Entrevista com Saldanha Sanches

ERA UMA VEZ UM MILÉNIO

Entrevista com Saldanha Sanches e Fernando Rosas
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”

Por Pedro Veiga, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.


24 de Abril de 1974, 22h 55min, a transmissão da canção "E depois do adeus", interpretada por Paulo de Carvalho aos microfones dos Emissores Associados de Lisboa, marca o início das operações militares, planeadas pelo MFA, com o objectivo de derrubar o regime ditatorial vigente em Portugal desde 28 de Maio de 1926.
25 de Abril, 00h 20min, a transmissão da canção "Grândola, Vila Morena" de José transmitida na Rádio Renascença, é o sinal confirmativo de que as operações militares planeadas pelo MFA estão em marcha e são irreversíveis. "Grândola, Vila Morena" era a senha para o início das operações militares que iriam pôr fim a uma das mais longas ditaduras europeias, 42 anos. 25 de Abril de 1974, um dia que ficará para sempre ligado à História do nosso século como ligada ficará a figura desse capitão generoso, Salgueiro Maia.
No programa de hoje vamos até esse dia de Abril, há 23 anos. Dias vividos tão intensamente, com alegria e esperança. Fernando Rosas trouxe um convidado, Saldanha Sanches, que, como muitos outros, estava preso em Caxias. Nas ruas, a população dava vivas à liberdade e cantava "Grândola, Vila Morena". E nas prisões como era?
E vamos de facto dar um salto no tempo e na nossa História e vamos até 25 de Abril de 1974, há 23 anos. Vamos recordar esse dia e essa madrugada tão importantes para todos nós e connosco está Saldanha Sanches que tem uma experiência riquíssima e que nós queremos compartilhar com quem nos ouve para que não se esqueça. Saldanha Sanches é difícil esquecer e é ainda fácil recordar tudo isso, não é?
Saldanha Sanches - Sim é fácil recordar. Não envolve nenhum especial trauma. Da madrugada não posso dizer nada, estava a dormir. Estava a dormir descansadamente - porque as cadeias são um local em que se pode dormir bem - porque não senti aquelas sensações da parte de fora, do exterior e mesmo de dia também nada aconteceu. O dia 25 de Abril em Caxias foi um dia quase normal. A única coisa que saiu da rotina foi não ter ido para a Boa-Hora uns presos ao lado que deveriam ter ido e não foram. Aliás, pensavam até que não iam porque o seu advogado tinha colocado uma questão processual muito interessante que levava à tortura e coisas como essa. O juiz estava muito indeciso porque havia de facto muito fundamento jurídico para aquilo e o juiz não devia concordar com isso e eles julgavam perante isso o juiz adiou a audiência. [Locutora - E isso pareceu estranho?] Pareceu estranho, mas enfim, não tinha nada de particular. Aliás, devo dizer que na cadeia havia um grande cepticismo quanto à hipótese de golpe militar. Parecia-nos uma hipótese um pouco ridícula. É conhecida uma série de golpes militares falhados e aquele parecia mais um deles. Portanto a ideia geral é que não haveria nunca nenhum golpe militar e portanto essa hipótese não circulava com intensidade na cadeia. Logo, era apenas um caso estranho, nada de particular. Ora nessa altura não havia visitas porque havia um processo qualquer de luta e havia um corte completo com o exterior, nem visitas nem jornais. Bom, até ao fim do dia tudo normal, com alguns indícios estranhos, mas estranhos apenas, nada de particular, até que vimos uma coisa que era iniludível. Não havia trânsito na rampa da Gibalta num dia de semana. [Fernando Rosas - Estamos a falar em Caxias] Em Caxias em que se via a rampa da Gibalta cá fora e isso é que era extremamente estranho porque o trânsito é um fenómeno sempre recorrente nunca pára, é sempre igual, e ao fim do dia começámos a ficar um pouco desconfiados e começaram a revelar-se indícios, íamos conversar à janela uns com os outros, mas em todo o caso não havia nenhuma certeza. Nessa noite ainda dormimos todos, enfim, com alguma tranquilidade porque havia apenas suspeitas [Fernando Rosas - E os guardas? Vocês não...] Os guardas estavam mais delicados, mas nada de particular também, mais delicados, apareceram à última hora, pareceram-nos ao fim do dia um pouco estranhos, mas nada de significativo. [Locutora - Estamos a falar