Entrevista com Tenente-Coronel Aniceto Afonso - Portugal, anos 60: a Guerra Colonial

ERA UMA VEZ UM MILÉNIO

Entrevista com Tenente-Coronel Aniceto Afonso e Fernando Rosas
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”

Por Franklin Rodrigues, Ana Colaço, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.

A 4 de fevereiro de 1961 elementos do MPLA assaltam em Luanda a casa de reclusão militar, o quartel da PSP e a delegação da Emissora Nacional. 4 de Fevereiro de 1961 marca o início das guerras coloniais em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Em Portugal o Rádio Português recebia a 4 de Fevereiro a crónica do correspondente em Luanda.
Atenção Luanda, atenção Humberto esperamos com interesse as tuas informações.
Depois da conversa que tivemos há pouco, a situação em Luanda está perfeitamente calma. Podem tranquilizar-se aí em Lisboa. Estabelecimentos prisionais à mesma hora. Denunciam-se manobras do exterior pois parece não restarem dúvidas dada a acção que de relaciona com as directrizes da chamada Junta Revolucionária de Libertação Ibérica, mas como aconteceu...
Era esta a visão dos factos do correspondente do Rádio Clube Português em Luanda ano de 1961. A guerra colonial 36 anos depois, é hoje o tema do nosso programa como sempre com a colaboração do professor Fernando Rosas e o convidado é o tenente-coronel Aniceto Afonso.
Fernando Rosas - Um convidado muito especialmente para nos falar deste assunto. Ele está neste momento juntamente com o coronel Matos Gomes e outros colaboradores a escrever aquilo que é o primeiro ensaio de história da guerra colonial. Sai semanalmente num jornal diário. Senhor tenente-coronel há condições para se começar a escrever a guerra colonial do ponto de vista quer subjectivo da opinião das pessoas quer do ponto de vista do acesso às fontes
Tenente-coronel Aniceto Afonso - Bem, de facto, em primeiro lugar, nós devemos ser muito prudentes quando tratamos de questões complexas da História recente, mas isso aplica-se a todos os âmbitos e a todos os campos da História. Muitas vezes não temos acesso a todas as fontes, temos menos certezas do que de outras épocas em que as fontes estão acessíveis, mas não pode marcar-se uma data a partir da qual se pode começar a falar das coisas. Relativamente à acessibilidade da documentação, há documentação acessível. Ao nível do Exército a documentação está acessível com trinta anos, portanto está acessível até 1966 e para além disso há muito testemunho e alguma obra já escrita sobre a guerra.
Fernando Rosas - Tem tido colaboração nesse trabalho de antigos combatentes, mesmo fora da instituição militar, ou seja gente que queira dar testemunho, fotografia, documento.
Tenente-coronel Aniceto Afonso - Sim. Principalmente tivemos muita colaboração relativamente às fotografias. Portanto, nesse aspecto como a obra é uma obra de divulgação e tem que ser profusamente ilustrada e então tivemos que recorrer a muitas fontes e a muitas pessoas que possuíam arquivos pessoais fotográficos importantes e nesse aspecto sim, tivemos a colaboração de muita gente.
Fernando Rosas – E da parte da instituição militar há disponibilidade no sentido de a investigação e nomeadamente a investigação não militar poder ter acesso às fontes sobre esse período?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – O acesso às fontes tem normas e a norma que o Exército utiliza hoje é a norma europeia, isto é, trinta anos após os acontecimentos os arquivos são abertos, só que em Portugal há um problema que sempre vem ao de cima, é a questão do tratamento da documentação. O tratamento da documentação é um processo lento, é um processo que exige muito pessoal e pessoal preparado tecnicamente e nem sempre as instituições dispõem desse pessoal e por isso, embora se acumulem nos arquivos muita documentação e muitos fundos arquivísticos que são fundamentais para o estudo desse período, a verdade é que não existe disponibilidade para se fazer o seu tratamento e portanto existe sempre dificuldade em colocá-lo em acesso ao público. No exército todo o material que está tratado arquivisticamente até 1966, portanto, que já fez trinta anos, está aberto ao público. Está a acessível.
Fernando Rosas – Haveria mais questões a tratar sobre esta questão da acessibilidade, mas eu penso que para não transformar isto numa conversa excessivamente técnica sobre acesso aos arquivos, eu ia pôr-lhe uma questão sobre o nosso objecto que é esta. Há uma questão que se nos impõe. Como é que um país como Portugal, economicamente pouco desenvolvido nos anos sessenta, consegue aguentar durante treze anos uma guerra em três frentes, mobilizando cerca de, mais de 100 000 mil homens, com despesas naturalmente vultuosas. Como é que do seu ponto de vista de historiador do assunto, como é que se conseguiu aguentar esta guerra. Porque era barata? Por fraqueza do inimigo? Porquê?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Bem, eu julgo que talvez um pouco de todos esses factores. Digamos a situação que se colocava, que se colocou a Portugal era de sustentar uma guerra em três teatros de operações extremamente distantes uns dos outros, extremamente distantes da retaguarda, uma guerra que, sendo no terreno, principalmente na primeira fase da guerra, portanto digamos até meio da guerra, barata era, no entanto, por estas circunstâncias de distância uma guerra cara.
Fernando Rosas – Porque é que se tornou mais cara?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Tornou-se mais cara porque as guerras como sempre têm tendência para evoluir tecnicamente e dá-se a evolução dos dois lados e à medida que se dá essa evolução tem sempre que se equilibrar aquilo que se chama potenciais de combate e ao equilibrar potenciais de combate aumentam-se substancialmente as despesas relacionadas com o material que são normalmente as despesas mais pesadas na guerra, na condução da guerra. De modo que eu julgo que os motivos por que se manteve uma guerra dessas durante tanto tempo podemos dissecá-los em vários campos. São questões de natureza política e são depois também questões de natureza de aplicação militar ou doutrinário, digamos, de princípios militares da guerra de guerrilhas. Eu julgo que aí, apesar de tudo, devemos reconhecer às forças armadas portuguesas uma capacidade que não parecia ao seu alcance e que elas conseguiram compreender o tipo de guerra que iam enfrentar e conseguiram opor-lhe uma doutrina que talvez seja em alguns aspectos inovadora.
