Entrevista com Rui Mário Gonçalves - Anos 60 e as Artes plásticas

ERA UMA VEZ UM MILÉNIO

Entrevista com Rui Mário Gonçalves
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”

Por João Monteverde, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
 
 
Os melhoramentos nos transportes e nas comunicações durante os últimos cem anos conduziram, rapidamente, à propagação cultural internacional. Apesar das guerras e da incerteza, houve uma verdadeira explosão das descobertas tecnológicas em todos os campos da actividade humana. O mundo das artes não foi excepção. Os anos 60 trouxeram novas formas e novos conceitos. Em 1960, Paris apresenta uma exposição do chamado novo realismo. O lançamento da pop art nos Estados Unidos juntamente com o movimento neo-dadaista é representado por Robert Roschenberg e Jasper Charles.
Enquanto alguns artistas gráficos redefinem as fronteiras da arte através das suas experiências com novos materiais tecnológicos, numerosos compositores exploram caminhos semelhantes na música e entre os numerosos compositores que começaram a criar obras electrónicas, o mais notável foi Stockhausen. Em Portugal o grande nome foi Jorge Peixinho.
As artes plásticas nos anos 60 em Portugal é o tema de hoje, o convidado, o crítico de arte Rui Mário Gonçalves.
E continuamos nos anos 60, desta vez para falarmos de artes plásticas. Connosco está o crítico de arte Rui Mário Gonçalves. Anos 60, guerra colonial, a greve de estudantes, lutas estudantis, greves de operários, enfim, um panorama propício a que cresçam novas tendências?
Rui Mário Gonçalves - Algumas tendências que começam por ser inovadoras e simultaneamente tinham às vezes um cariz quase clandestino, como será concretamente o que se passará com os títulos dos quadros do Joaquim Rodrigo que certamente eu terei que invocar que foram muito significativos no princípio dos anos 60 e uma vez que já falou da guerra de África e das rebeliões estudantis, na altura não se chamava greve. [Locutora - Luto académico.] Nós só temos luto académico porque por lei era proibido dizer greve e o governo estava à espera que nós caíssemos nessa asneira. Nessa altura era também dirigente associativo na Faculdade de Letras e Ciências e sei muito bem porque fui uma das pessoas que esteve na origem desse luto académico que me fez imediatamente perder um ano por faltas, não é. Eu penso que essa manifestação de mal estar estudantil foi percursora do que veio a ser o Maio de 68 de Paris, só o que acontece aqui em escala pequena não tem a retumbância internacional e terei que falar nisso porque é natural que não havendo sociedades unânimes, todos os sistemas tendo contradições, as partes negativas dos sistemas fazem-se sentir mais depressa nos países pobres e pequenos. Isso pode ser importante quando se está a fazer uma arte moderna que é essencialmente contestatária. Não nos admirará que apareça portanto, em Portugal, talvez para grande espanto das pessoas, algumas inovações, mesmo a nível internacional. A nova figuração de que irei falar do Joaquim Rodrigo é percursora do grafitismo que só surgirá na América nos anos 80. Portanto, a minha explicação é essa. É nos países pobres e pequenos que se fazem sentir primeiro as partes negativas das contradições de qualquer sistema e não há nenhum sistema perfeito e não há nenhuma sociedade unânime. O que é que nós sentíamos, nós os jovens dessa altura, os estudantes universitários? Que éramos, de repente, chamados para uma guerra que, estudantes, não queríamos fazer, muitos de nós, e portanto não surpreende que seja uma guerra na parte maior do Ultramar que era Angola, já não se podia ocultar em 61 e deve-se dizer dessa maneira porque fazia-se de conta que não havia guerra e nem sequer se podia falar dos soldados que morriam. Fazia-se sempre de conta que eles morriam porque estavam bêbados e guiavam mal os automóveis e os jeeps quando, na realidade, evidentemente, que havia combates e havia mesmo mortes, esfaqueamentos, etc. Isso era um pouco ocultado e não é por acaso então que há essa declaração de estado de guerra em Angola e a rebelião juvenil manifesta-se em 62, logo a seguir. Porquê? Porque manifesta-se pela primeira vez esta contradição que é duma juventude que estuda na Universidade e tem a sensação de que o diploma não é garantia nem de estatuto económico, nem de respeitabilidade social. Isso punha um corte de gerações. Naturalmente que os nossos pais quando tinham um curso superior, tinham esse estatuto económico e social. Nós sentíamos que íamos ser a geração de clivagem. Isso não era garantia nenhuma e foi o início de uma espécie de proletariado intelectual que está a crescer até hoje. É o que está acontecer agora mesmo e para os quais