do dia todo de 25 de Abril] 25 de Abril! Até que no dia seguinte de manhã, acordamos e, de repente, alguém põe-se aos gritos, estava aquilo rodeado de pára-quedistas. Quando vou à janela e reparo que havia assim... [Locutora- Portanto, alguém, é um preso] Preso, um de nós... [Fernando Rosas - Quer dizer que no dia 25 de Abril não tiveram visitas, não...] Não, nada. Nem jornais, nem visitas, por causa desse corte com o exterior provocado pela tal luta... [Locutora - Mas estavam apreensivos. Pensavam que alguma coisa se estaria a passar] Ficámos mais apreensivos quando vimos os pára-quedistas. Conhecíamos [Locutora- Quem são?] a sua crónica na guerra colonial e não achávamos aquilo simpático. Achámos aquela situação um pouco ambígua. [Fernando Rosas - Passou-vos pela cabeça que poderia ser um golpe de extrema direita...] Não se excluiu essa hipótese. Pára-quedistas, com fardas camufladas, com todo, digamos, o ambiente rebelde pára-quedista, naquela altura ali não era muito tranquilizador. Só passou a ser quando foram às salas dizer que havia um golpe e nós tínhamos todos sair. [Fernando Rosas - Quem é que disse? Quem que veio dizer] Um capitão ou tenente pára-quedista. [Fernando Rosas - Mas não os guardas!] Os guardas aí já estavam completamente fora de cena à espera do que acontecia e preocupando-se com o seu futuro. [Locutora- Assustados, assustados] Assustados. [Locutora - Vocês pressentiram isso? Desculpe Fernando] [Fernando Rosas - Abriram-vos as celas?]. Abriram, fomos todos para o pátio de repente, o pátio cá de baixo, encontrámo-nos todos uns aos outros, as pessoas que conhecíamos e que não conhecíamos, mas por pouco tempo. Depois voltámos para as celas porque havia que era uma ordem naquela coisa toda e não podia sair toda a gente. O Spínola a esse respeito era intransigente, embora quem estivesse em causa não fosse a extrema esquerda, fosse a LUAR. A LUAR tinha assaltos, tinha bombas e portanto o general Spínola começou por achar que a LUAR não poderia sair. [Fernando Rosas - E vocês tiveram conhecimento dessas condições?] Todas. Aí era a abertura completa. Ia-se para as celas, saía-se das celas, fala-se com oficiais, fala-se com pessoas, aí todo o ambiente da cadeia estava de pernas para o ar. [Fernando Rosas - Tomaram alguma posição perante isso?] Foi uma proposta(?), curiosamente, posta pelo PC, devo confessar, por causa também da ARA, claro [Fernando Rosas - Da ARA, claro] em que dizia que só sairíamos se saíssemos todos e não saía ninguém se não houvesse esse acordo. Nós concordamos todos que era a única possibilidade. [Fernando Rosas - Havia unanimidade] Pois é suspeito, não podia haver outra posição, claro, claro. Mesmo que essa proposta vinda do PC com quem geralmente discordávamos de tudo por uma questão de dever profissional. [Locutora - Mas vocês conviviam todos lá dentro? Não...] Em Caxias sim, em Peniche não. Isso aí era muito variável. Em Peniche tinha-se chegado a uma situação de completa reclusão em separação. Como sabe, aliás, o Fernando Rosas muito bem. [Fernando Rosas - Sim, até em Peniche havia uma separação política dos presos. Até por iniciativa dos próprios presos porque havia grandes incompatibilidades de atitude e de condução das lutas prisionais e portanto quando eu estive lá, havia já essa separação, pouco antes] Pouco antes, após uma situação de quase pancada física entre presos de vários grupos políticos, que levaram à separação por andares. [Fernando Rosas - E vocês quando estavam em Caxias nesse 25 de Abril tiveram contactos com emissários vindos do exterior acerca dessa problemática de saída]. Os advogados davam esse tipo de notícias, mas só que na minha sala, aliás estava só eu e um homem chamado Joaquim Carreira, um velho militante do PC, hoje velho, mesmo velho, quer dizer com uns setenta anos, como é inevitável e ambos achávamos que aquilo era uma coisa completamente mirífica. E contavam-se as velhas histórias dos golpes do coronel Gomes que falhavam sempre, combinados com os quartéis de Lisboa que iam ser denunciados, depois com a tropa sempre a recuar à última hora. Portanto achávamos que todos esses boatos eram boatos infundados, não podia ser, não é. Subestimávamos claramente o que se passava com o exército.