Fernando Rosas – No campo da contra-guerrilha.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – No campo da contra-guerrilha. É verdade que o adversário, portanto, os movimentos de libertação nas colónias portuguesas só começaram a estruturar-se, portanto a ser mais fortes em termos militares, já passados alguns anos do início da luta armada, mas não é menos verdade que noutros territórios coloniais isso também aconteceu e no entanto rapidamente a guerra evoluiu ou para soluções que não eram só de natureza militar, para soluções de natureza política ou evoluiu para confrontos mais de outra natureza, portanto que ultrapassou a natureza da guerrilha e que obrigou exactamente a encontrarem-se soluções políticas. Nas colónias portuguesas isso não aconteceu, portanto prolongou-se esse estado, digamos, um pouco de irresolução, não é. Portanto, sem se saber de facto em que sentido caminhar. Se para uma solução política, para a exigência, as próprias circunstâncias exigirem uma solução política ou para a continuação do mesmo nível da ...
Fernando Rosas – O senhor tenente-coronel referiu há pouco que as forças armadas portuguesas assimilaram com rapidez a problemática das novas condições desse tipo de guerra. Tinham tido, ao que sei, alguma experiência anterior ao próprio começo da guerra, na Argélia e noutros centros de instrução. Creio que os franceses e os ingleses terão sido as fontes dos conhecimentos principais. A pergunta que eu queria fazer, no entanto, era esta. Acha que a partir de algum momento da guerra da parte das chefias há a noção de que a guerra não tem solução militar e acha que por virtude dessa consciência se terá aberto uma conflitualidade com o poder político?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Quase temos que separar caso a caso, pessoa a pessoa. De facto houve, em primeiro lugar, houve esse contacto prévio com outros teatros de operações, principalmente na Argélia, que trouxeram um conhecimento a esses oficiais que frequentaram.
Fernando Rosas – Antes mesmo de começar...
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Antes mesmo de começar a guerra e o facto é que nós, em 1961, o Exército produziu um manual que se manteve em execução até ao final da guerra. Com pouquíssimas alterações que é “O Exército na guerra subversiva” e esse foi o manual de todos os militares que fizeram a guerra e como ele se manteve sempre, praticamente não precisou de alterações é porque, de facto, esses militares perceberam o que é que era essencial numa guerra de guerrilhas porque, digamos que o meio da guerra de guerrilhas não é o terreno e perceberam rapidamente que é a população. Digamos há na manobra militar, há várias manobras e a manobra militar aqui é talvez a manobra menos importante. A grande manobra é a manobra das populações.
Fernando Rosas – Da qual a militar é complementar.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – A manobra militar é complementar e na guerra de guerrilhas, digamos, o Exército português percebeu isso. Julgo eu que percebeu isso duma forma geral muito cedo e por isso a organização do Exército em quadrícula nos teatros de operações foi fundamental para resolver esse problema do enquadramento das populações. Os militares que se situavam numa zona de acção, numa área apercebiam-se rapidamente dos problemas fundamentais dessa área e principalmente das populações dessa área e souberam, portanto arranjaram soluções para, de alguma forma, furtar a população à acção dos movimentos de libertação. Julgo que isso foi fundamental. A outra questão...
Fernando Rosas – Da parte das chefias. Falava eu da questão da consciência das chefias. Se terá ou não desenvolvido 
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Esse é outro problema [Fernando Rosas – Irresolução militar da guerra] Esse é outro problema. Houve chefes que compreenderam isso bastante cedo e à medida que nós aprofundamos o conhecimento que temos deles e dos seus documentos vamos percebendo que muito cedo se aperceberam disso e houve chefes que nunca se aperceberam disso. Isto é fizeram a guerra sem se aperceber. [Fernando Rosas – O general Spínola, o general Costa Gomes]. Eu julgo que podemos falar de nomes, eu julgo que podemos falar de nomes. Julgo que os dois que referiu se aperceberam que a solução da guerra não podia ser militar. [Fernando Rosas – E esses homens criaram escola nas Forças Armadas do ponto de vista...?] Mais o general Spínola criou, mais o general Spínola criou escola do que o general Costa Gomes até porque isso está de acordo com as suas próprias características pessoais, a sua personalidade. O general Costa Gomes, já falando em cada um dos casos, o general Costa Gomes digamos aplicou a sua solução no Leste de Angola e quando ele é comandante chefe de Angola e aplicou uma solução de certa forma por antecipação. Ele percebeu que a guerra ia ter uma segunda fase em Angola que era o Leste e antes que se desse a abertura dessa frente, ele instalou as tropas no terreno, fez a sua quadrícula e portanto adiantou-se de alguma maneira ao início da guerra por parte dos Movimentos de Libertação [Fernando Rosas – Dificultou a abertura da frente Leste ao MPLA] Dificultou exactamente, dificultou e muito para além de outras medidas que foram concorrentes com esta, complementares desta. A criação de forças irregulares que foi o acordo a que depois chegou com a UNITA. Portanto a própria existência de mais do que um Movimento facilitou também o papel das Forças Armadas.
