Entrevista com Rui Mário Gonçalves - Estado Novo e Artes plásticas

ERA UMA VEZ UM MILÉNIO
 
Entrevista com Rui Mário Gonçalves
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”

Por José Araújo, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
 
 
E continuamos a História do nosso século e continuamos em Portugal e no Estado Novo. Desta vez para falar do Estado Novo e as artes plásticas. Connosco está Rui Mário Gonçalves, crítico de arte. Rui Mário Gonçalves a primeira pergunta. A relação entre a arte e a política.
Rui Mário Gonçalves - A relação entre a arte e a política. [Locutora - Isso vai abrir caminho? Talvez.] Isso é um problema que pode ser, de resto, extraordinariamente vasto porque certamente nos iria fugir dessa circunstância de termos de falar das relações da arte com o Estado Novo porque é em si mesmo é uma problemática que pode ser tratada de muitas maneiras e a maneira mais simplificada é esta. A arte como uma invenção de linguagem é também um dos instrumentos mais poderosos e agudos para a consciencialização das situações. Então para não ser eu a repetir ou ter frases minhas, prefiro repetir um poeta como o Paul Éluard em que ele dizia que o poeta é que põe os problemas. Essa é que uma das questões de método que devemos abordar. Geralmente nós temos opiniões de ordem política e estamos com muita pressa de ver os poetas e os escritores e os artistas a ilustrar as nossas pobres meninges políticas. Quando os poetas estão a inventar coisas, o Goya estava muito para além dos políticos de Espanha do seu tempo. Também me lembro de termos falado de muito de outros artistas não que dizer que seja sempre assim, mas há sempre que ter um certo cuidado porque a arte é, geralmente, a primeira reveladora das transformações que a Humanidade deseja. Não é na política. A boa política é aquela que serve os verdadeiros anseios da Humanidade e esses verdadeiros anseios são expressos na melhor arte.
Locutora - Entramos então. Já falámos quase no tema. Não é. Estado Novo 1926 é quando Salazar sobe ao Governo. Vamos falar um pouco então qual era a situação.
Rui Mário Gonçalves - A situação das artes nós podemos vê-la de duas maneiras. Uma o que era a situação da arte mais inventiva perante o público e perante o País em geral. Pois bem, era de um abandono completo. Isso vai dar armas em 1934-35 ao António Ferro. É que, diferentemente do que vai acontecer com o Hitler, quando Salazar chega definitivamente ao poder com a constituição, essa sim fascista de 33, a situação do Salazar é completamente diferente da do Hitler. Enquanto Hitler chega nesse mesmo ano ao poder e encontra os museus carregados de arte moderna, basta que eu lhe cite que um grande artista expressionista como Kirchner tinha espalhados pelos museus da Alemanha inteira mais de mil obras e portanto quando o Hitler e os seus apaniguados se aperceberam que a arte moderna podia não ser importante ou melhor não era conveniente para agradar às grandes massas. Aconteceu ao Hitler o que tinha acontecido ao Mossulini, resolveu adoptar uma política francamente persecutória da arte moderna. No caso português não era preciso fazer essa perseguição porque a arte moderna não estava instalada. O grande artista moderno que tinha sido o Amadeu de Sousa Cardoso, tinha morrido em 1918 e a sua obra estava completamente ignorada. Isso permitiu também ao António Ferro fazer uma habilidade