Fernando Rosas - Quem foram os advogados que vos apareceram?
Saldanha Sanches - Ah, não, mas isso é uns dias antes. Penso que o Victor Wengorovius, vagamente. Quem me apareceu lá foi o Jorge Sampaio. Aliás, tropecei nele no corredor, ia carregado com livros dentro de um lençol porque aquela saída sem pré-aviso foi um bocado incómoda. Tinha lá imensos livros na sala e tive que os trazer todos cá para fora no mesmo dia como era o meu hábito. Então eu vinha para o corredor e, de repente, aparece o Jorge Sampaio e espalho uma série de livros pelo corredor fora. Pelos quais ele me perguntou mais tarde quando me encontrou na rua. Havia já essa negociação com os advogados, a porem à tropa a questão de libertarem toda a gente e não apenas alguns.
Fernando Rosas - Porque cá fora o que se passava é que as famílias, os amigos, as pessoas começam a convergir massivamente para Caxias. Essa palavra de ordem depois também se propaga, 'Toda a gente para Caxias!' e cria-se um clima de grande expectativa ao longo do dia 26 com milhares de pessoas à espera, mas havia boatos. Eu lembro-me de que cá fora havia os boatos mais desencontrados, mas havia a ideia que na Junta de Salvação Nacional o Spínola tinha tomado a posição, realmente, de que os chamados crimes de terroristas e de sangue, aplicava-se aos presos da FAP. [Saldanha Sanches - Havia dois, havia o João Pulido e o Francisco Martins Rodrigues condenados] e o Rui d'Épinay. [Saldanha Sanches - Não, aliás dois o João Pulido Valente não, o Francisco Martins Rodrigues e o Rui d'Épinay condenados por terem morto um provocador, um homem da PIDE que tinha entregado à cadeia o João Pulido Valente e depois foi morto por eles]. Tanto que em Peniche, segundo eu creio, os presos saem ainda mais tarde que... [Saldanha Sanches - Ainda mais tarde, essa parte eu sei pelos jornais, mas sei que ainda houve uma coisa muito complicada em que saíram só umas horas depois, ficando até o Rui d'Épinay e o Francisco Martins Rodrigues em casa do advogado num regime de confiança, uma espécie de fiel depositário, mas isso durante umas horas. Depois as soluções são ultrapassadas pelos acontecimentos.] Exactamente, o que eu acho é que houve mesmo uma grande ultrapassagem pelos acontecimentos, as pessoas começaram a afluir, a afluir, a afluir e a certa altura, eu lembra-me desse clima porque já o vivi, era absolutamente impensável que não ia sair toda a gente. [Saldanha Sanches - Essa viragem foi quando soubemos que os militares iam pôr os pides nas nossas celas]. Exactamente. [Saldanha Sanches -Limpem as celas bem, por favor, que vão para lá os senhores que vos prenderam. Ficámos um bocado espantados porque dava outro carácter ao golpe, não era uma mudança de governo apenas, era muito mais do que isso.] Porque, entretanto, na altura em que ao longo do dia 25 vocês estavam na ignorância do que se passava, já em Lisboa se tinha ensaiado o assalto popular à [Saldanha Sanches - PIDE] que muda a relação com a PIDE e portanto é durante a tarde do dia 25 [Saldanha Sanches - E obriga os militares a decidir o que é que se faz à PIDE] Exactamente [Saldanha Sanches - O que levava a pensar que viu-se na altura. Viu-se claramente, uma mudança de horas.] Se é que da parte, pelo menos, do Spínola e dos outros oficiais não havia mesmo a intenção de manter a polícia com algum estatuto de confiança relativamente ao Movimento Militar, etc. [Saldanha Sanches - Ou saniá-la.] Ou saniá-la [Saldanha Sanches - Os Comandos]. Eu acho que o assalto popular à polícia muda, de repente, aquilo tudo, bom e a dinâmica toda, de facto, naquelas horas que é imparável. [Saldanha Sanches - Cada hora ultrapassava a hora anterior.] Cada hora ultrapassava tudo. Quer dizer ao mesmo tempo que o MFA estava a emitir programas sucessivamente alterados. [Locutora - E a apelar à calma e as pessoas não saírem de casa, não é.] Isso a partir de certa altura é completamente imparável. O próprio MFA começa a fazer programas diferentes e em Caxias, nomeadamente, começam a afluir milhares de pessoas. Aquilo começa a juntar-se, a juntar-se, a juntar-se e era uma questão, os próprios..., o ambiente criado tornava impensável que saíssem uns e ficassem outros. Isso não há dúvida nenhuma que era assim mesmo.
