ERA UMA VEZ UM MILÉNIO
Entrevista com José Salvador
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”
Por Armando Pinho, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
Os anos 60 em Portugal começam com protestos, prisões e greves. A 3 de Janeiro de 1960, ultrapassando as forçadas medidas de segurança, dez militantes do PCP, entre eles Álvaro Cunhal, evadem-se do Forte de Peniche. Em Abril, protestando contra o despedimento de um grande número de trabalhadores, cerca de 150 mineiros de Aljustrel ocupam a mina durante um dia e meio. Os familiares ocupam a sede do Sindicato Nacional dos Mineiros, as forças policiais intervêm, prendendo e enviando para o Forte de Peniche 130 trabalhadores. No dia 1 de Maio, em Lisboa, Couço, Tortosendo e Guimarães o dia do trabalhador é assinalado por greves de protesto contra as más condições de vida e a ausência de liberdade sindical. Em 1961 tem início a guerra colonial. Em 62 é assassinado pela PIDE na rua dos Lusíadas, em Lisboa, José Dias Coelho, ex-dirigente estudantil, pintor, expulso do ensino superior português e demitido do seu lugar de professor do ensino técnico pelo governo de Salazar.
Ainda em 1962 tem início a primeira grande crise académica. Greves, prisões, manifestações e revolta marcaram a sociedade portuguesa nos anos 60. A acompanhar estes acontecimentos a música teve um papel importante. José Afonso, Adriano Coreia de Oliveira surgem com o novo movimento musical, era uma música interveniente para acompanhar os tempos e os sonhos de muitos portugueses.
E na História do nosso século continuamos nos anos 60 e hoje para falarmos “Anos 60 e a música” connosco está José Salvador. José Salvador o que é que se ouvia na Rádio no princípio da década de 60.
José Salvador – Bom, eu na altura não ouvia muito Rádio porque, embora seja um viciado da Rádio interessava-me sobretudo a área da informação e, como sabe, nessa época havia censura e havia censura não só para a informação com também para a música. A música dominante, tanto quanto a memória me lembra, era aquilo que a gente designava por o nacional-cançonetismo, não é, não era propriamente uma música que me interessasse muito.
Locutora - Mas nós nos anos 60 temos a guerra colonial, temos a crise de estudantes, temos uma população esclarecida e combativa. Como é que surge a outra canção?
José Salvador - Bom, eu estava nos anos 60, estava em Coimbra, era estudante de Coimbra, aliás fui dirigente da Associação Académica de Coimbra na tal crise de 69 ao lado do Celso Cruzeiro, do Alberto Martins, agora é muito conhecido, o Osvaldo Sarmento e Castro agora é membro do governo o que é curioso para verificar como as coisas mudaram ao longo destes tempos ou não mudaram tão pouco como isso porque quando foi a crise de 69 o professor Hermano Saraiva que ironia do destino veio a ser meu director no Diário Popular depois do 25 de Abril, expulsou ou suspendeu uma série de estudantes em Coimbra, provocou aquela crise que todos estão recordados e seria o professor Veiga Simão que hoje faz parte do governo socialista que prosseguiu na chamada normalização da Universidade de Coimbra. Mas nesse período, exactamente em Novembro de 68 que foi o mês e altura em que conheci pessoalmente o José Afonso começavam a aparecer e a sobressair as baladas, não é. Aquilo a que se chamavam baladas ou canções, embora canções tradicionais, mas não aquela tradição clássica do fado de Coimbra.
Locutora - Pois, a balada não era, não tinha tradição em Portugal. Era alguma influência de fora?
José Salvador - Eu acho que no fundo, no fundo podemos ir buscar as raízes da balada às tradições mais profundas da música portuguesa, provavelmente à Idade Média porque em geral eram canções com um suporte musical muito simples [Locutora – Os cantares de amigo, para aí, não] Sim, as canções de amigo, etc. Praticamente vivia da voz do cantor, acompanhadas, em geral, só por uma viola, uma viola e uma guitarra. Havia um grande despojamento do ponto de vista da roupagem musical e o que sobressaía é o conteúdo das canções, por isso a própria escrita em si e a voz de quem fazia a interpretação dessas mesmas canções, não é. Nesse período havia duas personalidades que de facto sobressaiam que eram o Zeca Afonso e o Adriano Correia de Oliveira.
Locutora - O Zeca Afonso, lembra-se quando é que ele começou a cantar?