os partidos tradicionais ainda não têm resposta porque estão relacionados com outras forças económicas, com forças militares, mas não estão relacionados com este problema novo que não se esperava e não estava escrito nos tratados, digamos clássicos da sociologia ou da economia mundial ou da política, não é. E daí que os partidos tornavam-se perfeitamente ineptos e mais, não terá talvez sido dito, que os estudantes de 62 não tiveram o apoio de nenhum partido político da oposição. Evidentemente que o da situação de maneira nenhuma que ia, evidentemente, dizer que nós estávamos todos feitos com os comunistas, que os comunistas mandavam em nós. Não é verdade. Foi de facto um movimento muito puro que não começou em 62, começou em 57 aquando duma manifestação espontânea dos estudantes junto da Assembleia da República que se chamava então Assembleia Nacional a protestar contra uma tentativa do governo de se apoderar das associações de estudantes. Isto provocou uma reacção espontânea e em 62 a coisa tornou-se muito mais generalizada pelos motivos que já indiquei. Ora dentro desse estado de espírito que estava a atingir a parte mais viva da cultura oficial que é a parte juvenil das universidades, vão de facto também aparecer dentro duma situação moderna de ‘avant garde’ que era sempre uma situação contestatária, vão aparecer vários movimentos, um dos quais uma auto-reflexão sobre a própria expressão pictórica em que a arte abstracta vai chegar a uma análise tão minuciosa que se vai concentrar no signo mais elementar. O que é que uma pintura é mínimo que seja ainda expressivo. Chamou-se a isso pintura de signo e naturalmente o que há de mais elementar é o próprio gesto de pintar, um aspecto portanto da pintura gestual vai-se concentrar nessa elementaridade visual com dois praticantes que era o Eurico, na pintura gestual e perto dele, como pessoa, embora sejam amigos, o João Vieira que se apercebeu de que a caligrafia e a sucessão de caracteres tipográficos criava, duma maneira muito eficaz, a ritmicidade da pintura. E essa consciência estética muito profunda tinha a possibilidade de, por assim dizer, contaminar outras tendências que era a meditação sobre o que poderíamos designar o elemento figura. Havia a conquista de um espaço abstracto, geralmente liso, que a arte abstracta tinha permitido, um espaço de fundo sobre o qual espaço os artistas inscreviam signos e esses signos também podiam ser figurativos. É então que aparece uma pintura chamada nova figuração que deriva da experiência abstracta, concretamente o caso do Joaquim Rodrigo e o caso da Paula Rego. O Joaquim Rodrigo vinha do abstraccionismo geométrico e a Paula Rego vinha dum tipo de informalismo. Portanto, as duas grandes tendências abstractas, a geométrica e a informal, iam confluir na origem da nova figuração, portanto nova porque não tem nada a ver com a figuração tradicional nesses dois artistas. Vai ser muito interessante porque, no caso da Paula Rego, vai-se manter inicialmente uma grande semelhança com uma atitude expressionista e surrealista e, no caso de Joaquim Rodrigo, vai aparecer uma vontade de contar histórias. Porquê contar histórias? Histórias simples. Por exemplo, uma viagem a Espanha e voltar. Uma viagem tem um princípio e tem um fim. Esse princípio e fim sugere portanto uma unidade, uma unidade narrativa que vai sugerir uma unidade no quadro. O que é que esse grafitismo… O Rodrigo viajava e tomava apontamentos ou de memória, o que é que lhe ficou na memória. Ter visto, por exemplo, um burro morto, ou ter visto um guarda republicano e sugeria isso com figuras muito elementares que transcrevia para um suporte. Ora bem, isso é muito curioso porque ele faz um quadro particularmente significativo que na altura só se podia chamar SM e que não era outra coisa senão Santa Maria. O que era o Santa Maria? [Locutora - Ela não percebeu?] Percebia-se em voz baixa. O que se passava era o seguinte. Como sabemos a imprensa estava sob o efeito da censura e as pessoas tentavam penetrar nas malhas, geralmente comparávamos o que dizia o jornal “República”, enfim, era o mais atrevido numa posição anti-salazarista com o que o podia dizer o “Diário da Manhã” que era o jornal situacionista e víamos as diferenças de tratamento dos assuntos e por essas diferenças nós descobríamos, não uma média, não é isso, é o que é que preocupava a censura para não deixar passar e até que o jornalista às vezes forçava o tom. O que é que acontecia? Acontecia que então as pessoas saíam para a rua e falavam muito umas com as outras em voz baixa. Por exemplo, podia estar a rádio a transmitir a reportagem do assalto ao paquete Santa Maria feito pelo Henrique Galvão e já isso é um fenómeno muito curioso.