Fernando Rosas – Mas ele tinha a consciência de que todas essas medidas eram medidas tendentes a ganhar tempo para uma solução política.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Há isso sempre. Parece-me hoje evidente que mesmo nos escritos oficiais e mesmo naquilo que veio a ser publicado, dito pelo general Costa Gomes na altura que é evidente que ele acha sempre, deixa sempre uma mensagem de que a guerra não se podia resolver só por meios militares.
Fernando Rosas – Mas de qualquer maneira, encontrará, creio que não me engano, se sugerisse ao senhor tenente-coronel que é difícil encontrar mais oficiais generais a partilhando desse ponto de vista na altura.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Vamos do outro que é o general Spínola.
“Há que entrar no âmago do movimento africano, detectar as aspirações comuns e sobre estas construir esquemas de cooperação e interdependência que liguem de facto africanos e europeus e permitam sobre essa solidariedade afirmação de sólida unidade político-económica. Não se nos afigure porém impossível tal solução, senão pela via da construção de sociedades individualizadas, unificadas sob um estatuto que, garantindo a pluralidade, constituem na ordem externa uma unidade suficientemente flexível para que pelo seu seio as diversas partes possam prosperar, afirmar-se e realizar-se”.
(Excerto de discurso do general Spínola)
O general Spínola foi para a Guiné em 1968 como Comandante Chefe e Governador Geral, é uma situação pouco comum. Se reparar bem em todo o... [Fernando Rosas – Concentrar o poder político e o poder civil] Concentrar o poder político e o poder militar na mesma pessoa num teatro de operações. Ele foi para lá nessa situação em 1968 e logo em 19668 ele fez um estudo de situação em que anuncia, de alguma forma, aquilo que virá a ser a sua acção durante os cinco anos que ele lá esteve e em que não nos deixa dúvidas nenhumas ao ler os seus escritos e essas suas directivas, não nos deixa dúvida nenhuma que ele percebeu, desde o princípio, que aquilo era uma guerra sem solução militar e que era preciso conjugar uma solução política, arranjar uma solução política, que necessariamente passaria por negociações com os Movimentos de Libertação, o PAICG, para chegar a uma solução. É claro que essa solução era na altura compreendida, uma solução dentro dum, uma solução portuguesa, se assim quisermos dizer, mas que fosse partilhada com o PAIGC, evidentemente.
Fernando Rosas – Evidentemente, isso no general Spínola vai ela própria evoluindo.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Vai também, vai também. Não tenho é tanto a certeza em que sentido em que ela evolui. [Fernando Rosas – Se para trás, se para a frente] Sim. Não tenho a certeza. Parece-me que ele em 1968 faz um diagnóstico exaustivo da situação e chega exactamente à conclusão que são necessárias negociações.
Fernando Rosas – E acha que a partir de certa altura ele terá pensado que é possível ganhar militarmente a guerra?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Julgo que não, julgo que no terreno não. Agora poderia ser  [Fernando Rosas – Como explica a Operação Mar Verde no sul da Guiné] Talvez essa seja das atitudes inexplicáveis. Talvez seja porque [Fernando Rosas – Talvez pressão do seu ´staff´] Talvez sim. Também não tenho um conhecimento suficiente, em termos dos acontecimentos, para situar a Operação Mar Verde no conjunto de acções que ele estava a fazer onde a Operação Mar Verde parece não ter lugar.
Locutora - Já agora, desculpem, como é que foi a Operação Mar Verde?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Estamos a falar duma Operação que nós chamamos irregular que é uma Operação feita no exterior, portanto feita no exterior do território do teatro de operações, na Guiné-Conacri, com tropas de certa forma irregulares também, embora sendo constituídas também por militares, eram também, de alguma forma, irregulares. Era uma operação feita no exterior, com finalidades políticas. [Fernando Rosas – Só para os ouvintes saberem, finalidades essas que consistiriam em derrubar o Sekou Touré e aparentemente liquidar fisicamente Amilcar Cabral]. Esse segundo objectivo que tem constado parece tão incongruente que o general Spínola vinha fazendo e com a aproximação que ele vinha fazendo exactamente ao Amilcar Cabral através do Senghor que de certa forma não encontramos uma explicação muito válida ainda hoje não encontramos uma explicação muito válida para saber o que é que ele poderia ter feito, quer dizer, o que é que o general Spínola e mesmo Portugal poderia ter feito com uma vitória, se tivessem alcançado esses objectivos de derrubar o Sekou Touré e matar o Amilcar Cabral, se esse era verdadeiramente o objectivo. [Fernando Rosas – Libertar os presos, etc.] Sim, esse foi o objectivo atingido, mas os outros se tivessem sido atingidos talvez hoje não se perceba muito bem o que é que se teria feito com isso porque o Governo Português, Portugal iria ficar numa situação extremamente incómoda em termos internacionais e o general Spínola também iria ficar ele próprio também numa situação extremamente incómoda, quase insustentável, portanto, continuamos a interrogarmo-nos sobre essa questão da Operação Mar Verde. Mas essa não nos parece ser a linha de pensamento do general Spínola. Parece-nos ser alguma coisa que estaria fora do pensamento dele com [Fernando Rosas – Constato que temos um chefe militar com o pensamento de conjugação da solução militar com a política em Angola, um na Guiné, em Moçambique falta um chefe militar desse género.] Faltou, Julgo que faltou.
Fernando Rosas – E isso teve repercussões na condução da guerra?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Teve muito, muitas repercussões.
