumental na concretização de um projecto politico. A democracia formal só por si não me interessava...
P. - E esse projecto consubstanciava-se em quê, definia-se como?
R. - Naquilo que fora a minha posição ou no que era a posição da esquerda...
P. - Qual esquerda? Tratava-se do socialismo?
R. - Não, não era catalogável nesse aspecto. Era preciso fazer avançar a economia - que conhecera um desenvolvimento grande na época -, estabelecendo ao mesmo tempo regras de justiça social. Uma mistura de desafio com a necessidade de evitar um tipo de injustiças e desequilíbrios que eram patentes.
P. - E julgou isso possível? Até quando?
R. - Nos primeiros tempos julguei... Com entusiasmo, pensei que era possível construir a base de qualquer projecto... Mas rapidamente verifiquei que era impossível fazê-lo de forma concertada - apareceram logo todas as diferenças: de posição, de exigências, de intervenção política...
P. - Mas isso era natural! Estava uma revolução em curso... Como esperou que fosse de outra maneira?
R. - Era mais complexo do que eu pensara à partida: havia o PC com o seu projecto político e, para além dele, dois partidos praticamente inexistentes quando surge o 25 de Abril: o PS, que não tinha nem estrutura ideológica nem aparelho, era Mário Soares à frente de um pequeno grupo; e o PSD, a cujo nascimento assisti, na Cova da Moura, quando Sá Carneiro o foi apresentar ao general Spínola.
Ficou claro naquela altura que em vez de se revolverem os problemas concretos dando simultaneamente tempo a que se fizesse uma qualquer sedimentação, fez-se o contrário: começou-se a luta pelo poder, deixando a resolução das questões para depois.
P. - Do entusiasmo passou à preocupação?
R. - Passei. Por verificar que aquele caminho conduzia à destruição do tecido económico português o que mais tarde não podia senão desaguar em formas de capitalismo selvagem - a ultima coisa que eu queria que ocorresse.
P. - Fez ouvir a sua voz no Conselho de Ministros contra a ideia - que começava a circular - de que era preciso nacionalizar, por exemplo?
R. - Lembro-me de dizer que o acto de nacionalizar por si só, não valia nada. E de acrescentar que em Portugal estávamos sempre atrasados de uma revolução... Aquela era a revolução de há 50 anos na Europa! Simplesmente, era muito impopular dizer isto naquela altura. E foi aí que percebi que não tinha jeito para a politica... Tinha a sensação de dizer coisas certas no momento errado quando o que correspondia à politica útil, era dizer coisas erradas no momento certo.
P. - Dá-se então, em Maio de 74, a queda do I Governo, você sai na célebre crise Palma Carlos. Mas ainda antes: como se comportavam, no Conselho de Ministros,que atitudes tinham, Sá Carneiro, Mário Soares, Álvaro Cunhal? Como intervinham?
R. - Mário Soares - de quem era amigo há muito tempo -, devido a ser ministro dos Negócios Estrangeiros, viajava muito, vi-o relativamente pouco nessa altura. O Francisco Sá Carneiro - um verdadeiro social-democrata -, conhecera-o na época da Faculdade. Admirei-lhe a frontalidade, os princípios e o facto de actuar sempre de acordo com eles. Corria todos os riscos, era um homem livre a pensar, senti-me muito próximo dele em muitos aspectos... Embora vindo cada um de nós, de caminhos diferentes, e de posições politicas distintas, concordávamos no essencial: evitar a desordem e o caos, que levariam a extremismos de direita ou de esquerda. Lembro-me que fomos os dois um dia à Manutenção Militar, expôr ao MFA o que seriam as consequências daquela radicalização. Isto foi considerado uma terrível tentação de direita para evitar o processo que a ala mais radical do MFA queria pôr em marcha!
P. - E Cunhal?
R. - O dr. Álvaro Cunhal é pura e simplesmente fascinante. Perante ele, temos a sensação de conhecer um dos grandes personagens da história do nosso país. Um homem que pelo menos no Governo, sempre percebeu a necessidade de alguma moderação. Percebia o riscos dos excessos...
P. - ... só no Governo?
R. - Bem, a certa altura compreendeu que não podia ser ultrapassado por uma extrema esquerda muito activa. Mas a impressão com que fiquei - e que guardo hoje - é que, para além da figura excepcional de homem que é, sempre procurou - pelo menos no Conselho de Ministros -, ter alguma prudência.
P. - Intervinha muito no Conselho?
R. - Tenho a ideia de que o fazia fundamentalmente nas questões de princípio e não tanto nos problemas concretos que se punham na altura.
