Entrevista com Fernando Rosas - Oposição durante os anos 50

ERA UMA VEZ UM MILÉNIO

Entrevista com Fernando Rosas
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”

Por João Monteverde, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
 

A História do nosso século continua. Estamos nos anos 50, a década em que começa a conquista do espaço. Há 40 anos a União Soviética lançou o primeiro Sputnik. Pela rádio chegaram-nos os sinais desse voo.
Com o Sputnik a União Soviética surpreende o mundo e ganha a primeira etapa da corrida para o espaço. Nos Estados Unidos, os cientistas preparam-se também para essa corrida, mas as preocupações são outras no momento. Começam a desmoronar-se as barreiras raciais com Martin Luther King que à frente do movimento pelos direitos cívicos.
(Discurso de Martin Luther King "I have a dream")
A evolução dos acontecimentos políticos do pós guerra reflectem-se também no mundo intelectual. A situação do homem foi analisada sobretudo pelos existencialistas durante e depois da guerra. Em França, o escritor Jean-Paul Sartre sistematizou os princípios desta corrente intelectual. Em 1959, Sartre falava assim no aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
"Je considère que efectivement c'est une grande journée et qu'il faut celebrer la conquête des droits de l'homme, mais je considère cependant [...] travail. Heureusement, d'ailleurs, et que d'une part..."
Portugal, anos 50. A rainha Isabel II visita Portugal em 1957.
"It gave me a great pleasure, Mr. President, to find myself and my husband in this pride and beatiful land, Portugal".
Um ano depois, a grande cantora lírica Maria Callas canta a Traviata no teatro de São Carlos.
É também na década de 50, em 1956, que tem início na Emissora Nacional o programa de João de Freitas Branco 'O gosto pela música'.
Quase a finalizar a década de 50, em 1959, a igreja de São Domingos é destruída por um violento incêndio.
"Tudo aquilo que estou presenciando, verifico que do histórico monumento que é a igreja de São Domingos apenas se vêem paredes erguidas".
Portugal, anos 50. E depois de no último programa termos falado da política do regime, vamos hoje falar da política da oposição. Como sempre contamos com a presença do professor Fernando Rosas.
Fernando Rosas - Na sequência do programa que fizemos sobre a oposição para a guerra, a ideia que há a retomar é que da vitória do Regime na primeira grande crise que sofre no pós guerra, a oposição sai, necessariamente, muito enfraquecida. Dividida, por um lado, sob o clima da guerra fria e enfraquecida sob os golpes da repressão que se intensificam sobretudo no ano de 49 em que o Partido Comunista foi em grande parte desarticulado na sua organização ainda que tenha mantido a sua actividade, vimos que a unidade antifascista do período anterior também ela se rompe a favor de um sector mais ocidental, atlantista, pró americano e que se demarca do núcleo formado pelo Partido Comunista e os seus aliados à esquerda e portanto, sobretudo, de uma forma geral, a oposição entra naquilo que se pode chamar numa conjuntura de refluxo, de certa passividade, de recuo, que se vai prolongar até final dos anos 50. O Partido Comunista conhece então, inicialmente, um período que de alguma forma imita o arreganho dos partidos comunistas da Europa de Leste e da União Soviética que não nos esqueçamos que é um dos períodos mais sombrios das purgas estalinistas na Europa de Leste. O Partido Comunista aqui também muito acossado pelas perseguições policiais, pelo ambiente de perseguição anticomunista, ele próprio também toma uma postura muito sectária, muito rígida de ataque aos outros sectores da oposição que aliás também retribuem com ataques anticomunistas a essa postura e portanto digamos que a oposição tem um campo marcado pelos comunistas e os seus 'compagnons de route', os seus aliados, mesmo não comunistas, agrupado em torno de um movimento, pretensamente unitário que é o Movimento Nacional Democrático, presidido pela figura tutelar de Rui Luís Gomes, mas que agrupa sobretudo aqueles sectores de esquerda ou comunistas ou próximo dos comunistas e depois um outro sector da oposição, uma opção mais conservadora, mais à direita que é uma opção que tem, assume nessa altura um discurso claramente anticomunista e até de uma certa tentativa de aproximação quer com os dissidentes do regime, os homens que publicamente se começam então a afastar do regime, ou mais ou menos publicamente, Henrique Galvão, David Neto, dentro de pouco tempo o próprio