Fernando Rosas – Diga-me um pouco como é que observa esse problema.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Esse, portanto, o chefe que se associa à guerra em Moçambique é o general Kaulza de Arriaga. O general Kaulza de Arriaga foi Comandante-chefe a partir de 1970 e desde logo fez uma coisa que os mais prudentes generais, mesmo os menos prudentes generais portugueses já não faziam em 1970. Já tinham aprendido muito com a guerra e já sabiam que neste tipo de guerra não de faziam grandes operações. As grandes operações que se fizeram, fizeram-se no início da guerra, fizeram-se em Angola, foi a operação que levou à reocupação de Nambuongongo, a Operação Viriato, é uma grande operação que envolve grandes efectivos. Fez-se na Guiné com a Operação Tridente de ocupação da ilha de Como, também uma operação conjunta com os três ramos das Forças Armadas e com grandes efectivos. [Fernando Rosas – Estamos a falar de operações de guerra clássica] Um pouco de guerra clássica, não é. Começando uma guerra seguinte como forma de acabar a de guerra anterior, não é. Na segunda guerra e portanto aplicou-se nestes territórios essa grande operação. Em Moçambique também se fez uma grande operação no planalto dos Macondes, em Cabo Delgado, que foi a Operação Águia, também um pouco com esta dimensão [Fernando Rosas – Antes da Nó Górdio] Muito antes, logo no início da guerra. Estamos a falar nas três grandes operações que se fez uma em cada teatro, logo no início da guerra. [Fernando Rosas – Portanto naquilo que se pode chamar uma primeira fase da guerra.] Uma espécie de primeira fase. Isso até é uma fase muito rápida. Rapidamente se percebeu que isso não era o tipo de operações daquela guerra. Aquela guerra era uma guerra de pequenas operações, de grande dispersão de tropas, de presença de tropas no terreno, com forças de quadrícula, ocupando todo o terreno e depois forças de intervenção que fariam as tais operações mais concretas, não é. Kaulza de Arriaga em 1970 parece que ainda não teria percebido este princípio da guerra de guerrilhas e em 1970...
Fernando Rosas – Qual era a filosofia da Operação Nó Górdio?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Em 1970 a filosofia era praticamente igual a esta filosofia que se aplicou em 61 até 64, nestas grandes operações. São grandes operações que se destinam a expulsar o inimigo duma zona e foi o que aconteceu. O que estava em causa era o planalto dos Macondes onde a FRELIMO tinha bases, bases que já vinham desde há vários anos e que toda sabia que elas existiam e onde estavam, mas que na condução duma guerra de guerrilhas eram encaradas duma certa maneira pelas forças portuguesas a quem não incomodava que as bases da FRELIMO estivessem naqueles locais desde que elas não saíssem daquela área ou daquela zona de acção e desde que a guerra não se estendesse para além de certos limites. Os limites que eram fixados, a zona de guerra, digamos, era fixada o que se pretendia principalmentalmente era que a guerra não alastrasse a outras zonas. Digamos era uma guerra morna não é, que se desenvolvia naquelas áreas. Quando o general Kaulza de Arriaga prepara a Operação Nó Górdio, Operação de grande dimensão, com muitos efectivos, que vai actuar nesse planalto dos Macondes onde a FRELIMO estava instalada, com assalto às bases da FRELIMO. É uma Operação preparada com alguma antecedência.
Fernando Rosas – Era possível um Comandante-Chefe de Moçambique ter completa autonomia para desencadear uma operação que contrariava um pouco a doutrina militar em vigor nas Forças Armadas nesse momento.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Eu não posso afirmar se ele teve ou não teve autorização para fazer essa Operação. Julgo que sim.
Fernando Rosas – O Chefe Maior General já era o general...
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Em 1970 sim. Mas julgo que Costa Gomes. Não, julgo que ainda não era. Eu julgo que o Comandante-Chefe tinha autonomia para fazer esta operação ou outro tipo de operação. Digamos na sua carta de comando não se lhe impunha o tipo de operação que devia fazer. A condução da guerra, digamos, após ser nomeado [Fernando Rosas – Pode-se dizer não havia uma doutrina militar vigente acerca da condução da guerra.] Havia, mas não neste aspecto. Havia, a doutrina militar que havia era nesses aspectos do dia a dia, da ligação, da condução das pequenas operações, das emboscadas, do golpe de mão, de patrulhamentos, portanto todas essas pequenas operações e da relação com as populações. Aí sim, havia doutrina. Se se fazia uma grande operação ou uma pequena operação isso depende do chefe. Se estrategicamente é importante fazer ou não fazer.
Fernando Rosas – Corrigir-me-á, mas o que julgo perceber é que se está instalada uma doutrina militar de quadrícula para a condução da guerra e de repente se mete em cima dessa doutrina uma operação deste género isto desarticula completamente todo o esquema militar que está em vigor.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Até certo ponto podemos admitir que sim. Até certo ponto podemos admitir que sim porque as forças militares que forem empregues nessa operação foram principalmente forças militares de intervenção, portanto não são as forças militares de quadrícula. Portanto, são aquelas forças que estão de reserva sob o comando directo do Comandante-Chefe, embora vários batalhões de quadrícula tenham participado também nas acções que são complementares propriamente dos assaltos e dos golpes de mão às bases da FRELIMO. O que aconteceu é que isto foi sabido pela FRELIMO com muita antecedência porque os sistemas de informação funcionam para os dois lados, e quando se deu o assalto evidentemente as bases da FRELIMO estavam desocupadas, já não estava lá ninguém da FRELIMO e digamos todos os guerrilheiros ou a maior parte dos guerrilheiros estavam fora da área que foi definida para a grande operação e portanto os resultados digamos, em termos da aplicação de meios, os resultados foram bastante diminutos.
“Portugal, anos 60: a guerra colonial”. Com a colaboração do professor Fernando Rosas e do tenente-coronel Aniceto Afonso, tema ainda dos próximos programas.
Fizeram este programa Franklin Rodrigues, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.