P. - Tem vindo a dizer-me que percebeu muito cedo o rumo que as coisas tomavam. Preocupou-se. Mas no entanto, ficou-se com a ideia de que poderia ter colaborado mais com o general Spínola... Bem ou mal, era ele que institucionalmente encarnava, pelo menos no início, o tal travão que você achava indispensável. Como Ministro da Economia, não lhe patrocinou - nem proporcionou - as reformas que ele terá querido...
R. - Não sei se se pode individualizar dessa maneira. Além disso, o poder não estava no Governo. Estava no MFA e nalguns partidos que o procuraram instrumentalizar. E havia duas posições: quem queria alguma ordem nas instituições para levar a cabo as reformas - grupo onde eu estava - e quem queria radicalizar, quebrar pontes, fazer roturas, para sobre isso construir de novo.
P. - O PCP? A extrema esquerda?
R. - A extrema-esquerda, nitidamente. Mais aquele batalhão colossal de oportunistas que sempre aparecem nestas coisas... Pessoas sem passado e sem projecto - que hoje vemos que não tinham o menor desejo de intervenção política - mas que procuravam navegar naquela confusão...
P. - Em quem está a pensar?
R. - Em grupos que nem sequer eram partidos... Grupúsculos que se situavam à esquerda do PS, como por exemplo o MES... Um núcleo pequeno, fechado sobre si próprio, extremamente radical e inconsequente. E como dentro do MFA os grupos mais radicais tiveram de início alguma superioridade, quem procurou resistir-lhes foram aquelas pessoas que se juntaram à volta de Melo Antunes e de Vítor Alves. E enquanto esta contradição não se resolveu dentro do próprio MFA, a confusão continuou...
P. - Entretanto, sai do Governo por solidariedade para com Palma Carlos?
R. - Não só devido a essa solidariedade, que existiu. Também por constatar a impossibilidade de implantar as tais medidas de estabilização para proceder às reformas.
P. - Foi uma derrota?
R. - Foi, obviamente.
P. - O que fez no dia seguinte?
R. - Recusei o convite para participar no II Governo... Nada mudara, não era um II Governo que iria fazer o que não fizera o primeiro. Como não fez. E como entendi que houvera uma clara derrota política daquilo que eu defendera, dispus-me a colaborar apenas em coisas concretas, não queria ser um político profissional.Aproximei-me mais de Melo Antunes e de alguns militares que viriam a formar o Grupo dos 9.
P. - Apoiou-o, por exemplo, na elaboração daquele Plano Económico, redigido em Sesimbra no final de 74...
R. - ... não colaborei com ele nessa altura. Mas a ideia do Ernesto Melo Antunes - e desse Plano - correspondiam exactamente àquilo que fora a minha própria visão dos problemas e da forma de os encarar. Mas depois meteu-se o 11 de Março. De resto, ele não é senão uma reacção contra essas pessoas e esse Plano...
P. - Entretanto, havia África e a questão colonial...
R. - ... que era extremamente importante! O golpe de estado do 25 de Abril surge fundamentalmente em função das guerras coloniais...
P. - A razão prioritária, final, do 25 de Abril foi, a seu ver, a situação colonial?
R. - ... julgo que foi. A experiência que eu tinha é que eram poucos os que lutavam activamente contra o regime. Havia uma massa gigantesca de gente, despolitizada, desinteressada, que deixava andar... É a guerra colonial - um problema insolúvel naquela altura - que cria a movimentação dos militares.
P. - Como é que olhava para essa questão antes do 25 de Abril? Defendia negociações rápidas tendentes à independência ou...
R. - Desde a universidade que defendia a independência, nunca acreditei na possibilidade prática de manter as colónias. Visitei Angola diversas vezes e percebi várias coisas: havia a justaposição de duas culturas, Portugal não tinha capacidade económica para desenvolver aqueles países e havia gente que, de facto, queria a independência. Parecia-me justificado, inevitável, e além disso, sempre fui anticolonialista.
P. - Mas assim como se preocupou aqui com o rumo das coisas, também o inquietou o rumo da descolonização ou achou-o inevitável?
R. - Parecia-me óbvio que a situação que então se vivia aqui, iria influenciar esse processo. Era fatal que as contradições internas vividas em Portugal se reflectiriam na descolonização, que iram ser transpostas para lá... O problema era conter as coisas... Quando fui para Luanda, constatei que havia nos soldados a sensação de que a guerra tinha acabado, queriam regressar o mais depressa possível... E nessa altura era impossível alguém bater-se pela ordem, ou mesmo bater-se pelo que quer que fosse. A ideia da independência imediata fazia sentido, desde que acompanhada por um sistema e um regime que estivesse a funcionar solidamente em Portugal. Não estava.