Delgado e entre ambos estes dois pólos da oposição, uma oposição conservadora anticomunista e uma oposição polarizada pelo Partido Comunista, começa a surgir como também novidade, um grupo de jovens oriundos de profissões liberais, da universidade, homens que se tinham destacado no Movimento de Unidade Democrática, no MUD Juvenil, sobretudo, mas que saíram, dissidiram ou foram expulsos do Partido Comunista e começam a definir, aos poucos, agrupados numa organização que toma o nome, a partir de meados dos anos 50, de Resistência Republicana e Socialista, aquilo que vai ser o futuro campo socialista da oposição onde podemos falar de figuras como Mário Soares, Tito de Morais, Ramos da Costa, Piteira Santos, que também anda próximo, e portanto digamos que começam a definir-se aquilo que vão ser os três campos da oposição nos anos futuros: a esquerda comunista e os seus aliados; a direita republicana, liberal, anticomunista e um campo socialista, ainda muito em embrião que está a definir-se entre os dois, mas que nos anos 50, meados dos anos 50, vem encostar-se sobretudo à oposição liberal republicana, a oposição liberal republicana vai congelar, vai, enfim, vai concentrar-se numa organização que se chama o Directório Democrato-Social, mais tarde Acção Democrato-Social e esse grupo da resistência republicana vai fazer uma espécie de aliança com esse sector, demarcando-se do outro lado onde se avulta a figura do professor Rui Luís Gomes, do Movimento Nacional Democrático. Neste período há eleições, há as eleições rituais que o Regime realiza, há as eleições presidenciais de 1951 após a morte de Carmona, logo aí isso é um bom texto para se ver como a oposição se arruma. A oposição ligada ao Movimento Nacional Democrático avança com o candidato Rui Luís Gomes que não é aceite, no entanto, admite a candidatura do sector não comunista da oposição. O almirante Quintão Meireles, ele próprio, aliás, um homem do 28 de Maio, um republicano conservador que tinha participado no 28 de Maio, nos governos iniciais da ditadura militar e que é apoiado, exactamente, por esse grupo do Directório Democrato-Social, Cunha Leal, António Sérgio, são as duas grandes personagens desse sector, o próprio Norton de Matos, pouco antes de morrer vai apoiar de alguma maneira essa candidatura e o mesmo tipo de fractura vai manifestar-se tanto nas eleições presidenciais onde o Almirante Quintão de Meireles concorre contra o general Craveiro Lopes, apresentado pela União Nacional, vai desistir, com a ausência de condições mínimas de seriedade e de idoneidade do acto eleitoral, enfim, este panorama de alinhamento da oposição repete-se um pouco nas eleições para a Assembleia Nacional de 53 onde a oposição de esquerda, ligada ao Partido Comunista e seus aliados, não apresenta candidatos, nem sequer concorre, mas onde o sector da oposição não comunista, ligada às personagens do Directório, vai apresentar algumas candidaturas que vão até às urnas, em Lisboa, no Porto, não sei se mesmo mais nalgum sítio que têm, aliás, uma expressão eleitoral muito pequena, mesmo atendendo aos resultados oficiais, do ponto de vista dos resultados oficiais terá qualquer coisa como 10% ou pouco mais da votação onde concorre. A oposição, portanto, está claramente dividida em dois campos, um deles e isto, chamo a atenção disto para se compreender o evoluir da situação, um deles, que é o campo não comunista que advogando uma estratégia muito clara de diálogo com os sectores dissidentes ou reformistas dentro do regime, com vista a operar ou a tentar operar uma transição pacífica dentro do Regime, uma transição quase interna dentro do Regime ou por via dum golpe de palácio operado a partir dos oficiais dissidentes que começam a dissidir do Regime e começam a manifestar-se contra Santos Costa e começam a grupar-se um pouco à volta de Craveiro Lopes ou através mesmo de um diálogo de qualquer maneira evolutivo com esse sector reformista dentro do Regime que, como vimos no programa anterior, começa a ter muita força dentro do Regime, começa a manifestar-se, começa a constituir uma espécie de partido informal próprio e há tentativas de estabelecer alguma espécie de ponte ou de diálogo com esses sectores, sobretudo se atentarmos nas intervenções de Cunha Leal, António Sérgio, a sua táctica está muito voltada para esta hipótese de transição pacífica a partir de um diálogo com as dissidências ou as alternativas no interior do Regime. O que é curioso é que é o próprio Partido Comunista que também ele se vai