“Em nome do Excelentíssimo Senhor Contra-Almirante Comandante do 3º Distrito Naval, faz entrega neste momento o navio Santa Maria ao senhor coronel Joaquim da Luz Cunha.”
“Em nome do governo português recebo o comando do navio Santa Maria.”
O que é que o Henrique Galvão pretendeu com isso? Pretendeu sacudir as comunicações de massas. Os jornalistas internacionais não ligavam importância nenhuma à situação portuguesa. Então ele resolveu criar uma situação, como é que se diz, de escândalo, e que naturalmente é o pasto natural da comunicação de massas. As pessoas querem é ver escândalos. Portanto, um homem mordeu num cão. Bem, tem direito a uma primeira página num jornal, o cão mordeu no homem, nem se noticia. Portanto essas situações… [Locutora - Uma chamada de atenção.] Uma chamada de atenção. Isso tem a ver com o aparecer nos anos 60 duma noção da importância da comunicação de massas. Aliás, alguns sociólogos que pensam que nos anos 60 o planeta entrou na guerra da informação e havia até um canadiano muito célebre que era o MacLuin que afirmava que a partir de agora todo o planeta era uma espécie de aldeia, embora não sussurrando… [Locutora - Não estava longe.] Não estava e hoje nós sentimos isso. Era uma espécie de aldeia, embora electrónica e não propriamente uma conversa de senhoras vizinhas. Porém, essa comunicação de massas pertence a quem? Ou aos ricos ou ao Estado. O que é que resta aos pobres? O falar, o boato, a transcrição por meio de grafitis, é exactamente o que Joaquim Rodrigo vai fazer. Compreendendo o gesto do Henrique Galvão de sacudir a comunicação de massas internacional com o escândalo que é aquele acto de proclamar o barco independente de Portugal durante alguns tempos, obrigou todos os jornais a falar e ele pôde então dar entrevistas para explicar a situação política de Portugal. Repare que isto é muito curioso e muito inédito e muito inovador porque os países pobres e desesperados não têm, de facto, audiência. Então têm que recorrer a esses processos que, infelizmente, degeneraram nos terrorismos. Na altura não era uma atitude de terrorismo, era uma atitude apenas de [Locutora – Abanar.] abanar, exactamente. Ora o Joaquim Rodrigo ao fazer uma coisa muito esquemática, como se uma pessoa tivesse conversando numa mesa de café ou duma taberna e suponhamos que tivesse a rádio a transmitir as notícias oficiais sobre o rapto do Santa Maria e as pessoas estavam umas com as outras a murmurar: O que é que achas? Então as pessoas diziam o que os jornais não diziam que o Henrique Galvão tinha armas, que o Henrique Galvão iria descer de pára-quedas algures no Algarve ou no Alentejo, que o barco já estava no Atlântico durante muito tempo e tal. E as pessoas falavam e diziam assim umas para as outras ao mesmo tempo: Está calado porque podem estar a ouvir ao lado, isto é, os pides podiam estar a escutar. Imaginemos que alguém está conversando e ao mesmo tempo está desenhando. O que é que pode ficar depois no tampo da mesa, uns esquemas que representem um barco, um homem de pára-quedas, umas armas, um homem com orelhas grandes, todos estes desenhos esquemáticos aparecem no quadro do Joaquim Rodrigo e que só se chamava portanto SM e as letras estão lá, SM, e naturalmente que em surdina nós passávamos palavra uns aos outros, todos nós sabíamos o que aquilo queria dizer e é muito engraçado porque não se trata de uma posição pop porque a pop americana acredita na comunicação de massas porque o americano médio está convencido que tem uma comunicação de massas isenta, mas em Portugal não. Portanto, esses grandes instrumentos que sejam a rádio, a televisão, os jornais ou são dos ricos, como eu dizia, ou são do Estado. Portanto, as pessoas só se podem exprimir livremente através destes grafitis ou através do murmurar em voz baixa. De maneira que este tipo de pintura narrativa de conversas era muito curiosa e vê-se portanto como ela estava a integrar-se dentro duma situação de certa clandestinidade ou de estar a reforçar e a tirar partido da ignorância da cultura oficial. Quer dizer, a cultura oficial não percebia nada do que se passava, tudo o que é moderno depois do Picasso não é para levar a sério e então iam-se ensinando…
Locutora - Era assim tão ignorante?