(Programa gravado da Antena 2 no dia 21 de Novembro de 1997)


2ª Parte
Continuamos a história do nosso século. Estamos nos anos 60, os anos da guerra do Vietname, da intervenção na Checoslováquia pelas forças do Pacto de Varsóvia, do assassinato de John Kennedy e de Che Guevara, da crise de Maio de 68 em França, das guerras coloniais em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Em Agosto de 1964, o presidente Johnson decide, com o acordo do Congresso, intervir maciçamente no Vietname. Em 1965, os B52 bombardeiam o norte. 500 000 jovens americanos combatem o exército do Vietname do Norte e o Vietcong.
Em Portugal, os anos 60 são marcados pelas guerras coloniais: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau.
“Vai falar agora um estudante da Faculdade de Direito de Lisboa, um rapaz natural da Guiné, uma Província do Ultramar, Pedro Orti, aluno do Liceu Honório Barreto da Guiné portuguesa, actualmente a cursar a Faculdade de Direito de Lisboa. Portugal uno e indivisível.
‘Não se podia fazer esperar por mais um minuto sequer o protesto da juventude portuguesa contra os ataques que Portugal está sendo alvo na ONU. Este protesto que aqui viemos fazer através da nossa voz uníssona é tanto mais enérgico...’”
Eram assim as notícias sobre a guerra colonial nos anos 60. A guerra colonial continua a ser então o tema do nosso programa. Como sempre com a colaboração do professor Fernando Rosas e o convidado o tenente-coronel Aniceto Afonso.
Fernando Rosas – O que falámos em várias fases ou em mais que uma fase deste período de treze anos de guerra colonial, como é que as definiria, brevemente, uma e outra? Se são duas.
Tenente-coronel Aniceto Afonso - Temos de definir cada teatro. De facto, podemos definir algumas fases, mas nem sempre é fácil porque na Guiné e resumindo, na Guiné as fases confundem-se com a presença do general Spínola. Há uma fase antes do general Spínola, até 68, e há outra fase da guerra, completamente distinta, depois com presença do general Spínola. Em Angola, podemos dividir a guerra no norte, primeira fase, a guerra no leste, segunda fase, a partir de 68, aproximadamente, 67/68 porque a independência da Zâmbia dá-se em 66. Portanto, depois há a preparação a partir da Zâmbia para, em 67-68, se iniciar a frente leste. Em Moçambique, estas fases estão talvez mais difíceis de definir, mas também o general Kaulza contribui um pouco para falarmos de duas fases. 
Fernando Rosas – E essa segunda fase que características é que teria? Apresentada da parte das forças armadas portuguesas. Que mudanças de doutrina, que mudanças de comportamento, fala-se de africanização da guerra, fala-se de esgotamento do potencial humano metropolitano para aguentar o esforço militar. Podia-nos falar um pouco sobre isso.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Sim, a parte da africanização talvez não tenha muito a ver com estas fases. A africanização é bastante... começa bastante cedo, mas de facto uma africanização um pouco mais maciça começa nessas segundas fases. Portanto, digamos a partir de 68, talvez, definindo um ano para os três teatros de operações. Talvez em Moçambique um pouco mais tarde e essa africanização resulta do esgotamento dos efectivos metropolitanos. Isso é nitidamente também um comprometimento das populações na condução da guerra. Isto, digamos, faz parte da manobra das populações, comprometer as populações na própria guerra, lutando umas com as outras e retirando dessa acção, dessa frente tropas portuguesas, foi talvez uma forma, talvez até um princípio doutrinário que em poucos lugares se tenha...
Fernando Rosas – Explorando as contradições étnicas.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Explorando essas contradições também.
Fernando Rosas – Nos três teatros.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Nos três teatros isso aconteceu. Em Moçambique em 1964 já íamos com 55 % dos efectivos de recrutamento local, de africanização.
Fernando Rosas – Como tropa regular ou como forças de intervenção?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Tropa regular e forças de intervenção. Portanto, tropa regular, enquadradas por quadros portugueses, metropolitanos e nas forças de intervenção através da formação de grupos especiais, dos chamados GE e dos grupos especiais de pára-quedistas, GEP, e doutras forças que foram para lá.
Fernando Rosas – Como é que definiria em Abril de 74, no dia 24 de Abril de 74, como é que definiria a situação em cada um dos teatros, do ponto de vista militar. Político-militar.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Sim. Do ponto de vista militar. Vamos ver. Na Guiné a situação desde 1973 era muito difícil, era mesmo militarmente insustentável porque desde o aparecimento dos mísseis, digamos, a superioridade aérea. [Fernando Rosas – Estamos a falar dos mísseis terra-ar.] Sim dos mísseis terra-ar, dos mísseis Strela, a superioridade aérea portuguesa terminou nessa altura, não é. Apesar dos esforços para contrariar, da Força Aérea, da acção da Força Aérea, mas há muitas missões da Força Aérea que são impossíveis de fazer com a existência desse míssil em terra. Portanto, a situação era muito difícil, até porque o PAIGC tinha desenvolvido unidades extremamente operacionais, de grande potencial de combate e tinha já ultrapassado aquilo a que nós chamamos a terceira fase, que é a fase da guerrilha e aproximava-se da quarta fase da subversão que era a formação de um exército regular e de participar também em acções regulares.
Fernando Rosas – E já há operações dessa quarta fase?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Há operações dessas que é o ataque a Guidaje, a tomada de Guileje. Portanto, tudo isso já são operações de grande envergadura que de forças regulares. Digamos que então militarmente na Guiné julgo que a situação seria insustentável e a curto prazo teria que haver uma solução. Julgo que mesmo por causa disso é que terá havido o tal início de conversações, contactos através de políticos, não é. A situação em Moçambique era uma situação muito difícil e era uma situação muito difícil porque a guerra, como eu já disse, estava no corredor da Beira e estava portanto no coração de Moçambique, estava a aproximar-se do coração de Moçambique, do coração económico de Moçambique. A guerra em Moçambique tinha sempre no norte, é um teatro de operações muito especial porque é um teatro de operações muito longo e a actividade económica principal de Moçambique não se passa no norte, passa-se do centro para baixo. E enquanto a guerra esteve no norte, isso não influenciou muito a actividade económica e a vida de Moçambique e até dos portugueses que estavam em Moçambique ou dos brancos, duma forma geral. Quando ela chega à Beira, quando ela chega ao corredor da Beira aí a situação começa a tornar-se também insustentável. Quer dizer, de facto a guerra não podia chegar aí. Agora, de facto, chegou. Portanto, no início de 1974 estava...