extraordinária que foi criar em 1935 dois prémios, o prémio Columbano e o prémio Sousa Cardoso. O prémio Columbano tinha uma categoria acima porque era o prémio que dava para consagrar um artista e o outro era para premiar o que era jovem e através da palavra jovem com toda a sua carga de metáforas, tinha um lado, por um lado, secundário, por outro lado a ideia que podia ser de vanguarda ou o lado que podia ser experimentalista e que não era necessário levar muito a sério. Na verdade é que havia uma secundarização e havia também uma maneira de calar, digamos, um Almada, possivelmente o único, que de vez em quando ainda poderia, no meio cultural português, evocar a figura desse grande pioneiro que foi o Amadeo de Sousa Cardoso, de maneira que apropriando-se do nome, o António Ferro amordaça a verdadeira mensagem de Amadeu de Sousa Cardoso. Foi uma história muito habilidosa. Mas como vê não era uma situação igual a portuguesa à situação alemã, para dar um exemplo, porque nada de moderno, como estava já, de algum modo, reconhecido na Alemanha ou na Itália acontecia em Portugal. Portanto, essa situação perante o público não existia, portanto o António podia aparecer até como promotor de alguma coisa, mas ao promover podia simultaneamente controlar.
Locutora - E foi isso que aconteceu?
Rui Mário Gonçalves - Foi, de alguma maneira, porque se se trata de encomendas públicas não nos admira que o Salazar seja mais sensível à escultura porque é para ser posta ao ar livre e não lhe interessa pintura se não a pintura de retratos, muitos se fizeram. Agora, actualmente, ninguém sabe o que é que há-de fazer à quantidade de retratos que se fizeram do Salazar, estão todos acumulados nas caves do Museu do Chiado. Fizeram-se muitos retratos e houve de facto um retratista oficial que foi Eduardo Malta que se transformou num retratista digamos do Regime, não é. A escultura sim, para pôr ao ar livre que adoptou como paradigma a escultura que está no Funchal do Francisco Franco que é o Gonçalves Zarco. Essa escultura é de 28. Tinha sido pensada antes, mas é em 28 que ela é exposta em Lisboa, cria um modelo da escultura salazarista. Até ao fim, se não dissermos até hoje, que é a escultura do herói, do navegador, enfim doutras figuras grandes da História de Portugal, criando o culto dos heróis. Essa vai ser a estratégia política que interessava ao Salazar, criar uma mística das grandes figuras cuja última figura, evidentemente, seria ele próprio, Salazar. Basta que eu lhe diga, passando para outro ramo que é o ramo da literatura, que apesar dos esforços do António Ferro em 35 para dar um prémio ao Fernando Pessoa, também honra lhe seja, porque essa situação foi sempre muito equívoca, a verdade é quando as edições Ática já nos anos 40 começou a publicar as obras completas de Fernando Pessoa, essas obras ainda eram consideradas muito provocatórias. Todavia, no liceu podia-se ler um poema do Fernando Pessoa que era integrado nas antologias oficiais, que poema era esse era 'O Mostrengo' que, como sabe, tem sempre uma espécie de repetição.
Manda a vontade que me ata ao leme de el-rei D. João II
Quer dizer, é um poema que é o elogio do chefe, do fulano que tem poder absoluto. Se em vez de D. João II pensarmos em Salazar temos toda a mística transportada para o ensino secundário através desse poema do Fernando Pessoa, um dos mais afirmativos do autoritarismo.