P. - No inicio de 75, aceita de novo um cargo ministerial, desta vez em Luanda, no Governo de transição. Repito a pergunta de há pouco: o que o fez saltar para Luanda, acreditar naquilo que mesmo de longe parecia uma tarefa "impossível"? Também pesou na decisão o facto de - como também circulou - a sua mulher ter simpatia pelo MPLA e de a sua família ter bens em Angola pelos quais convinha zelar?
R. - Eu sei que isso foi dito na altura mas não teve nada a ver uma coisa com a outra. Nem é o meu estilo ir daqui a correr para um cargo político em Angola salvar uns tostões seja de quem for! Fui porque me vieram dizer que iria haver ministros portugueses no Governo de Transição e que o meu nome fora apoiado por todos os Movimentos de Libertação...
P. - Quem lhe veio dizer isso? Quem foi o mensageiro?
R. - Não me lembro, mas fiquei espantado com o convite. Os únicos que admitia que me pudessem apoiar, eram os do MPLA, conhecia-os a todos, tinha sido testemunha num julgamento do Agostinho Neto, etc. Entendi que deveria ir, era um desafio, em Portugal não poderia fazer muito mais. Além disso, julguei que, indo, ajudaria a evitar o que não conseguira aqui.
P. - Que realidade foi lá encontrar?
R. - Encontrei comunistas que queriam ligar Angola à então URSS; oportunistas que queriam manter os negócios; gente que queria fazer uma federação. E, como pano de fundo, três movimentos de libertação, um dos quais tinha recebido auxilio logístico da União Soviética e onde estava muita gente que eu conhecera na Faculdade e que entendi que poderia ter nessa altura, uma visão oposta ou diferente da que vieram a ter sobre alguns problemas... Havia uma UNITA que no fundo tinha sido criada pelos portugueses e uma FNLA apoiada na época pelos americanos, mas que era um movimento sem grande expressão.
P. - Como vira os Acordos de Alvor?
R. - Tiveram consequências terríveis: meteram na mesma panela três movimentos que nunca poderiam entender-se, tanto que originaram a primeira guerra civil em Luanda, em 75. Parece-me um bocado complicado vir dizer hoje que as coisas poderiam ter sido diferentes...
P. - E dizer que foi tudo "inevitável"?
R. - Discordo que se diga exclusivamente isso, porque parece uma boa escapadela para a incapacidade política... Mas naquele caso era de facto impossível aguentar a situação. Aliás, quatro meses depois de lá estar, escrevi uma carta que dirigi aos três movimentos... [levanta-se, procura um papel, dá-mo a ler]. Com a redacção desta carta pretendi fazer o retrato daquilo que estava a ocorrer: a destruição de Angola através da luta pelo poder. Na prática não foi possível fazer de outra maneira.
P. - Teria, se pudesse, advogado outra orientação?
R. - Teria porventura apoiado logo desde o inicio o MPLA. Tinha quadros, eu conhecia bem o Agostinho Neto, o Lúcio Lara, o Mário e o Joaquim Pinto de Andrade, pareciam-me pessoas com quem se podia falar..
P. - Mas nesse caso, Portugal teria tido a capacidade - e a vontade - para diminuir a influência soviética sobre o MPLA?
P. - Não sei. Não nos podemos esquecer de que havia a guerra fria, o que fazia com que não fôssemos os únicos envolvidos nesta teia. Éramos apenas um dos peões naquele jogo. O choque entre os Estados Unidos e a União Soviética na guerra fria e a nossa passividade lançaram mais directamente e mais depressa o MPLA para os braços dos russos e dos cubanos do que se a nossa atitude tivesse sido mais clara.
P. - Tinha boa relação com o MPLA, era amigo pessoal de Agostinho Neto. Que lhes dizia?
R. - Entre muitas outras coisas, dizia-lhe que tivesse cuidado com as soluções socializantes... Se já não eram solução na Europa, um socialismo tropical seria ainda mais complicado! Além disso, o funcionamento de uma sociedade controlada economicamente -para além de ser aberrante com a revolução tecnológica - exige quadros e necessita de uma estrutura muito mais afinada do que uma economia de mercado. Ninguém fez muito caso, nacionalizou-se o comércio externo - uma coisa sem sentido nenhum...