aproximar desta táctica. O Partido Comunista a partir de 56 e à sombra dos ventos do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética e muito, em grande parte, por influência do Partido Comunista Espanhol, com o qual tem muitas estreitas relações neste período, vai começar a partir de 56 a inflectir a sua política, inflexão essa que, mais tarde, a historiografia do próprio Partido Comunista será considerado, será um período apodado como um período de desvio de direita, em 1957, no congresso ilegal que se realiza em 1957, o terceiro congresso clandestino, o 5º Congresso de qualquer maneira do Partido Comunista, é aprovada uma linha política, a tal linha política do desvio de direita, mediante a qual o Partido Comunista também entende ser possível uma transição pacífica do Regime no qual o Partido Comunista resolve, novamente, aproximar-se dos pontos de vista da oposição conservadora, da oposição não comunista e portanto o Partido Comunista aposta numa política de transição pacífica, numa política de apostar no 'putch' militar, apostar num qualquer processo de entendimento com sectores dissidentes ou descontentes do próprio interior do Regime e portanto isso vai ter o seu reflexo de alguma maneira naquilo que vão ser o grande momento deste período, as eleições presidenciais de 1958. As primeiras manifestações de aproximação, de alguma reconcialiação entre a oposição, reflectem-se no primeiro congresso republicano de Aveiro que é de 1957, o Regime, o Ministro do Interior é um homem reformista, o Ministro do Interior é um homem afecto à corrente marcelista dentro do Regime, é o doutor Trigo de Negreiros, autoriza, aliás é alvo de muitas críticas dentro do Regime, por isso autoriza o congresso republicano, é um congresso que junta sob a tutela de Mário Sacramento, ele próprio um intelectual de Aveiro, a promover este congresso, ele próprio militante do Partido Comunista, mas é um congresso de alguma forma unidade republicana, de uma certa reconciliação, há uma tentativa fruste de apresentar listas de unidade novamente nas eleições para a Assembleia Nacional de 57, não resulta e de facto tudo se está a preparar para o segundo grande momento culminante que são as eleições presidenciais de 58 ainda com sufrágio directo, não universal, como sabe, mas sufrágio directo dos cidadãos eleitores. O tal momento propício para o golpe de estado constitucional que tanto temia Oliveira Salazar. É curioso ver que apesar da Censura, apesar das proibições, apesar da inexistência de partidos políticos, há uma intensíssima movimentação política com vista a este acontecimento, tanto no Regime como na oposição. As do Regime já as vimos, traduziram-se no afastamento do perigoso Craveiro Lopes, um homem susceptível de poder, de alguma maneira, fazer a política dos reformistas, susceptível de poder afastar o Salazar e portanto o Craveiro Lopes é afastado da candidatura à presidência a favor de um candidato anódino, Américo Tomás, mas dentro da oposição a coisa também é renhida porque os comunistas tentam apresentar um candidato de consenso da oposição republicana, vão escolher, aliás, vão aproximar-se, convidar, um homem que era um dos homens mais virulentamente anticomunistas da oposição republicana que é o engenheiro Cunha Leal, vão convidá-lo, o engenheiro Cunha Leal suspende durante algum tempo a sua aceitação para ver o que é que se passa com os outros sectores da oposição e há uma jogada muito particular dentro disto tudo, do campo da oposição republicana, a oposição liberal, ela própria não faz uma jogada uniforme, porque parte deste Directório republicano estaria próximo de apoiar uma candidatura do engenheiro Cunha Leal, mas António Sérgio tem de facto, António Sérgio e certos homens da oposição do Porto, os irmãos Andrade, etc. fazem uma jogada bastante própria e absolutamente inesperada. António Sérgio tinha sido informado através de Henrique Galvão que está preso, Henrique Galvão já tinha feito uma primeira conspiração no início dos anos 50, já estava preso na Penitenciária de Lisboa e estabelece um contacto com, é visita de Henrique Galvão na cadeia, na Penitenciária de Lisboa o general Humberto Delgado, Humberto Delgado desde que regressara, ainda no Canadá, ainda nos Estados Unidos, adido militar e  representante militar na NATO, português, desde 56 anda a conspirar, a sua dissidência, o seu afastamento do Regime começa a ser claro, começa a constar e Henrique Galvão, da cadeia, sugere a António Sérgio a candidatura de Humberto Delgado.