O Mostrengo
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»

«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,

«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»

Três vezes do leme a mão ergueu,
Três vezes ao leme a reprendeu,
E disse no fim de temer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais do que mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»

Locutora - Sabemos que os modernistas não existiam praticamente.
Rui Mário Gonçalves - Não tinham presença oficial e logo quando em 35 o António Ferro começa a dar-lhes alguma presença é uma maneira, como ele próprio dizia, de manter um indispensável equilíbrio, mas quem define esse equilíbrio é ele. Ora quem define o equilíbrio tem tudo na mão. Disse-se: - Isto é exagerado. Isto não pode ser. De maneira que fez, foi nessa altura que... [Locutora - O grande António Ferro um grande admirador de Mussolini, não era?] Ah sim, sim, sem dúvida. Aliás, o António Ferro por causa disso foi atacado duas vezes. O António Ferro feito pelo mundo cultural, o António Ferro junto da governança do Salazar de quem ele era indiscutível admirador, tinha uma circunstância, é que na realidade junto dos outros governantes ele era a pessoa mais aberta. Por outro lado, era um indivíduo que de facto vivia no meio dos artistas e dos escritores e isso deve ser lembrado por nós com alguma humildade porque com a nossa democracia que nós não queremos que volte atrás, muitas vezes esquecemos quando nomeamos ministros da cultura nem sempre aparecem pessoas relacionadas com a cultura. Ele de facto era-o. Todos gostavam dele ou não gostavam. Muitos gostariam, outras não gostariam, o que é normal, mas ele era um homem que vinha desse meio, sem dúvida nenhuma. Portanto o António Ferro sentia-se um bocadinho à vontade para tentar promover e saber controlar e uma das primeiras coisas que ele fez foi mandar vir a Portugal o Marinetti, mas em condições tais que baralhou tudo porque pô-lo juntamente com o Júlio Dantas e com aquele que veio a ser director do "Diário de Notícias" e que eram exactamente os representantes do conservadorismo cultural o que fez com que o Almada não quisesse estar presente e fez com que o Fernando Pessoa escrevesse um poema célebre, dito: - Lá chegam todos, um dia chegarei eu também. Como quem diz, chega sempre um momento em que o vanguardista se torna apanhado pelo sistema oficial.
Locutora - E vamos falar portanto. Quem eram os artistas plásticos, pintores e escultores, que tinham alguma importância em Portugal nesta altura. Para falarmos depois nos que viviam no estrangeiro porque havia alguns.
Rui Mário Gonçalves - Havia os sobreviventes da geração do Amadeu, podemos citar em especial dois, que era o Eduardo Viana, quem vem a tornar-se o grande mestre da cor moderna, e era o Almada Negreiros que veio a tornar-se o grande mestre do desenho. Digamos que aí temos os dois paralelos em termos especificamente pictóricos. Entretanto, sozinho, desde 1921-22, tinha aparecido um poeta e pintor que era o Júlio Reis Pereira e que virá a ser, sendo ele irmão do José Régio, o artista plástico mais constante da revista 'Presença', revista essa que durou entre 1927 e 1940.
Locutora - Aliás, desculpe, os jornais e algumas revistas deram nessa altura algum trabalho aos artistas plásticos. Não?
Rui Mário Gonçalves - Sim, isso é um dos aspectos interessantes dos anos 20, mas não tem nada a ver com a política. É um fenómeno curioso que se passou ao longo dos anos 20 que é o desenvolvimento das artes gráficas da decoração, é a altura em que aparece a 'Bristol Club' em 26, como tinha aparecido a 'Nova Decoração' da Brasileira do Chiado em 1925, causou algumas brincalhotices, caricaturas, etc. Nada de grave, mas que levava o público a aproximar e a ter a possibilidade de, pela primeira vez, comparar os artistas modernos, o Viana, o Almada, com os artistas naturalistas como o Columbano e o Malhoa que continuavam a ser as figuras máximas. O prémio Columbano que já foi citado, é claro que é criado em 35 e o Columbano morreu em 1929, está certo. Mas se há alguém que represente toda a continuidade do gosto conservador é o Columbano e o Malhoa que isso durou até hoje. As efemérides destes artistas foram tratadas por todos os governos desde a monarquia à República, ao fascismo, ao anti-fascismo e até já depois do 25 de Abril. Nenhuma efeméride do Malhoa falhou. Nenhuma. [Locutora - Então porquê?] Eu suponho que