Rui Mário Gonçalves - Era, era bastante ignorante. Eu lembro-me, por exemplo, dum quadro comprado pelo SNI, um quadro do Charrua que tinha colagens… Chamava-se “O Sinal Vermelho”. Já o ser vermelho era de desconfiar e tinha reproduções misturadas, reproduções da “Guernica” do Picasso misturadas com manifestações maoistas. Quer dizer, fotografias de manifestações maoistas que ele colava, relacionava umas coisas com as outras, fazia uma colagem com aquilo. É claro que, para a cultura oficial, as pessoas diziam: Isto é colagem, isto é pintura moderna, isto é abstracto. Eles não estavam a perceber e então aquilo era vendido e então eu acho que ainda hoje esse quadro pertence à Secretaria de Estado da Cultura. Havia de facto uma grande ignorância e depois também, é verdade que o sector mais explicitamente empenhado que vinha do lado neo-realista não entendia nada disto porque eles entendiam o neo-realismo muito relacionado com o formulário do tipo naturalista, digamos afinal de contas ainda o Malhoa, a tratar camponeses e operários revoltados, é certo, enquanto o Malhoa não fez isso, mas o formulário morfológico era muito deste género e portanto não percebiam que com a comunicação de massas, com as fotografias das revistas, com as imagens da televisão, os artistas tinham que passar para esse tipo de colagem que os dadaistas já tinham feito nos anos 30 na Alemanha, portanto uma arte altamente politizada com essas colagens e que fez, aliás, com que eles ficassem ignorados durante muito tempo, muito tempo e que eram completamente desconhecidos também do próprio neo-realismo português. Portanto, não eram, não eram entendidos, essa nova figuração politizada, quer do Rodrigo, quer da Paula Rego, escapavam. Escapava, as pessoas têm tendência para dizer o que interesse é saber se é bem feitinho, se é mal feitinho. Na altura achava-se que aquilo era tudo mal feito porque sendo moderno não lhe exigia habilidade e como eles não tinham diplomas das escolas portuguesas também achavam que não era para levar a sério e assim se passava o tempo e em todo o caso com uma aventura muito autêntica e com uma invenção pictórica bastante profunda também e, como se vê, não é apenas um acto rigorosamente isolado, alguma reverberação do sentimento colectivo passava para aí. Eu diria então que essa situação nova que os próprios estudantes sentiam que não tinham acolhimento no governo que, evidentemente, tinha-se chegado a uma situação de impasse de diálogo, não tinham acolhimento, ao contrário do que se tem dito muita vez, de qualquer tipo de instituição. A Igreja Católica só muito mais tarde com… primeiro, mais cedo, no final dos anos 50, que houve um pequeno abanão provocado pela célebre carta do bispo do Porto e então os católicos aí começaram-se a dividir, mas os novos que até chamavam os católicos progressistas, eram geralmente mal vistos pelos outros porque ser católico, católico era andar sempre engravatado, muito bem pensante, muito cumpridor e não se meter nestas coisas, não se interessar pela miséria alheia. Pensar numa atitude francamente fechada sobre si mesma e muitas vezes dentro dos seus privilégios e até porque as pessoas num país em que domina uma determinada religião, as pessoas muitas vezes continuam na pura inércia mental.