António Sérgio fala com o Delgado, os homens do Porto também, esse sector da oposição, mas num ambiente de bastante segredo, num ambiente duma certa surpresa, mesmo para a própria oposição não comunista e o que é facto é que surge a candidatura independente, sintomaticamente independente, independente da própria oposição tradicional, surge a candidatura independente do general Humberto Delgado, apoiado, inicialmente, por personalidades da oposição mais moderada, ele tem o apoio dos homens como Rolão Preto, ex-camisa azul, de alguma forma convertido à oposição democrática. Homens como Vieira de Almeida, um homem também de formação monárquica, António Sérgio, Cunha Leal, enfim, alguns sectores, o próprio Directório republicano acaba por aderir à candidatura do general Delgado, um pouco contrariadamente, vem um pouco a reboque dos acontecimentos e a oposição de esquerda ligada ao Partido Comunista e aos sectores seus aliados não adere inicialmente a essa candidatura. O general Delgado é um homem que vem da Legião Portuguesa, vem do Regime, é o general mais jovem do Regime, da Força Aérea, tinha-se salientado nos anos 20 e 30 por posições militantemente anticomunistas e anti-oposicionistas, portanto é um homem que traz uma forte conotação ligada à própria extra-direita do Regime e portanto a oposição de esquerda tem uma atitude de muita desconfiança e falhada a candidatura de Cunha Leal a oposição de esquerda avança com um candidato relativamente pouco conhecido, um homem aliás discreto, de perfil discreto, apesar de ser um democrata, convicto, que é o doutor, o advogado doutor Arlindo Vicente e portanto em Maio de 1958, na véspera da apresentação das candidaturas, nós temos duas candidaturas da oposição, Arlindo Vicente pela oposição de esquerda, Humberto Delgado que 'tant bien que mal' lá vai agrupando os sectores da oposição ao grupo, os sectores da oposição conservador e do lado do Regime a candidatura do almirante Américo Tomás, mas também candidatura muito contestada no interior do Regime sobretudo prr parte dos sectores reformistas que como que se abstêm de apoiar Américo Tomás. Na ausência da candidatura de Craveiro Lopes, eles abstêm-se, vão marcar uma grande passividade no apoio à candidatura. Bom, o que é que muda nesta situação, muda com a célebre conferência de imprensa de Humberto Delgado no Chave d'Ouro e é curioso porque isso é um momento psicológico fulcral na condução da campanha. Eu lembro-me do meu velho avô Filipe Mendes que era um velho republicano, apoiante de Delgado me ter dito, me contado um dia como se tinha preparado essa reunião no Chave d'Ouro. Durante toda a noite os bárbaros que era como lhe chamava Humberto Delgado aos oposicionistas republicanos, tiveram a explicar a Delgado que ele não devia hostilizar o Presidente da República, que o devia tratar bem, o Presidente do Conselho, peço perdão, que o devia tentar uma resposta elíptica à pergunta saber qual o destino do Presidente do Conselho e tenho a impressão que já o aqui disse, nessa conferência do Chave d'Ouro quando o jornalista, se a memória me não falha do 'Diário de Notícias' lhe pergunta, o que é que o general Delgado, uma vez eleito presidente faria do Presidente do Conselho, ele lança a célebre frase 'Obviamente, demite-o'. Uma frase que é preciso viver, vivê-la no contexto do tempo, lança fogo ao país de norte a sul. Quer dizer, de repente, há um jovem general, um general, o mais jovem general das Forças Armadas, um homem ligado aos americanos, um homem que vem do Regime, portanto, um homem credível em termos de operar uma mudança, que apresenta como fulcro do seu programa a demissão imediata do Presidente do Conselho. Não é só esta frase, mas esta frase é corroborada pela própria atitude pessoal e o estilo de campanha do general Delgado.