é evidente que é uma pintura fácil no sentido de ter sido implementada no final do século XIX em colaboração com uma geração que foi a geração dos anos 70 da literatura que impôs o realismo. Nós ainda hoje lemos com agrado esses escritores e o Malhoa e o Columbano vêm nessa sequência, quer dizer, não havia pintores mais próximos desses artistas. Portanto, entre o Columbano e o Malhoa há assim uma espécie de diálogo imaginário entre a cidade e as serras, entre a vida interior aflita do Columbano e a exterioridade imediata do Malhoa. Tudo isso é o que nós sentimos o que dá uma rivalidade, mas sempre dentro dum certo conservadorismo. Isso durou como durou, ainda hoje, a leitura do Eça de Queirós, não temos nada a opor. Isso é o lado positivo. Quer dizer, uma pintura que talvez nunca tenha sido tão bem ligada à literatura em Portugal como essa. Isso evidentemente que lhes dá uma grande popularidade e um valor intrínseco. Mas há um outro lado que não posso deixar de mandar para o ar é que essas pessoas, entretanto, o público com algum dinheiro, empatou muito capital na aquisição dessas obras, nomeadamente o Malhoa que foi vender muitos quadros para o Brasil, aos emigrantes portugueses que lá enriqueceram e que queriam esses sinais das suas recordações de origem rural, do seu Portugal saudoso e naturalmente que onde o capital está empatado há, evidentemente, uma constante defesa daquilo que significa esse capital empatado. Portanto este é o outro lado cínico de porque é que isso perdura.
Locutora - Estávamos a falar de Júlio.
Rui Mário Gonçalves - Júlio. O Júlio é um instaurador em Portugal do que podemos falar hoje de expresionismo onírico e o expressionismo com o seu culto da originalidade vai caracterizar toda a revista 'Presença'. Logo no primeiro número de 27, o Régio publica um manifesto na primeira página em que diz que o que interessa numa obra é a originalidade, mas o artista mais importante dessa tendência dum expressionismo onírico vem a ser o Mário Elói. Mário Elói que vem a receber em 35 o primeiro prémio Sousa Cardoso do António Ferro. Isso é verdade. É um prémio justo, deve dizer-se. Essa era a figura mais importante. Havia outros. Também estrangeirados como o Mário Elói que tinha ido viver entre 28 e 32, tinha ido viver para a Alemanha que era o António Pedro que em 35 estava em Paris, fazendo parte dum movimento internacional chamado 'dimensionismo', um movimento muito especial com figuras de primeiro plano como o Marcel Duchamp, o Arp, o Miró e tantos outros, Kandinsky e a Vieira da Silva que estava na mesma altura, em 35, a inventar o seu peculiaríssimo abstraccionismo. Nós relacionamos muito a arte da Vieira da Silva com Paris, mas esquecemos de dizer que o que ela tem de tradição francesa é ela que o inventa. Ela é de facto uma sucessora de Cézanne, de fauvismo, de cubismo, mas como outros pintores franceses também o são, ela entre esses outros pintores da mesma geração, o Bazin, o Manéssier, é uma pioneira, não é uma sucessora e além disso não só fez primeiro como fez melhor. Isso é muito importante. Portanto, ela vem refazer uma arte abstracta em 1935 com uma peculiaridade curiosíssima que na altura teve muitas consequências de ordem estética que é o de inventar uma profundidade pura, não era a perspectiva tradicional, mas temos diante de um quadro da Vieira da Silva a dupla sensação de estarmos perante uma pintura inteiramente cheia e ao mesmo tempo sugerindo horizontes infinitos. É uma sensação de simultaneamente cheio e vazio e é ela que inventa isso, esses espaços ambíguos.
Locutora - Estamos a falar dela em Paris.
Rui Mário Gonçalves - São os estrangeirados de que o Pedro dá notícia em Portugal. São considerados estrangeirados não se liga muita importância, quer dizer quando ela vinha cá, é preciso não esquecer isso. Nós hoje temos muito a tendência para relegar a Vieira da Silva para fora de Portugal o que não é justo. Ela vinha cá constantemente e lidava com o Botelho e lidava com muitos artistas de cá. Agora o que é que acontece, além desse estrangeirismo, do 'dimensionismo' do Pedro, do abstraccionismo da Vieira havia de facto esses artistas dentro do tal indispensável equilíbrio, protegidos pelo Ferro, e não tarda que em 36 rebente a guerra civil espanhola o que vai fazer com que alguns jovens, surpreendidos, preocupados e a gente percebe como a guerra de Espanha foi de facto um campo de experimentação da luta ideológica que