José Salvador - Bom, ele começou a cantar antes de vir para Coimbra. Segundo o que ele me contou, começou a cantar ainda era estudante do liceu. Como era muito dotado para cantar, era aproveitado na altura pelos veteranos e pelos estudantes já da Universidade de Coimbra, era uma espécie de requisitado para ir fazer serenatas aos lares onde estavam as meninas bem resguardadas pelas madres e pelas freiras. Por isso ele começou a cantar muito cedo. Agora como profissional, ele como profissional, entre aspas, o Zeca Afonso dalguma maneira nunca foi um profissional da canção como hoje é entendido e como hoje nós vemos as coisas acontecerem nesse sector. É muito mais tarde. Praticamente só quando o Arnaldo Trindade faz contratos com ele duma forma segura é que se pode dizer que ele tem uma semi-profissionalização da canção.
Locutora - Quando é que surgiu o primeiro disco de Zeca Afonso?
José Salvador - Bom, eu não tenho essas datas assim [Locutora - Foi na década de 60] Foi, suponho que é mesmo em 1960.
Locutora - Não foi nesse disco que surgiram “Os vampiros”?
José Salvador - Não, o primeiro disco é “As baladas de Coimbra” e “O menino d´oiro” e depois, em 1960, é “O menino do bairro negro”. “Os vampiros” creio que é mais tarde.
Locutora - Bom, mesmo “O menino do bairro negro”...
José Salvador - Pois, era uma canção de protesto.
Locutora – De protesto e como é que conseguiu.
José Salvador - “O menino do bairro negro”, segundo ele me contou na altura, ele contou-me foi uma viagem que ele fez ao Porto, o Zeca Afonso andava sempre à boleia e caiu ali no bairro da Ribeira, hoje muito célebre, onde a vida do Porto se desenvolve e ficou tão impressionado com as crianças que lhe faziam lembrar um pouco o Aniki Bobo do Manuel Oliveira que fez esta canção d´”O menino do bairro negro”. Quer dizer foi um pouco o choque que ele teve com a pobreza e a miséria a que assistiu porque é um pouco difícil para as pessoas que não viveram o antes do 25 de Abril pensarem no modo como eu estou a descrever o país antes do 25 de Abril de 74. Parece ficção, mas não era.
Locutora - Foi real.
José Salvador - Foi real.
Locutora - E “O menino do bairro negro” imediatamente se tronou um êxito.
José Salvador - Sim, foi um êxito, mas depois houve outros problemas. Por exemplo, ainda há pouco perguntava-me o que é que se ouvia na Rádio. Havia muitas canções do Zeca Afonso que eram pura e simplesmente proibidas. Quer dizer, não se ouviam. Os discos dele quase vendidos clandestinamente. [Locutora - E ouvidos quase clandestinamente] E ouvidos clandestinamente.
Locutora - Mas paralelamente ao Zeca Afonso que temos estado a falar neste programa, é inevitável, vamos falar de outro grande cantor da altura, o Adriano Correia de Oliveira.
José Salvador - O Adriano, eu conheci-o menos bem. Penso que é fundamental também para esta renovação da música e da canção portuguesa, a música e a canção portuguesa sobretudo com raízes populares, porque é preciso pensar no seguinte. Para além do contexto político que existia, havia também opções estéticas, quer dizer, no Portugal dos anos 60 o neo-realismo literário estava a ser discutido e posto em causa nalguns aspectos, mas, por exemplo, no campo musical havia dois trabalhos que eram muito importantes, o de Jacometti, de que se tem falado muito ultimamente, na recolha que ele fez da música etnográfica portuguesa e também Lopes Graça, embora com outra vertente mais erudita, chamemo-lhe assim, mas de qualquer modo o próprio Lopes Graça, de alguma maneira, podemos dizer que se orientava na recuperação também das tradições musicais portuguesas mais profundas, embora depois as trabalhasse de uma forma [Locutora - E temos também as “Canções heróicas” que na altura foram cantadas por todos nós, não é]. O Coral dos Amadores de Música.
Ora bem, o Adriano recupera muitas destas tradições, mesmo até do fado de Coimbra o que lhe dá, é uma voz e sobretudo versos muitos diferentes. Eu estou-me a lembrar que ele talvez o principal intérprete do Manuel Alegre, não é, que na altura era também, eu lembro-me, estava eu n´”O Comércio do Porto” e chegou-me através dum amigo vinte livros do Manuel Alegre para distribuir no Porto, aquilo era distribuído clandestinamente e eu guardei-os no cacifo d´”O Comércio do Porto” porque aí sabia que a PIDE nunca iria. Era jornal católico, um pouco integrista e foi o melhor esconderijo que eu encontrei. O Adriano, o papel dele é que ele vinca mais, eu acho que do ponto de vista de protesto é muito mais vincado sobretudo em relação à guerra colonial. É de facto o cantor que mais toca e que mais protesta e que mais chama a atenção, cantando para o drama da guerra colonial [Locutora - Via poesia de Manuel Alegre].