            "Entre as 0h30 e as 3 horas é preso o Comandante da Escola Prática de Cavalaria, aquartelado em Santarém. Uma força desta unidade toma o rumo de Lisboa. Ao mesmo tempo, registam-se movimentações militares em Tomar, Vendas Novas, unidades da Região Militar de Lisboa, Caçadores 5 e Cavalaria 7, Figueira da Foz, Viseu, Lamego, Mafra, Estremoz e outros pontos. 3 horas, verifica-se a ocupação simultânea de pontos vitais da capital. Quase sem resistência, foram tomados o aeroporto, o Rádio Clube Português, a Emissora Nacional, a Rádio Televisão Portuguesa e Rádio Marconi. Entretanto, eram cercadas as áreas onde se situam o Quartel General em São Sebastião da Pedreira e o Quartel Mestre. É encerrado ao tráfego aéreo o aeroporto da Portela. 4h30, o Movimento das Forças Armadas difunde o seu primeiro comunicado através dos microfones do Rádio Clube Português. "Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas. As Forças Armadas Portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolherem a suas casas nas quais se devem conservar com a máxima calma. Esperamos, sinceramente, que a gravidade da hora que vivemos não seja tristemente assinalada por qualquer acidente pessoal para o que apelamos para o bom senso dos Comandos das forças militarizadas no sentido de serem evitados quaisquer confrontos com as forças armadas. Tal confronto, além de desnecessário, só poderia conduzir a sérios prejuízos individuais que enlutariam e criariam divisões entre os portugueses o que há que evitar a todo o custo. Não obstante a expressa preocupação de não fazer correr a mínima gota de sangue de qualquer português, apelamos para o espírito cívico e profissional da classe médica, esperando a sua acorrência aos hospitais a fim de prestarem eventual  colaboração que seja, aliás, que se deseja sinceramente desnecessária". Novo comunicado. É aconselhada a máxima prudência no sentido de evitar quaisquer confrontos perigosos. 6h45, difundido novo comunicado do Movimento a dar conta do cerco da cidade por unidades militares. Os comunicados multiplicam-se, enquanto o Rádio Clube Português passa a transmitir música portuguesa e marchas militares. Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e Zeca Afonso, além doutros. Surgem nos receptores de milhões de portugueses. Caíra a barreira que sempre estorvara a audição dalguns dos nomes mais significativos da música portuguesa. Às 7h30 é lido novo comunicado".
Locutora - Alguns parece que terão tido conhecimento de que alguma coisa se passava por sinais dos carros, lá longe.
Saldanha Sanches - Ouvi essa história depois de sair da cadeia. É capaz de ser verdade, mas não posso confirmar. Aliás, se calhar, não acreditaram lá muito…. Aquilo era tudo tão estranho - o regime a cair de repente - que ninguém acreditava muito bem. Não podia ser. Deviam ser alucinações, alucinações através do sono, como que alucinações, porque aquilo não podia ser. Aquilo era   impossível!
Fernando Rosas - Exactamente.
Locutora - Nunca acreditou, enfim, e sempre acreditou que aquilo teria um fim, mas...
Saldanha Sanches - O Regime teria um fim, a luta popular, a luta de massas, assim, a revolução, mas nunca o Exército! Que era o principal pilar do Regime...
Locutora - Pois. Fernando Rosas, como historiador, como é que o Exército...