em breve atingia o planeta inteiro e portanto alguns jovens artistas e primeiros escritores, um Joaquim Namorado ou um Mário Dionísio, outras pessoas que faziam também literatura como Alves Redol, o Soeiro Pereira Gomes e uma pessoa que desenhava, hoje é conhecida por outras funções que é o Álvaro Cunhal que era de família de artistas, o pai dele, o Avelino Cunhal era pintor, era dramaturgo também, o irmão, o António Cunhal que morreu cedo, também era pintor, portanto ele vinha de uma família de pintores e naturalmente que essa gente então muito nova, um pouco imbuída de um espírito que se tinha desenvolvido em França que era o espírito das frentes populares porque só na França é que houve uma organização quase espontânea contra o que se via surgir totalitarismos na Rússia, na Alemanha, em Itália, em Espanha, em Portugal, só a França criava essas frentes populares em que unia toda a esquerda e isso era mais ou menos o que se tentou fazer em Portugal, vizinho da Espanha e portanto conhecendo nós, portugueses, melhor que os franceses, os ingleses, etc. melhor a problemática da guerra civil do que eles próprios. Isso é pouco falado porque sim, porque durante cinquenta anos se esteve a ocultar tudo o que se fez, mas na verdade o Salazar criou um movimento chamado "Os Viriatos" que mandavam para lá pessoas e essas pessoas continuavam a lutar ao lado de Franco. Às vezes eram presas, mudavam de lugar porque, no fundo, eram mercenários e lutavam ao lado e quem lhes pagava.
Mas isso criou uma preocupação de alguns jovens que, nomeadamente os escritores Mário Dionísio e Joaquim Namorado, cria-se um pouco, provisoriamente, o termo neo-realismo, termo que acabou por ficar [Locutora - E que ficou também em Itália, não?] Sim, mas, é verdade, mas pronto eles diziam que não eram propriamente realistas como os realistas do século XIX por uma razão muito simples é que os nossos realistas do século XIX, um Eça de Queirós, um Ramalho Ortigão e outros eram politicamente muito tímidos. Eles não eram marxistas, esses do século XIX, a chamada geração de 70, tinham uma figura que a gente hoje santifica que é o Antero de Quental, mas na realidade eles inspiraram-se muito mais no Proudhon que era anarquista do que no Marx e o que é engraçado é que o manifesto fundamental do Proudhon que é 'Propriedade é roubo' não é posto em causa por nenhum dos escritores da geração de 70. Nós lemos os romances do Eça de Queirós de ponta a ponta e o direito à propriedade privada é sagrado e até no seu testamento que é 'A cidade e as serras' ou que é considerado tal, vemos que um tal Jacinto aborrecido por viver em Paris, vem viver para Portugal, é um patrão bonzinho, mas continua a ser ele o patrão daquilo tudo. Quer dizer, essa situação de pôr em causa a propriedade é uma coisa que os nossos realistas não fizeram e eu compreendo que as preocupações mais marxistas da geração que, houve um congresso importante, em 34, em Moscovo, em que pela voz dum homem extraordinário que era o Máximo Gorki se propugna a consciência do momento histórico.
Locutora - Temos um humanista e temos um político.
Rui Mário Gonçalves - É que a tendência sempre é para burocratizar os grandes ideais. Isso é que é pena. Eu diria até que quando há polémica entre artistas e políticos, geralmente os artistas revelam mais consciência política e social do que os políticos.
Locutora - Essa polémica existiu em Portugal nos anos que estamos a tratar, entre os políticos e os artistas.
Rui Mário Gonçalves - Bom, houve essa situação do Álvaro Cunhal e do Alves Redol tentarem desafiar o José Régio para pôr a sua revista que tinha prestígio, a revista 'Presença', aberta às preocupações ideológicas, políticas, nomeadamente, em função do que se tratava em Espanha, mas assim como José Régio em 27 não deixou, ou desde 27, nunca deixou que a sua revista tivesse qualquer presença de preocupação política directa, explícita porque a verdade é que ninguém da revista 'Presença' colaborou com o Salazar. O Júlio nunca expôs com o António Ferro e muitas pessoas que vieram até mais tarde a ser coriféus do neo-realismo chegaram a expor com António Ferro, mas o Júlio nunca. Não há memória entre esses grandes artistas e escritores de alguém ter mandado alguém para a prisão ou ter denunciado alguém. Havia um  entendimento tácito de que era-se contra, isso não significava que arte devia estar ao serviço duma bandeira agitada por algum político, até porque a ideologia sentida e pensada pelos artistas não tem nada a ver com os rostos policiais que aparecem a encabeçar essas ideologias no domínio da política.