De qualquer maneira, para o que tem a ver com a arte, o que interessa é sentir que havia uma necessidade de criar novos códigos, já que os códigos estavam todos esgotados e daí a gente ver esta sucessão de concentração sobre o que é estético porque o que é estético é que faz com que a obra perdure. “Guernica” conseguiu manter a sua mensagem porque é uma obra de arte e não por causa da mensagem que transmite. É preciso pensarmos muito bem nisso. Há pessoas e o próprio Picasso, quando mais tarde quis fazer outro quadro de protesto, não conseguiu ser tão feliz e a própria mensagem não passou. Acontece a concentração muito profunda sobre o acto pictórico em si, promovida pela arte de signo do Eurico ou do João Vieira e depois uma noção que se tinha de que afinal qualquer coisa pode ser significante dum significado a posteriori, daí ter-se pensado com o movimento pop a importância de um objecto, um objecto praticado sobretudo pelo Noronha da Costa e pela Lourdes Castro era no caso português mais plasticamente evoluído do que os objectualistas que a gente vê um pouco por toda a Europa. Eles eram muito requintados, tinham uma visualidade muito apurada, com os plexiglas da Lourdes Castro, com os espelhos do Luís Noronha da Costa em que esses objectos adquiriam uma significação a posteriori, mas ao mesmo tempo uma atitude não personalizada. A grande vantagem era eles quererem uma espécie de inexpressionismo, como agora se diz, um expressionismo gelado, como então eu disse. Um expressionismo em que as formas são deformadas como que mecanicamente pela diferença da projecção de uma sombra numa parede, pode ser maior ou menor, sem que o artista tenha propriamente que intervir. Essa nova figuração tem resíduos pop, mas como vemos duma pop que recusa essa energia da comunicação de massas, ao contrário do que acontecia na América que precisamente era uma arte que se instalava comodamente nessa energia da comunicação de massas, aqui era uma atitude de desconfiança que faz então perto, do grafitismo da pintura de signo o desenvolvimento dessa nova figuração do Rodrigo e da Paula Rego, com outros praticantes que estavam no estrangeiro, nomeadamente o René Bertholo que estava em Paris e o Costa Pinheiro que estava [Locutora - Na Alemanha] em Munique onde faz os célebres reis de Portugal tal como estão no imaginário e não como os documentos históricos dizem. Nós quando falamos na Inês de Castro, a primeira coisa que nos vem à cabeça é a história de amor e não estamos muito interessados em saber o que é que havia de verdade, se ela era uma espia de Castela ou não era. Nós queremos é saber que era uma história de amor que acabou mal e nós queremos mas é, no fim, admirar o amor que o D. Pedro revela por ela mesmo no túmulo com os seus cães da fidelidade ali no seu próprio túmulo de Alcobaça e essa ideia de uma bela que depois, mísera e mesquinha, que depois de morta foi rainha, é isso tipo de imaginário popular que o Costa Pinheiro soube transcrever num grafismo muito próximo das cartas de jogar, portanto ele mesmo bastante acessível e que tem tradições. Tem tradições desde o românico em Portugal. Bem, era de facto uma situação nova que, por sua vez, permitiu uma alta reflexão não só do contexto do objecto de arte, mas também no aspecto puramente visual que deu também origem a uma coisa, como sabe pop é a abreviatura de popular e op é a abreviatura de óptico. Quer dizer, que uma certa atenção aos efeitos de óptica foi também trabalhada sobretudo pelo Artur Rosa e ainda mais pelo Eduardo Nery que, naturalmente, levava a integrar-se na arquitectura duma maneira cada vez mais eficaz até ao nosso tempo. Porquê? Porque se tratava de estudar as grandes artes na sua estrutura, o espaço da arquitectura, a função figura/fundo que a pintura geralmente fornece, o trabalhar com qualquer tipo de material. Pode ser cimento, pode ser pintura, naturalmente, pode ser plexiglas e tudo isso foi mais ou menos o que eclodiu nessa primeira metade espantosa dos anos 60, numa grande inquietação e numa grande vontade de eficácia. Eficácia puramente estética no caso do signo e da op, mais aceitadora do mundo da informação no caso da nova figuração e da pop e aqui está um primeiro aspecto.
Locutora - Rui Mário Gonçalves, hoje, como nos anos 60, qual é o papel da crítica e do crítico?