Locutora - Para além do Adriano e do Zeca Afonso surgem também outros nomes que vão quase, eu não digo a reboque, eles foram...
José Salvador - Eles abriram espaço de expressão musical e estética que depois foram prolongados, até de formas diversas, por outros. Por exemplo, penso que de alguma maneira é impossível pensar, impossível entre aspas, no Zé Mário Branco ou no Sérgio Godinho.
Locutora – Que estavam em Paris na altura?
José Salvador – Que estavam em Paris na altura e que começaram a gravar no início dos anos 70. O próprio Luís Cília que começou a gravar naquela etiqueta Chant du Monde que creio que desapareceu, não tenho a certeza, e que também fazia canção de protesto, também eram baladas, embora com outra formulação e de alguma maneira com alguma influência da canção francesa, mas o que surge nos anos 70 logo a seguir, colado aos finais dos anos 60 que é aparecimento do disco do José Mário Branco e do Sérgio Godinho só são possíveis de pensar e com expressões musicais totalmente diferentes do Zeca e diferentes entre eles, só é possível de compreender depois de se ver o trabalho do Zeca e do próprio Adriano Correia de Oliveira. Depois mais tarde o Fausto, não é, muito mais tarde.
Locutora - E o Manuel Freire aparece quando?
José Salvador - O Manuel Freire aparece ligado a um programa musical “Zip-Zip”. De facto o Manuel Freire [Locutora - Foi nos anos 70] Creio, é na primavera marcelista, por isso, o Marcelo, o Marcelo, não é este de agora, não é o Marcelo Rebelo de Sousa, mas o Marcelo Caetano vai para o poder, creio que em 69, em 1969, dá-se a primavera marcelista, a televisão procura acompanhar um pouco isso e o “Zip-Zip” acaba por ser o palco dos chamados baladeiros que se dizia na altura com algum sentido depreciativo, mas que de facto eram, chamemo-lhes assim, o outro lado da música portuguesa e que de alguma maneira se opunha, claramente, ao tipo de canção dominante na época que eram as Madalenas Iglésias, os Antónios Calvários e outros que a gente já esqueceu.
Locutora - Mas não esquecemos o Adriano, nem o Zeca Afonso. Por isso, qual foi o impacte que estes dois cantores, vamos dizer assim, tiveram na altura. As rádios passavam apesar das proibições haviam alguns programas que passavam.
José Salvador – Sim, mas passavam só praticamente as canções líricas, não é. Quer dizer, era difícil ouvir “Os vampiros”, ouvia-se era “O menino do bairro negro”, ouviam-se o “Pomba branca”, o não sei quê, “Oh minha mãe, minha mãe” e tal, mas as canções com forte conteúdo contestatário era complicado. A influência é assim. Eu lembro-me que, para já, lembro-me que quer do Adriano, quer do Zeca desempenharam um papel muito importante quer nas colectividades populares e pequenas cooperativas culturais, quer nas Associações de Estudantes. Havia muitas sessões de convívio nessa altura e eles normalmente participavam cantando e colaborando até às vezes nos debates. Eu lembro-me ainda regressando a Coimbra, em Novembro de 68, os estudantes realizavam uma coisa que se chamava ´A tomada da Bastilha´, foi nesse ano uma jornada de protesto porque os estudantes pretendiam realizar eleições na Associação Académica de Coimbra que estava com uma Comissão Administrativa há vários anos e o Zeca Afonso foi lá cantar. Estava cá também o Ricardo Salvat, um grande encenador espanhol, discípulo do Brecht, que de resto no dia seguinte foi expulso pela PIDE e nem sequer o espectáculo estreou e lembro-me que o Zeca nessa noite cantou. Correu tudo bem, não houve intervenção policial.
Locutora – E qual era a canção que mais se pedia na altura? “Os vampiros” era sempre empolgante, não é?