P. - Mas você estava lá, era ministro, podia impedir!
R. - Vim-me embora quando isso foi feito...
P. - O que evitou então enquanto lá esteve? Nada?
R. - Não evitei grande coisa. Só estive cinco meses, procurei conciliar, no plano económico, o que os três movimentos queriam fazer.
P. - O êxodo e o escorraçamento dos portugueses não o afligia?
R. - Foi um erro colossal. Os portugueses que lá estavam não eram politicamente influentes, queriam simplesmente que os deixassem ficar: estavam há muitas gerações e nem sequer eram facilmente substituíveis. Havia muita coisa válida feita em Angola. A guerra obrigou a que se desenvolvesse, mas é indiscutível que muita coisa estava feita e bem feita.
P. - Falou com o Agostinho Neto sobre a perseguição dos portugueses?
R. - Lembro-me de que uma vez estava a ouvir no carro um discurso e quando o Agostinho Neto acabou de falar, fui imediatamente ter com ele. Disse-lhe que acabara de criar uma situação diabólica, sem resolução possível: por um lado, o querer socializar a economia, por outro, correr com os quadros portugueses. Os quais não só não lhe iriam criar nenhum problema político como estavam dispostos a aceitar a chefia política de um governo angolano.
P. - E também aí não conseguiu nada?
R. - Não consegui nada. Nesse aspecto a minha intervenção política - em Portugal e em Angola - salda-se por duas reais derrotas...
P. - Como era a vida em Luanda em 75? Como se vivia todos os dias? Você deve ter visto tudo, ouvido tudo...
R. - Passavam-se as coisas mais extraordinárias num quadro totalmente surrealista. Em Portugal, apesar de tudo, no PREC, havia quadros, havia uma classe média, em Angola isso não acontecia. As reuniões, a vida política, faziam-se numa tensão terrível, em plena guerra civil. E como ninguém estava preparado, as coisas mais elementares eram quase impossíveis. Ninguém sabia como se conduzia um Estado...
P. - Um Estado? E como se processava o Conselho de Ministros?
R. - Era complicado... O que vinha ao de cima, sempre, eram as lutas entre os três movimentos que depois davam origem a discussões totalmente fantásticas sobre problemas reais, concretos, perante os quais ninguém fazia a menor ideia do que estava a dizer! Tudo isto com os três movimentos actuando em liberdade em Luanda na luta do poder, num cenário de guerra fria, onde o Ocidente e o Leste lutavam pelo controlo final de Angola... E depois existiam também lutas sérias porque as pessoas andavam armadas...
P. - Creio que foi ainda consigo no Governo que, uma vez, um ministro abandonou a reunião do Conselho para ir matar alguém que na rádio estava a dizer mal dele...
R. - Parece que sim, que foi assim...
P. - Quem matou quem?
R. - Não queria falar nisso.
P. - Voltando àquela carta que me disse que escreveu aos líderes dos Movimentos, que eco teve ela? Que se passou a seguir?
R. - Fiquei mais uns tempos mas como a situação não melhorasse, saí. Não queria assumir responsabilidades na destruição de Angola nem na impossibilidade da salvaguarda dos interesses portugueses. Voltei para Lisboa. E repeti ao Presidente da República - general Costa Gomes - o que escrevera na carta.
P. - Como reagiu ele?
R. - Naquela altura tinha problemas semelhantes a resolver aqui em Portugal. Isto passa-se em 75, no verão quente - ainda longe do 25 de Novembro - , Costa Gomes sentia que não tinha nem meios militares, nem políticos, nem económicos, para controlar a situação em Angola.
P. - Voltou para Portugal amargurado, arrependido, desiludido?
R. - Não. Tinha a convicção de ter feito o que correspondia ao que eu pensava. Além disso, estava perante um processo contra o qual era inútil tentar bater-me.
P. - Desiste completamente da política, decide-se pela advocacia...
R. - Sim. Para tentar bater-me em Portugal, teria de entrar num partido político, lutar politicamente integrado numa estrutura partidária. Não me reconhecia em nenhum e não estava disposto - nunca estarei - a aceitar uma disciplina partidária. Resolvi então abandonar completamente a ideia de um dia voltar a intervir politicamente de forma consistente.
P. - Aqui, vou abrir um parêntesis: nem agora - com as "sugestões" avançadas pelo Palácio Belém, ao longo de 1993, para que se candidate às próximas eleições presidenciais - você vai rever essa posição?
R. - Pode escrever que não serei, em caso algum, candidato a Belém. E pode fechar o parêntesis.
P. - Passaram-se vinte anos: como viu, do seu balcão de advogado, os diferentes ciclos que caracterizaram a democracia portuguesa?