Fernando Rosas – O caminho de ferro da Beira estava afectado.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Estava afectado o caminho de ferro e a ligação por estrada à antiga Rodésia, Zimbabué, portanto a Rodésia, na altura. Portanto, estava afectada essa zona e ao estar afectada essa zona isso iria desequilibrar a comunidade branca, os brancos que viviam nessa zona, que tinham muitas relações com todo o sul e com os que viviam em Lourenço Marques e julgo que isso já seria insustentável do ponto de vista da comunidade branca, mas também talvez do ponto de vista dos vizinhos de Moçambique, não é, a África do Sul e a própria Rodésia.
Fernando Rosas – Falta-nos Angola.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Falta-nos Angola. Angola, por uma série de circunstâncias que viveu a partir de 1970, entre as quais já dissemos, já falámos da figura do general Costa Gomes e da sua solução da implementação da sua solução. Duma série destas circunstâncias, de ter três Movimentos, se ser um território menos povoado, com mais dificuldade para os Movimentos de Libertação, de haver três Movimentos de Libertação que, de qualquer forma, se opunham entre si e fruto também do desenvolvimento económico de Angola e da sua riqueza, da descoberta de petróleo, dos diamantes, do café, portanto de toda essa riqueza, encontrava-se, nesta altura, numa situação militarmente estável, mas não era uma situação resolvida, evidentemente, e tanto não era resolvida que os efectivos presentes em Angola sempre aumentaram e ninguém pensou nunca em diminuir os efectivos militares presentes em Angola. A única pessoa que pensou nisto foi o general Kaulza de Arriaga quando quis juntar os dois teatros no mesmo comando, Angola e Moçambique. O Kaulza de Arriaga pensou nisso, pensou em juntar os dois teatros e dada a acalmia militar de Angola e dada a dificuldade militar de Moçambique, ele pensaria, talvez, em transferir efectivos de Angola para Moçambique, mas ninguém mais, que eu saiba, pensou em transferir efectivos o que, de certa forma comprava que, apesar da situação militar parecer estável, não estava resolvida.
Fernando Rosas – E qualquer desaire nas outras frentes se seria imediatamente repercutir em Angola. Do ponto de vista político, do ponto de vista militar
Tenente-coronel Aniceto Afonso – É evidente do ponto de vista político os casos nunca foram separados e como nunca foram separados, nunca puderam ser tratados autonomamente.
Fernando Rosas – Mas não deixa de me surpreender que, apesar de tudo, no corpo de generais, de oficiais-generais das nossas Forças Armadas, a noção do beco sem saída político-militar da condução da guerra fosse assumida por um número tão pequeno de oficiais. Estamos a falar de três, quatro pessoas.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Sim, é verdade e mesmo no corpo de oficiais, duma forma geral, porque não só oficiais-generais, mas todos os outros oficiais. Mas, duma forma geral, as pessoas compreendiam que não podia haver solução militar.
Fernando Rosas – Mas isso talvez não seja generalizável se pensarmos que vai partir dos oficiais intermédios a iniciativa de pôr termo à guerra através do movimento militar. [Tenente-coronel Aniceto Afonso – Também por outras razões, também por outras razões.] O cansaço, ou seja, talvez pela assunção um pouco difusa de que aquela guerra não tinha fim. Mas de alguma maneira esse cansaço, essa resolução, essa impossibilidade de vencer.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Neste tipo de guerra, se alguém tinha essa noção eram os capitães porque estavam lá. Os capitães eram, de facto, como Comandantes de Companhia, eram os comandantes da unidade fundamental das Forças Armadas neste tipo de guerra. Os capitães eram Comandantes de Companhia e tinham uma zona de acção onde tinham a percepção e o conhecimento do terreno.
Fernando Rosas – O senhor tenente-coronel fez a guerra como capitão?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Fiz como capitão, em Angola e Moçambique.
Fernando Rosas – Em Angola e em Moçambique. Eu gostava agora de lhe falar dum assunto delicado que é o problema dos direitos humanos e da guerra. Houve alegações, na altura, não só de abusos e até de crimes cometidos pelas Forças Armadas contra a população. Estou a lembrar-me, em Moçambique, designadamente. Estou a lembrar-me, enfim, daqueles casos denunciados pelo padre Hastings, de Wiriamu e de outras localidades, estou a falar de alegações frequentes do recurso à tortura para obter confissões no terreno de um guerrilheiro capturado, etc., etc. Como é que acha que hoje se pode avaliar, de parte a parte, o problema do nível de violação dos direitos humanos na guerra colonial portuguesa. Ou seja, como é que na sua opinião, como é que acha que poderá avaliar esse problema?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Para falarmos da guerra duma forma geral, devemos ser prudentes, para falarmos desse caso concreto, mais prudentes devemos ser. Primeiro, porque as circunstâncias em que isso aconteceu não estão estudadas. A documentação que existe não está aberta. Portanto, ainda não chegou, portanto isso aconteceu mais na parte final da guerra, portanto não está aberta. Muita documentação que deveria existir não existe porque em todas as guerras essas coisas acontecem e normalmente não se fazem papéis. Portanto, não há documentos sobre esses acontecimentos. Esses acontecimentos vêm ao conhecimento do público por outras vias e por outros canais. Julgo que devemos ser prudentes ao analisar isso e que não sei se hoje será já oportuno falar sobre isso.