Fernando Rosas - O caso, o caso. Eu acho que o caso da desagregação do Exército é um caso particular de, relativamente aos golpes militares do século XX português porque é um caso em que há uma desagregação que se opera não tanto ao nível dos altos comandos ou da posição contrária à política de guerra francamente minoritária. É o caso, praticamente, dos generais Spínola, Costa Gomes, do almirante Bagulho e de muito pouco mais, mas passa-se ao nível da oficialidade intermédia que é quem faz a guerra de quadrícula. Portanto eram os comandantes das companhias que faziam a guerra de quadrícula e esses, a partir do momento em que para eles, a continuação da guerra era insustentável, eles operam no Exército um corte transversal que retira ao Exército operacionalidade e portanto os Comandos vão quase, unanimemente, ainda nas vésperas do 25 de Abril prestar, a célebre "Brigada do Reumático", prestar homenagem ao Marcelo Caetano, convencidos. Há duas ilusões muitas interessantes, é a da maioria dos Comandos que estão convencidos que têm o Exército e é a do Spínola que está convencido que também ele que tem o Exército com ele.
[Saldanha Sanches - Aliás, o oficial que entrou na nossa sala disse isto é um golpe militar dirigido pelo general Spínola, pelo nosso general Spínola. Aliás, deve ter respeito, não é.]
Locutora - Porque havia um grande respeito ao general Spínola.
Fernando Rosas - Sim, mas havia, o Spínola estava convencido de que tinha uma coisa que não tinha porque a oficialidade, ela própria, a oficialidade intermédia organiza-se com organismos próprios, através da Comissão Coordenadora do Programa e o Spínola nas primeiras dias ou semanas do golpe é um general sem exército, é um general sem exército. Praticamente é um general sem exército. Há esta dupla ilusão, é muito interessante porque os Comandos afectos ao Regime estão convencidos que têm exército e o Spínola está convencido que ele também tem o Exército e nenhum deles tem. Quer dizer, o Exército entra em auto-gestão a partir do nível intermédio da oficialidade e isso é visível [Locutora - Os quadros novos, não é]. São os homens que faziam a guerra. Os capitães. A guerra colonial era feita por quadrículas no terreno, cada quadrícula correspondia, sensivelmente, a uma Companhia comandada por um capitão. Portanto a esse nível da oficialidade intermédia, jovens, capitães, que estão bloqueados na ascensão numa guerra que não tem fim à vista e que estão fartos de malhar lá para fazer comissões, é todo esse sector que assegura a operacionalidade do Exército que se passa, que resolve conspirar e fazer uma revolta. Nem eles próprios tinham consciência absoluta daquilo que iam desencadear, muito menos os oficiais generais, mesmo os que tinham algum conhecimento do golpe e penso que de facto, a partir daí as tensões acumuladas, quer dizer, o que se passa é que o fraccionamento e o esboroamento da autoridade do Estado funcionam como uma espécie de... [Saldanha Sanches - É um processo cumulativo. É um processo cumulativo. Depois cada um faz o que quer.] Há um processo cumulativo em que de repente a autoridade do Estado desaparece. [Saldanha Sanches - Começou naquele dia e vai continuar.] É um processo de pulverização engraçado porque repare, passado uma semana, nós tínhamos cinco órgãos, pelo menos cinco órgãos de Estado, tínhamos a Junta de Salvação Nacional, tínhamos o Governo Provisório, a partir do momento em que há Governo Provisório, tínhamos o Conselho de Estado, tínhamos a Comissão Coordenadora do Programa e não sei se me está a faltar algum, mas pelo menos todos com poderes e competências paralelas. [Saldanha Sanches - Quem estava a policiar as ruas eram os militares. A PSP mete-se nas esquadras, sai da rua e os militares ficam a policiar a cidade.] E Guarda Republicana também desaparece. [Saldanha Sanches - Desaparece completamente. Quer dizer, o Estado cai por cima e por baixo.]. É.
Locutora - Original!
Fernando Rosas - É um processo bastante interessante, desse ponto de vista da história dos movimentos militares em Portugal é um processo completamente novo que não tem nada a ver com o 28 de Maio ou com os golpes militares que o antecederam, nem sequer com a maioria das tentativas, como a Abrilada de 61 que é um golpe com uma lógica, a meu ver, bastante diferente.
Saldanha Sanches - Ou mesmo aquele golpe de Beja que era um golpe pequeníssimo... [Fernando Rosas - Sim, mas isso...] Mas isso quanto a oficiais. [Fernando Rosas - Mas aí não está o exército.] Aí não está o Exército.
Fernando Rosas - Aí não está o exército. Aí são revolucionários civis com alguns militares a disfarçar.
Saldanha Sanches - Embora dissessem muito as pessoas de Beja que havia muito mais militares envolvidos que depois à última hora dão a volta e passam para o outro lado, recuam...