José Salvador - Eram “Os vampiros”, mas outras, assim de repente não me recordo. Agora eu achei curioso, creio que foi há cerca de dois anos, aquele concerto que houve aqui, creio que no Estádio Alvalade, de música portuguesa que era “Os filhos da madrugada”. Eu acabei por pensar assim, mesmo esta geração jovem que não conheceu, a não ser pelos livros ou pela leitura dos jornais o que se passou antes do 25 de Abril, recuperou muito ou quase tudo do Zeca Afonso. Eu não sou um fundamentalista que ache que as canções do Zeca são intocáveis, eu penso e falo em meu nome pessoal, evidentemente, que aquela recriação que foi feita de algumas canções é uma coisa extraordinária e que vem demonstrar a capacidade de regeneração e de possibilidades criativas que abre todo o mundo musical e até poético do José Afonso porque a gente fala muitas vezes nele como militante, como combatente da liberdade, mas ele foi um grande poeta também
Locutora – Sim, um grande poeta e um grande cantor e um grande músico. Portanto, tanto o Zeca Afonso como o Adriano são cantores diferentes, mas as canções deles tinham, eram ricas, eram de qualidade, tanto na melodia como na letra. Portanto, vamos dizer que eram quase perfeitas.
José Salvador - Sim, algumas delas eram quase perfeitas. É evidente que hoje, por exemplo, há uma fase do Zeca Afonso, quanto a mim posterior ao 25 de Abril que ele acaba por ser um cronista do que se passa naquele período a que nós designamos por PREC, entre o 25 de Abril de 74 e o 25 de Novembro de 75. Eu lembro-me daquele álbum “As minhas tamanquinhas” que ao ouvir aquilo são coisas muito datadas, ele fala do Kissinger, fala da CIA, fala de alguns grupos que eram do MFA, mas que fala dos Nove que hoje ninguém sabe o que é. Agora o grande corpo, o corpo central da obra musical e poética do Zeca Afonso essa é perene, essa mantém-se e sempre com inovações estéticas possíveis.
Locutora - E ela surge nos anos 60.
José Salvador - Sim, ela surge nos anos 60, embora eu ache que a parte, a gente está a dar um grande salto, mas a parte final da obra do Zeca Afonso, nomeadamente, aquele disco “Como se fora seu filho” que eu considero talvez o melhor, esse e “Cantigas de Maio”. Embora quando me ponho a ouvir, depois não sei muito bem qual é o melhor, mas quando ele entrou com a colaboração do Fausto, colaboração musical, a colaboração do Júlio Pereira, a colaboração do José Mário Branco na feitura dos discos houve uma dimensão diferente que ultrapassou largamente os limites da viola e da guitarra a que ele estava circunscrito.
Locutora - E sobre o Adriano?
José Salvador - O Adriano, quer dizer, eu gosto muito do Adriano e há canções, aquelas que a gente “A trova do vento que passa”, por exemplo, que eram um pouco hinos da liberdade que...
Locutora – Pois no fundo era isso também, as canções algumas do Zeca Afonso e muitas do Adriano eram canções de luta e que nos ajudaram muito. Marcaram muito uma geração.
José Salvador - Sim. Pois, eu acho que sim. Repare, a minha geração foi muito marcada pelo contexto político que se vivia em Portugal, pelo desejo de conseguir atingir uma democracia e é evidente que isso passava muito pelas leituras de textos de esquerda, desde o Marx por aí adiante e isso marcou-nos, não é. Embora, por exemplo, o Zeca não era leninista, nem pouco mais ou menos, era aliás um grande libertário do ponto de vista da sua criatividade. Quer dizer.
Locutora - Portanto, anos 60 e música, Adriano Coreia de Oliveira e Zeca Afonso abriram caminho. A partir daí nunca mais a música foi a mesma.
José Salvador – Não. Mesmo depois do 25 de Abril, repare, naquele chamado período do PREC houve muitas sessões de convívio, de cantigas, começando pela, creio que foi mesmo o 1º de Maio, logo, no Coliseu foi antes do 25 de Abril, mas eu creio que abriram-se muitos caminhos e sobretudo muitas pistas para fazer uma música diferente. Aliás, o Zeca Afonso depois do 25 de Abril faz vários discos. O último já não é toda cantada por ele, por razões de saúde que todos mais ou menos sabem, mas efectivamente, a própria, por exemplo, Zé Mário Branco é um caso que já citámos, o próprio Fausto, o Fausto com toda aquela roupagem sonora que envolve a música dele, não é. Desde o “Por esse rio acima” e por aí adiante, de facto há ali uma grande influência do convívio que ele teve com o Zeca Afonso, independentemente deles terem até discordâncias profundas do ponto de vista das músicas, mas isso não impediu uma renovação até do tipo de música que o Fausto fazia e o Zé Mário Branco também que é outro caso.
Locutora - José Salvador e para terminarmos se eu lhe pedisse, assim, de repente, situe-se nos anos 60. Que música é que lhe vem à cabeça?
José Salvador - Assim de repente é “O menino do bairro negro”.
Fizeram este programa Armando Pinho, Mário Pereira, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
(Programa gravado da Antena 2 no dia 9 de Janeiro de 1998)
Transcrição: Ireneu Batista