"Pode haver meus senhores países ricos, pode haver material, pode haver aviões, se faltar qualquer coisa de anímico, não há aeroclubes, não há consciência, não realmente pátrias, não há nada formoso que possa nascer dela" (General Delgado).
É preciso ver-se que em 58 em Portugal, apesar das campanhas de mobilização do pós-guerra, não há tradição de grandes campanhas personalizadas de rua e o general Delgado traz essa novidade dos Estados Unidos, as campanhas eleitorais norte-americanas. O general Delgado fala em cima de carros; o general Delgado vai a pé pelas avenidas abaixo; o general Delgado anda de pistola à cinta e fardado de general do Exército, ao ponto de sair uma nota do Ministério da Defesa a proibir o general Delgado de fazer campanha fardado; o general Delgado incendeia, de facto, a imaginação, a esperança do País. Aqueles que têm a minha idade lembram-se que no diz que diz, dos boatos, enfim, desse clima de entusiasmo que percorre o País. Imediatamente se dizia assim: Queres ficar como estás, vota no Tomás; queres um Portugal diferente, vota no Vicente; queres aumento de ordenado, vota no Delgado. E portanto o general Delgado representava a reivindicação imediata, a mudança imediata, a esperança de uma melhoria imediata e ele de facto vai incendiar o País, sobretudo quando faz a grande visita ao Porto onde mais de cem mil pessoas vêm à rua e há um jornal que ainda chega a publicar na primeira edição as fotografias da espantosa recepção, absolutamente espontânea, que dezenas de milhares de pessoas saiem à rua para receber o general e depois disso ele vem para Lisboa e dá-se a espantosa recepção em Lisboa onde milhares e milhares de pessoas que enchem todo o espaço que vem da gare de caminhos de ferro de Santa Apolónia praticamente até ao Terreiro do Paço, uma multidão compacta recebe o general Delgado em Lisboa à sua chegada do Porto. O cortejo é desviado pelos cavalos da Guarda Republicana de forma a que Delgado não entre na baixa lisboeta, mas a multidão concentrada espalha-se pela baixa lisboeta numa grande manifestação que se prolonga em distúrbios, choques com a polícia, tiroteio, enfim, conflitos de toda a ordem, por toda a noite, ao longo de toda a noite na baixa de Lisboa. O governo reune de emergência e tomam-se medidas também de emergência, entregando a Santos Costa o controlo de todo o aparelho militar e policial com vista a assegurar a ordem em Lisboa. O resto da campanha vai ser passado neste clima, de grande confronto, o célebre comício do Liceu Camões, o general Delgado no Liceu Camões em que a cavalaria da Guarda Republicana entra pelos cafés a dentro, pelo café Monumental, por outros cafés a perseguir os manifestantes que ficam cá fora e que não têm entrada no Liceu Camões e o célebre grito de Delgado nesse comício do Liceu Camões em que, voltando-se para o próprio representante da autoridade que tinha que presidir, que tinha que estar presente nos comícios, ele diz: "Vão-se embora! Vão-se embora!" E hoje especula-se, se Delgado tinha ou não preparado uma espécie de golpe militar antes das eleições. É duvidoso que tivesse. Esta imensa onda que percorre o País com as eleições Delgado, o delgadismo, assusta os militares dissidentes do Regime e o que é facto é que o Regime consegue operar uma unidade em bloco mesmo dos militares dissidentes para manter a ordem. O poder não pode cair na rua e portanto como o poder não pode cair na rua, mesmo os militares dissidentes, partidários de uma transição de palácio, acabam por cerrar fileiras em torno do Regime para