Fernando Rosas - Mas sabes que isso é uma coisa que nunca se conseguiu demonstrar. [Saldanha Sanches - Pois...] Provavelmente, estavam homens com compromisso pessoal e não há, não há nenhuma evidência empírica de grandes compromissos a não ser umas amizades vagas, umas promessas, isto ao nível do Varela Gomes, sobretudo. Muito ao nível do Varela Gomes. Este é um golpe militar que tem tudo a ver com a Guerra Colonial e tem a ver com o papel que ela desempenha na desagregação final do Regime, não há dúvida nenhuma.
Locutora - Saldanha Sanches, há quantos anos estava preso quando 
Saldanha Sanches - Estava há muito pouco tempo.
Fernando Rosas - Já ia no segundo ciclo.
Locutora - Nessa altura era assim, saiam, voltavam, não é?
Saldanha Sanches - Só quatro ou cinco meses.
Fernando Rosas - Tinha estado preso seis anos. Antes disso já tinha feito [Locutora - Pois é isso, quase que tinha um lugar cativo, saíam, depois voltavam e tinha pela frente ainda muito tempo?]
Saldanha Sanches - Talvez três, quatro anos. Sem as medidas de segurança não ia ser assim muito. [Fernando Rosas - Até porque as medidas de segurança tinham acabado.] Talvez quatro, na pior das hipóteses talvez cinco... [Fernando Rosas - Como era reincidente a pena maior era quatro.] Não era reincidente. Era um crime diferente, era um Partido diferente, logo não havia sucessão nem havia reincidência.
Locutora - Bom e acabaram por sair, quando? Na noite de 26?
Saldanha Sanches - Não na tarde ou na manhã? Espere aí. Foi à tarde. Estava já a anoitecer.
Locutora - O Fernando Rosas estava lá?
Fernando Rosas - Estava. Estava lá. Estava cá fora.
Locutora - Claro, claro.
Saldanha Sanches - Exactamente. Agora estou a ter a imagem. Nós saímos já com o crepúsculo a cair sobre a cidade.
Locutora - Como é que foi? Como é que...
Saldanha Sanches - Uma coisa espantosa. De repente chegámos ali aos gritos, encontrámos pessoas, abraços e mais abraços. As pessoas à espera, saudações revolucionárias. Vamos descendo, vamos descendo, depois a família logo lá em baixo. Depois vai-se para casa, não se sabe bem como. E depois tudo aquilo foi assim uma daquelas coisas espantosas. [Fernando Rosas - Depois foi um torvelinho.] Faz parte, faz mesmo
Locutora - Depois foi uma festa, não é. Não se parou mesmo. Fernando Rosas, só este golpe, podemos chamar um golpe [Fernando Rosas - Tecnicamente é um golpe.] Tecnicamente. Só teve sucesso porque de facto o Exército estava lá metido porque de outra maneira não era possível. Não?...
Fernando Rosas - Pois, a teoria duma revolução popular, etc. mesmo na sua ortodoxia tinha sempre que passar pela adesão, mesmo de acordo os princípios, com uma parte significativa do Exército porque o Exército era o pilar do Regime e portanto se o Exército, pelo menos se não se dividia não havia hipótese. Neste caso o golpe, é um golpe que parte do Exército, mas que parte duma camada intermédia, jovem, de militares, é um golpe com essa particularidade que eu há pouco citei, mas sem isso, naturalmente, era muito difícil. Sem o Exército, de alguma maneira, se pusesse do outro lado era praticamente impossível derrubar um Estado que tem como pilar fundamental o Exército [Saldanha Sanches - E a polícia...] O aparelho militar, o aparelho militar policiado. Agora, o que é interessante é que a PIDE de facto fica, o papel da PIDE neste golpe é um papel... [Saldanha Sanches - Ela sabe.] Ela sabe. Não pode deixar de saber e deve estar, simultaneamente, neutralizada por cumplicidades na própria PIDE com alguma parte do... Uma ideia de que o Spínola, o Spínola, não há dúvida, tinha um homem de mão na PIDE, um inspector que ainda tenta negociar inicialmente e não eles podiam deixar, eles tinham acompanhado as reuniões dos capitães. Há documentação na polícia que demonstra que eles sabiam que estavam a reunir. O que eles subestimaram, talvez o que eles subestimaram, penso eu, foi a capacidade operacional dos capitães. Eles achavam que, eles tinham muito a ideia clássica que aquilo era uma