Fernando Rosas – O general Costa Gomes diz que evitou a utilização do napalm em Angola. Lembra-se dessas afirmações dele? [Tenente-coronel Aniceto Afonso – Lembro-me, lembro-me.] Mas ao mesmo tempo há alegações de que a Força Aérea Portuguesa utilizou o napalm em bombardeamentos de objectivos militares. O napalm foi utilizado na guerra colonial?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Sim, sim, foi utilizado. Isso está hoje confirmado e já houve pessoas que noutros meios de comunicação afirmaram que utilizaram. Portanto, não me pertence a mim dizer que não quando eles próprios afirmam que o napalm foi utilizado.
Fernando Rosas – Qual era a relação da força armada com a polícia política no teatro de operações?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – A polícia política organizou-se nos teatros de operações principalmente como instrumento de informações. Era um órgão de pesquisa de informações e as informações são fundamentais numa guerra, qualquer tipo de guerra. Numa guerra de guerrilhas então muito mais importantes e a polícia política, PIDE, depois DGS, fornecia às Forças Armadas as suas informações ou fornecia às Forças Armadas as informações que entendia fornecer. Isso será talvez uma coisa interessante para estudar. Todas as informações ou eram ou não eram fornecidas às Forças Armadas. Portanto, a relação era principalmente a este nível de coordenação, primeiro, de fornecimento das informações e de coordenação do sistema de informações. Tinha que ser não só pela polícia política, mas também pelas outras polícias, por todas as autoridades administrativas e pelas Forças Armadas. Isto é, houve territórios em que esta coordenação foi bastante eficaz, como em Angola. [Fernando Rosas – Havia um comando único?] Em que havia, de facto, uma comissão coordenadora em que se coordenavam todas estas informações. Em Angola esse dispositivo foi implantado desde bastante cedo, talvez de 66/67, é implantado esse dispositivo de cooperação entre todas as autoridades. Não foi tão eficaz em Moçambique e na Guiné, como o teatro era bastante mais pequeno, portanto mais acessível ou bastante mais fácil a obtenção de informações, talvez por esse motivo, mas também principalmente porque o general Spínola levou para a Guiné os elementos da DGS que entendeu, pôde escolher os seus colaboradores. [Fernando Rosas – Mesmo a esse nível.] Mesmo a esse nível. Portanto, levou para lá. Aí eles puderam arranjar sistemas de coordenação fáceis, até porque, mais uma vez insisto nesse ponto, que é praticamente único, o general Spínola era ao mesmo tempo comandante-chefe e governador-geral o que não acontecia nos outros teatros e por isso há muitas vezes grande dificuldade de fazer essa coordenação das informações. Portanto, acho que as relações com a polícia são principalmente ou com as polícias ou com as outras autoridades, são principalmente ao nível da recolha de informações.
“Uma patrulha da famosa 3ª Companhia de Caçadores Especiais destruiu no extremo noroeste do Distrito de Malange uma das mais importantes concentrações de terroristas.”
“Graças à pronta e valorosa intervenção duma patrulha comandada pelo alferes Armando Carvalhão, um nome que é já temido pelos bandoleiros que têm tentado infiltrar-se no Distrito de Malange, acaba de ser totalmente eliminado um dos mais importantes centros de concentração e preparação de terroristas, situado no extremo noroeste do Distrito de Malange, a seguir à importante ponte que existiu sobre o rio Cauau, a cerca de 40 km de Sanza Pombo. Por informações recebidas de indígenas fiéis à pátria portuguesa, sabia-se que alguns milhares de bandoleiros, aliciados pelo comunismo...”
Fernando Rosas – O boicote internacional ao armamento, ao fornecimento de material militar ao governo português reflectiu-se na condução da guerra no terreno?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Claro que se reflectiu. Tinha que se reflectir porque, enquanto no início da guerra ou na primeira fase da guerra foi possível dotar as Forças Armadas dum nível mínimo de armamentos e equipamentos que, de certa forma, equilibravam o potencial de combate dos dois lados, a partir de certa altura, com o contínuo fecho dessa possibilidade de Portugal adquirir armamentos e equipamentos e com a grande abertura doutros países relativamente aos Movimentos de Libertação e ao fornecimento desses armamentos, isto acabou por se reflectir nessa relação de potencial de combate que sempre se desequilibrou em favor dos Movimentos de Libertação, tanto na quantidade, como na qualidade.
Fernando Rosas – Quer dizer, estavam mais bem armados?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Estavam mais bem armados.
Fernando Rosas – Apesar de não terem aviação.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Apesar de não terem aviação. Portanto, em termos de equipamento do exército, não é, em termos do equipamento, tanto individual como colectivo, portanto armas de apoio, etc. Todas as armas, se compararmos uma a uma, todas as armas deles na fase final da guerra eram superiores às armas portuguesas.
Fernando Rosas – Nos três teatros?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Nos três teatros.
Fernando Rosas – A nossa conversa já vai longa, já deu para dois programas. Vamos concluir o segundo. Queria-lhe perguntar. Há números sobre desertores e refractários nas Forças Armadas durante esse período?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Sim, sim. Há números.
Fernando Rosas – Pode-nos dar uma ideia de grandeza, se é que a tem presente?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Não tenho presente o número. Posso é dizer-lhe, talvez desfazer um pouco essa ideia e explicar aquilo que se passava. Normalmente, não houve muitos desertores, em termos globais.