Rui Mário Gonçalves - O que é crítica? É situar uma obra de arte num campo de valores e esses campos de valores têm uma vivacidade que também se reflecte na vida política. Mas se uma pessoa está atenta para situar uma obra de arte num campo de valores actuais, evidentemente que está atento ao maior número de coisas possível que a sua sensibilidade, inteligência e formação permitam. É claro, que eu direi que não há um crítico de arte perfeito, mas que ele é necessário é, porque alguém tem de reflectir sobre as coisas todas que vão acontecendo simultaneamente e não supor que a arte existe perfeitamente à margem. Vai-se dar uma coisa nova, com essa atitude administrativa mais ampla e também porque pela primeira vez, contrariando a política economicista do Salazar, vai-se começar a conhecer uma coisa que agora é o que acontece todos os meses ou todos os anos que é o problema da inflação. Isso nunca tinha acontecido. No tempo do Salazar podia acontecer tudo, mas a moeda era rigíssima, com o Marcelo começa a haver um pouco de inflação. Era pouco, mas havia. Bom e as finanças, os financeiros começaram a pensar em termos completamente diferentes. Então o capital já não era para estar metido no colchão, era para ser aplicado mesmo, senão desaparece com a inflação e no meio disso tudo a obra de arte também era um instrumento que podia servir, digamos, a protecção de valores económicos. Ora bem, aparece então um mercado, mercê da luta de críticos que na altura até dirigiam galerias de arte porque dirigia-se galerias de arte não com a intenção de vender, mas só com a intenção de mostrar obras. Geralmente eram galerias…
Locutora - Então do que é que viviam os artistas?
Rui Mário Gonçalves - Viviam vendendo à parte, vendiam mal, viviam mal. Viviam mal, quase todos viviam mal, mas viviam vendendo no seu atelier. É a partir mais ou menos de 68, nós, entre nós, entre os artistas, entre os críticos até dizemos que é no final de 67 que determinadas obras do Almada Negreiros foram vendidas muito caras ou a célebre venda espectacular do retrato de Fernando Pessoa que se encontrava nos Irmãos Unidos que atingiu o preço mais alto que se tinha atingido até então, 1200 contos. Isso na época, imagine. Mas, enfim, essa espectacularidade e a morte de alguns artistas, infelizmente é verdade, morre o Eduardo Viana e a sua cotação aumenta de meia em meia hora, era impressionante. Pela primeira vez essa negociação passa a fazer-se em espaços públicos. Aí os críticos começam a retirar-se das galerias porque, naturalmente, eles não gostam de estar no mercado. Estavam a dirigir salas de exposições. O José Augusto França dirigiu, em 53, uma galeria de Março, eu dirigi durante nove anos a galeria Buchholz, mas sempre declarando, eu não quero participar na parte comercial, quero fazer exposições e depois os artistas que vendam como puderem. A mim o que me interessava era fazer exposições que considerava bonitas, pronto. Achava-as interessantes, mas não me competia a mim entrar propriamente no mercado que tem umas leis muito próprias e nem todas serão muito simpáticas, mas que era uma novidade, era uma novidade e, aliás, como sabe, rapidamente as coisas modificaram-se. Digamos que até 68, os críticos eram, por assim dizer, o final a que o artista chegava. Agora finalmente teve o elogio de um crítico e acabava ali a aventura. A partir daí as opiniões dos ‘marchants’ é que passaram a ser mais importantes, a própria crítica começou a ser colocada de modo diferente, começou a aparecer cada menos críticos com uma visão panorâmica e, enfim, não interessa, começou a haver um mercado de pintura também, a meu ver, provocado pelo início da experiência de inflações. Portanto, colocar dinheiro naquilo que pode… e na altura tudo o que se vendia era de grande qualidade porque eram as obras que tinham sido muito criticadas durante anos e, enfim, o que é que apareceu, apareceu o Ângelo de Sousa com a nova abstracção, a Ana Vieira com ambientes, o Alberto Carneiro com ambientes e também já de cariz conceptual. Tudo coisas um pouco difíceis de vender e de grandes dimensões, mas que eram todavia muito aproveitadas, às vezes por causa das instituições, empresas de automóveis, GM, Guérin e outras que…
Locutora - E os bancos? Já começavam a comprar ou…
Rui Mário Gonçalves - Começavam a comprar sim, um pouco, porque começou-se a ligar muita importância aos edifícios personalizados e então não só o arquitecto começava a ser escolhido de maneira a criar um edifício que tivesse uma personalidade, como também os espaços públicos desses mesmos bancos naturalmente gostavam de exibir uma tapeçaria inspirada no Botelho. Era um princípio.
Locutora - Histórias das artes plásticas e outras histórias, em Portugal nos anos 60. Teve a colaboração do perito de arte Rui Mário Gonçalves.
Fizeram este programa, João Monteverde, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
“ERA UMA VEZ UM MILENIO”. Em tempo de mudança, a história do século XX. Ciência, literatura, arte, filosofia, política.

(Programa transmitido na Antena 2 no dia 23 de Janeiro de 1998)
Transcrição: Ireneu Batista