Locutora - Podemos dizer que portanto o facto destes artistas exporem e até receberem os prémios instituídos pelo António Ferro não quer dizer que eles colaborassem. De maneira nenhuma, não é?
Rui Mário Gonçalves - Não quer dizer, até porque a sua pintura nada tinha de abdicativa, mas o Júlio nunca expôs.
Locutora - Pois esse é um caso à parte. Pois, mas houve vários que expuseram.
Rui Mário Gonçalves - Pois, mas vamos pensar é nos melhores e eu fico mesmo a pensar o seguinte. Eu há bocadinho comecei por dizer que o António Ferro foi atacado duas vezes. O António Ferro começa a fazer a sua política nas artes plásticas em 35 com os tais dois prémios e, curiosamente, o Viana e o Almada não têm qualquer prémio, eram os melhores artistas. Não quer dizer que o Mário Elói não o merecesse, mas tendo premiado o António Soares que ao pé do Eduardo Viana não tinha de facto competência. Agora que em 36 os artistas modernos entre os quais a Vieira da Silva, o António Pedro, o próprio Arpad Szenes e outro estrangeiro que estava cá que era o alemão Hans Senka(?) fizeram uma exposição a desafiar o António Ferro. Diziam que o Estado tinha apenas percorrido metade do caminho, era a expressão do Almada Negreiros. Quer dizer, em 36 ainda é a vanguarda que pede a António Ferro mais coragem. Em 39, quem ataca o António Ferro são os naturalistas, os conservadores, nomeadamente, pela voz dum caricaturista que era o Ressano Garcia e porquê em 39? Porque era a altura limite para escolher os colaboradores da Exposição do Mundo Português, em 40, e essas exposições é como a EXPO, actualmente, toda a gente se está a pôr em bicos dos pés para ter um lugarzinho na EXPO. Podemos, sinta-se os problemas de hoje para se ter um pouco mais de compreensão humana para os problemas de ontem.
Locutora - A História repete-se um pouco, não?
Rui Mário Gonçalves - Não é que a História se repete, o Homem é que se repete. A História não se repete, mas o ser humano repete-se, tem as mesmas necessidades de comer, de beber, etc. e portanto tem algumas oscilações. Não é a História que se repete, é o ser humano que oscila, é próprio. A gente vê uma escultura muito má, merecer a um artista 35 mil contos. Bom, está bem, compreende-se, dá um jeitão enorme, e tal, não é. São coisas que acontecem, foi o que aconteceu. As pessoas queriam ter emprego porque viviam mal e além disso não significa que fossem fazer obras francamente marcadas pela ideologia e de facto quem trabalhou mais foi quem não tinha sido chamado, que era o Almada Negreiros. Só que como ele tinha uma capacidade de trabalho espantosa, enorme, ia cumprir o que os outros não fizeram e então começou a fazer mais do que os outros e mais depressa.
Locutora - Foi criticado?
Rui Mário Gonçalves - Se ele foi criticado? [Locutora - Sim. Por essa...] Aquelas pinturas, a verdade é que não ficaram nenhumas. Aquilo era para ter um fim efémero, a exposição estava marcada antes do começo da guerra, abriu já com a guerra proclamada. Claro que tinha coisas concretas. Ainda me lembro, era miudinho, tinha seis anos, mas lembro-me porque há coisas que uma criança não esquece como uma coisa que se chamava 'O café dos pretos'. Ia um sujeito tomar café e apareciam pretos de tanga a servir café. Havia outra coisa mais positiva que era 'A Nau Portugal', a reconstituição de uma nau do tempo das descobertas, isso está bem, isso era mais instrutivo, mas pequenas coisas que mostram a mentalidade paternalista que ainda existia em relação aos africanos e outras coisas assim no género, um pouco parvas que, naturalmente, uma pessoa com seis anos não reage, olha só para o exótico, vai ali como quem vai à Feira Popular, não é. Não tem qualquer significado. As pinturas desapareceram todas, as esculturas ficaram e ficou até o monumento que hoje, curiosamente, foi reabilitado que é do Leopoldo de Almeida e Cotinelli Telmo que é o Padrão das Descobertas que está em Belém.
Locutora - Com Rui Mário Gonçalves falámos do Estado Novo e as artes plásticas.
 
Fizeram este programa José Araújo, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.

(Programa gravado da Antena 2 no dia 11 de Julho de 1997)Entrevista com Saldanha Sanches e Fernando Rosas
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”
 
Transcrição Ireneu Batista.