impedir a subversão que a campanha delgadista anunciava. É duvidoso, apesar do Delgado dizer isto nas suas memórias, é duvidoso que tivesse operacionalidade credível para fazer um movimento militar nessa altura. O que é facto é que Delgado e toda a oposição dão ainda dois passos decisivos. Em primeiro lugar, perante esta onda de entusiasmo geral, a candidatura de Arlindo Vicente desiste a favor do general Delgado, Vicente, o Arlindo Vicente desiste a favor do general Delgado, a Oposição aparece unida às urnas e resolve ir às urnas e resolve, pela primeira vez, em toda a história da participação eleitoral oposicionista em eleições, não é bem a primeira, mas nas presidenciais, sem dúvida, porque já tinha havido aquela participação eleitoral nas eleições legislativas para a Assembleia Nacional de 1953, mas pela primeira vez em eleições presidenciais vai-se às urnas e o Delgado vai às urnas. Hoje está abundantemente comprovada a existência de uma imensa fraude eleitoral. Um livro recente que a filha do general, a Dra. Iva Delgado, está a preparar com base na documentação encontrada quer no Ministério do Interior quer na Polícia Política acerca da falsificação do acto eleitoral dão-nos a ideia duma falsificação orientada, centralizada, com equipes de legionários a votarem em várias assembleias de votos, com falsificação das urnas, com, não nos esqueçamos que a Oposição não podia fiscalizar as mesas de voto, a Oposição não podia fazer parte das mesas de voto e não podia fiscalizar o acto eleitoral, a polícia punha fora da sala no momento da contagem os delegados da Oposição e isso deu origem de facto a fraudes monumentais e nos sítios onde houve gente séria e gente honrada no campo dos fiscais do Regime permitiu as eleições abertas, houve vitórias indiscutíveis e surpreendentes do general Delgado. Não nos esqueçamos que estamos a falar dum sufrágio onde só votavam os homens maiores de vinte e um anos que soubessem ler e escrever e estávamos num País com 30% de analfabetos, com cadernos eleitorais completamente falsificados e onde grande parte da população não tinha sequer entrada e onde só votavam as mulheres maiores de vinte e um anos que tivessem um curso superior ou um curso do ensino secundário e portanto onde o próprio voto feminino é muito restrito, mesmo nestas condições os dados que hoje a investigação vai dispondo acerca da falsificação eleitoral permitem falar, com razoável dose de probabilidade, numa indiscutível vitória do general Delgado nessas eleições. O País queria mudar, quer dizer, fruto exactamente daquela panela de pressão que se tinha vindo a acumular nos anos 50, das mudanças económicas, sociais, das expectativas sociais criadas, elas esbarram com o carácter monolítico do Regime e portanto não há dúvida de que há uma grande expectativa de mudança e uma mudança ainda por cima controlada, uma mudança feita por um homem que até vinha de dentro do Regime que era o general Delgado, uma mudança credível e portanto essa hipótese de vitória eleitoral é uma hipótese que tem hoje muito fundamento à luz do que se conhece. O que é facto é que o Regime de alguma maneira se viu obrigado, mesmo no quadro da falsificação eleitoral, a conceder 25% dos sufrágios ao general Delgado, enfim a dar uma quota de 25% de votos à Oposição.
Locutora - Com o professor Fernando Rosas falámos da política da Oposição durante os anos 50.
 
Fizeram este programa João Monteverde, José Silva e Esmeralda Serrano.

(Programa gravado da Antena 2 no dia 10 de Outubro de 1997)
 
Transcrição Ireneu Batista