coisa só do golpe. Só eram os generais que o faziam, prestaram muita atenção aos generais, mas subestimaram a montagem do plano operacional que é muito tardio, como sabe. Eles começam a pensar no Movimento militar em termos operacionais nos finais, já muito de 73 e eu acho que eles subestimaram muito isso. [Locutora - Vocês na cadeia tinham...] Aquilo era quase primitivo, a maneira como eles [Saldanha Sanches - Aqueles erros todos. Era o catálogo dos erros todos da...] Absolutamente. A ordem de operações foi dada num jornal a um tipo que se ia encontrar... [Saldanha Sanches - Pondo-se em fila.] Pondo-se em fila, exactamente. [Saldanha Sanches - Entrava um, saía outro.] Eles talvez tenham subestimado ou então não quiseram, não quiseram agir. [Saldanha Sanches - Aquilo eram uma contestação militar mais do que um golpe. Era uma coisa massiva. Um protesto com toda a gente a fazer aquilo.] O que é facto, o Marcelo Caetano queixa-se de que nunca foi informado do nível, nas Memórias que escreveu, nos escritos que ele fez depois, queixa-se sempre de que nunca foi informado do nível de operacionalidade. [Saldanha Sanches - Isso parece que é costume com os golpes, também sempre que há um golpe no Mundo a CIA não informou o presidente que se queixa imenso disso. Não se sabe porquê, mas nunca são informados das coisas próprias ou não ouvem.] A CIA estava muito distraída cá. A antena da CIA cá estava muito desmobilizada. Estava muito desmobilizada. Era uma coisa secundária. [Saldanha Sanches - Uma colónia de férias. Vinham para cá de férias.] Exactamente.
Locutora - Se não estivesse as coisas talvez não tivessem corrido assim...
Fernando Rosas - Talvez, não sei, nunca se sabe, não é. [Saldanha Sanches - Eles não se iam opor muito. Isso também não é o trabalho deles, não é!] Não sei qual poderia ser a política da Agência para uma coisa destas. Não faço ideia. [Saldanha Sanches - Eles estavam a jogar no golpe também...] Mas o Spínola não era um militar muito antipático para eles. Era um homem que oferecia uma solução de transição possível, tinha autoridade. Não sei quê, não sei que mais. Quer dizer, enfim, mas isso é especular.
Locutora - Claro. Saldanha Sanches, mas portanto, quando, vocês presos, quando já sabiam do golpe, qual foi a vossa relação com os guardas. Ficaram com medo, eles estavam com medo?
Saldanha Sanches - Eles estavam com medo e recuaram imediatamente. Quer dizer, também não era altura para fazer ajuste de contas individuais pelos corredores.
Locutora - Não, pois claro que não!
Saldanha Sanches - Eles desapareceram quase, ficaram em pânico. Aquilo foi gradual. Depois vieram os militares, os guardas foram desaparecendo e depois vieram os militares ocupar o lugar dos guardas. Os guardas foram desaparecendo pura e simplesmente. Aí eclipsam-se. Já não estão lá mais. Aliás, repare que em relação à hostilidade principal não era com os guardas, era com os Pides. Os guardas eram apenas legais.
Locutora - E a PIDE nessa altura estava lá...
Saldanha Sanches - Não, nunca. Porque, repare, o legalismo do Estado Novo fazia com que as cadeias estivessem ocupadas apenas por homens dos Serviços Prisionais. Os Pides estavam a investigar, a torturar noutra sede, noutra zona. [Fernando Rosas - Que nem era longe...] Era pertíssimo, para poupar gasolina, claro. Quem estava nos corredores eram homens dos Serviços Prisionais, alguns, enfim, muito pouco simpáticos, mas apesar de tudo, digamos, Pides de segunda linha, pelo menos, terceira. Foram eles que foram tomar conta dos Pides logo a seguir. Logo a seguir com muito profissionalismo, não é!
Locutora - Como bons profissionais...

25 de Abril de 1974. Há 23 anos. Um dia que ficará para sempre ligado à História do nosso século, à História de Portugal.

Fizeram este programa Pedro Veiga, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.

"Era uma vez um milénio". Em tempo de mudança, a História do Século XX.
(Programa gravado da Antena 2 no dia 25 de Abril de 1997)

Transcrição : Irineu Batista