R. - Bem, a resposta seria longa. Vamos por partes: o período de hegemonia do PS foi relativamente curto e decorreu, sobretudo - como sempre ocorreu com este partido -, em fase de crise conturbada. Mário Soares foi e é o referencial de coragem e determinação, o lutador pela democracia sem o qual ela nunca teria vingado. A AD constituiu uma tentativa do homem excepcional que foi Francisco Sá Carneiro para criar as condições que lhe permitissem governar em alternativa à esquerda. O Bloco Central representou o início de uma fase que depois evoluíu para um período de acomodação da classe politica em perversão do sistema de compromissos de que falava Max Weber; o "eanismo" e o "cavaquismo" não existem enquanto doutrinas...
P. - ... mas alguém achará que foram ou são "doutrinas"?
R. - Não. O "eanismo", como experiência partidária, constituíu apenas um epifenómeno na vida politica portuguesa. O "cavaquismo" é uma técnica de controle da máquina do Estado orientada por uma acção política assente nos ciclos eleitorais.
P. - Passados estes vinte anos, que país é este?
R. - Também vamos por partes: omos em primeiro lugar um país democrático: subiu o nível de vida, generalizou-se o ensino, melhoraram-se algumas infraestruturas e fazemos parte da União Europeia. É bom não esquecer que isso deve aos que fizeram o 25 de Abril tornando possível a verdadeira transformação da sociedade portuguesa....
P. - Foi mais difícil realizar isso do que será agora corresponder aos tremendo desafios que nos espreitam?
R. - É indiscutível que, hoje, os desafios são mais complexos. Em 74 tratava-se de inserir Portugal no conjunto das democracias europeias ocidentais, num quadro que, sendo de guerra fria, estava estabilizado e era controlado pelas superpotências. Hoje vive-se em transição no plano ideológico, o mundo vive uma permanente revolução tecnológica e científica, tentando responder aos novos problemas postos ao capitalismo, alargando e sacralizando a noção de mercado e globalizando a acção dos seus agentes.
P. - Onde conduz tudo isso no plano político?
R. - Esta situação, em que praticamente não há dados fixos, leva contraditoriamente à tentativa europeia de criar mecanismos de decisão à escala continental, e de preservar localmente um sistema de democracia representativa basicamente herdado do seculo XIX.
P. - Portugal teria outro remédio que não fosse o da Europa Comunitária?
R. - Não tinha e por isso a opção foi correcta...
P. - Como olha hoje o futuro de Portugal na Europa?
R. - A liberdade de comércio, o desaparecimento de barreiras proteccionistas e a defesa de uma economia de mercado sem restrições, podem constituir princípios compreensíveis para os interesses dos países industrializados ou para as organizações que dominam, mas daí não se segue que assegurem a defesa dos interesses das nações mais pobres, apanhadas pela mudança radical das regras de jogo e num momento muito delicado do seu desenvolvimento...
P. - ... mas no que nos toca, acha...
R. - ... acho que com excepção da área do PEDIP, a aplicação dos fundos estruturais foi incorrectamente feita, pelo que creio ter-se perdido a grande oportunidade de modernização do país que era vital ter-se feito....
P. - Um olhar pessimista ou... afinal o único olhar possível?
R. - Deixo apenas uma pergunta em função do que acabo de lhe dizer: poderemos aceitar o sacrifício de inteiros estratos sociais, a deterioração - nalguns casos irreversível - do nosso tecido produtivo, a troco da participação num espaço económico-político, ele próprio de futuro incerto?
P. - Porque a própria Europa deixou a de ser uma referência fixa?
R. - A sua evolução recente impõe-nos uma reanálise da nossa estratégia, não no sentido da saída da União mas da reavaliação dos nossos objectivos a longo prazo. É verdade que a Europa deixou de ser uma referência fixa e segura, pela qual era possível estabelecer uma orientação. Ela começa antes a surgir, hoje, como um espaço económico cheio de contradição internas, em que voltam ao de cima não só os interesses dos países mais ricos, como decorre num pano de fundo em que o retorno dos nacionalismos e a necessidade de alargamento a leste serão factores crescentes de instabilidade e erosão dessa pretendida coesão politica.
P. - Então?
R. - Obviamente não há soluções pré-fabricadas nem fáceis, mas é necessário fazer uma reflexão sobre tudo isto. E embora possa parecer parodoxal, a fase de transição que atravessamos não exige formas de navegação à vista orientadas por uma burocracia que administre, mas antes impõe um projecto colectivo a prazo conduzido por um governo que governe.