Fernando Rosas – Também era a ideia que eu tinha.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Não houve muitos desertores. O que houve muito foi faltosos. [Fernando Rosas – Faltosos, exactamente.] Portanto, aqueles que não foram sequer, que não se apresentaram sequer para fazer o serviço militar. Os faltosos chegaram a atingir 25 % do contingente. [Fernando Rosas – O que é muito.] É muito, é muitíssimo porque toda essa quarta parte dos mancebos, digamos, tiveram que emigrar.
Fernando Rosas – Pessoas que iam para a emigração, pessoas que saíram do País.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Eram clandestinas ou emigravam. Não havia outra hipótese para escapar ao serviço militar.
Fernando Rosas – E tira daí algum significado?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Tiro um significado, tiro vários significados. Tiro um significado que de facto as pessoas, havia muita gente que não estava na disposição de fazer a guerra. Portanto, não compreendia a guerra, mas por outro lado parece-me que não se reflectiu nas atitudes da sociedade portuguesa este descontentamento. Repare que os capitães, se continuarmos a conversar sobre isto, que os capitães, no fundo, quase podemos dizer que eles avançam por motivos corporativos, por motivos que têm a ver com a sua vida militar e não por responderem a um apelo da sociedade.
Fernando Rosas – Mas não acha que isso também evoluiu na consciência dos capitães. Quer dizer, o próprio MFA vai evoluir...
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Eu acho que sim, mas era necessário, do meu ponto de vista, era necessário ou deveria ter sido necessário que não fossem os capitães a terem essa consciência, que fosse mais o povo português, que fosse mais o povo português que tivesse a consciência de que aquela guerra não podia continuar e que tivesse, digamos, havido um movimento de oposição à guerra bastante maior do que aquele que houve porque, no fundo, os capitães tiveram que aprender isto por si próprios, não é. Que a guerra não podia continuar. Talvez tivessem aprendido mais política nos teatros de operações do que aprenderam em Portugal o que, do ponto de vista duma atitude militar contra o Regime, é sempre uma formação de importação. Portanto, tiveram que importar dos teatros de operações para aplicar em Portugal essa ideia da liberdade...
Fernando Rosas – De qualquer maneira, não se pode dizer que a partir da segunda metade dos anos 60 não houvesse oposição à guerra em Portugal.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Eu não contesto isso, eu contesto é que não havia movimentos sociais suficientemente fortes para que os militares se questionassem.
Fernando Rosas – Não acha que, por exemplo, as lutas estudantis tiveram influência nalguns oficiais que frequentaram as universidades?
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Eu acho que sim. As lutas operárias, as lutas estudantis, todo o movimento social teve esse impacte no pensamento dos militares. Agora, do meu ponto de vista, continuo a achar que não foi suficiente e foi isso que retardou tanto uma acção militar contra o Regime porque ela só ocorreu em 74. É preciso vermos que em 58 foram as eleições do general Humberto Delgado e foi a fraude eleitoral que todos sabemos e que de 58, depois disso começa a guerra colonial em 61, e que praticamente de 61 até 74 ou até aos primeiros anos da década de 70 não houve nenhum movimento social forte, digamos, de rua, não é, que alertasse a instituição militar como foi, por exemplo, no 28 de Maio, se quisermos fazer a comparação. O 28 de Maio tinha por trás de si um movimento social forte. É claro que de sentido contrário, evidentemente, mas existia esse movimento e esse movimento chegava aos militares. O facto, do meu ponto de vista, que reteve as Forças Armadas é não sentir que esse movimento chegasse através...
Locutora - Mal comparado, desculpe, como aconteceu com a guerra do Vietname e o povo americano.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Já não vou comparar com a França que era uma democracia, tinham a opinião pública, tinham tudo isso, tinham jornais.
Fernando Rosas – Agora, se não houvesse uma tensão acumulada na sociedade portuguesa, o golpe militar de 25 de Abril de 74 não tinha dado origem ao processo revolucionário que de qualquer maneira...
Tenente-coronel Aniceto Afonso – São duas coisas distintas. Mas eu estou a falar do antes do 25 de Abril. Eu estou a falar do antes do 25 de Abril e digamos o 25 de Abril sempre teria que se dar porque ele nasceu nas colónias, nasceu na guerra colonial e por mais que houvesse ou não houvesse movimento, eu penso que o 25 de Abril tinha que se dar porque a guerra tinha que acabar. Portanto, as Forças Armadas não podiam suportar mais aquela guerra e portanto teriam que inverter a situação política porque a única forma de acabar com a guerra era inverter a situação política. Colocou-se finalmente. Todos os militares pensaram nisso, que formas é que haveria para inverter a situação da guerra e todas foram sendo excluídas até que a última que restou foi alterar a situação política, mas isso foi visto de dentro para fora.
Fernando Rosas – Os militares tentaram, aliás, convencer Marcelo Caetano a seguir outro rumo.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Tentaram.
Fernando Rosas – Ou seja, mesmo directamente.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Mesmo directamente. Houve contactos directos.
Fernando Rosas – Mesmo ligados ao general Spínola.
Tenente-coronel Aniceto Afonso – Exactamente, exactamente.
Fernando Rosas – É sobre isso que há alguma notícia recentemente. Naturalmente esta questão da opinião pública portuguesa e a guerra dava-nos para outro programa ou mais que um. Talvez tenhamos oportunidade de o fazer. Senhor tenente-coronel muito obrigado [Tenente-coronel Aniceto Afonso – De nada.] por ter estado connosco hoje.
Locutora – Com o professor Fernando Rosas e o tenente-coronel Aniceto Afonso falámos da guerra colonial.
Fizeram este programa, Ana Colaço, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.

"ERA UMA VEZ UM MILÉNIO". Em tempo de mudança, a história do século XX

(Programa transmitido na Antena 2 no dia 28 de Novembro de 1997)
Transcrição : Irineu Batista