Entrevista com Fernando Cabral Martins e Orlando Carvalho - O novo cinema português e a importância dos cineclubes nos anos 60

ERA UMA VEZ UM MILÉNIO

Entrevista com Fernando Cabral Martins e Orlando Carvalho
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”

Por Adelaide Marques, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
 
E na história do século XX continuamos nos anos 60. Anos 60, anos de inovação e criação em todas as áreas, na ciência, nas artes, na música, na literatura e no cinema.
Em 1960 a Itália estreiam-se dois filmes de dois grandes realizadores, ´A noite´ de Michelangelo Antonioni e ´Rocco e os seus irmãos´ de Lucchino Visconti.
No ano seguinte François Truffaut estreia em Paris ´Jules et Jim´.
(Texto do filme ´Jules et Jim´)
Em 1962 o realizador italiano Federico Felini volta a surpreender e a deslumbrar com o filme “Oito e meio”.
Nos Estado Unidos as mudanças também se fazem sentir na arte cinematográfica. A guerra do Vietname, uma juventude descontente em busca de novos conceitos de vida inspiraram Denis Hoper que realiza “Easy rider”.
Em Portugal as mudanças no meio cinematográfico são pouco visíveis, novos realizadores surgem, novos filmes, novos temas. É o novo cinema que nasce através do olhar de Paulo Rocha, António Macedo, Fernando Lopes, Manoel de Oliveira, Ernesto de Sousa e António Cunha Teles. ´O cerco´ de António Cunha Teles estreou-se também em Paris onde se registaram as palavras do realizador.
Locutor - ´O cerco´ suscitou bastante curiosidade da parte da imprensa francesa dado que se trata do primeiro filme português que passa, isto desde há uns dez anos. Antes tinha sido exibido em Paris ´O acto da Primavera´ de Manoel de Oliveira. Tinha sido exibido tal como ´O cerco´ num cinema do Quartier Latin. ´O cerco´ está portanto num estúdio de arte e ensaio do Quartier Latin e foi depois de uma sessão nesse mesmo Quartier Latin onde nos encontramos com o realizador António da Cunha Teles. António da Cunha Teles, ´O cerco´, o seu filme ´O cerco´ sai finalmente em Paris, dois anos depois de ter passado no festival de Cannes. Em Cannes ´O cerco´ tinha suscitado bastante curiosidade, tinha tido um bom eco, uma boa recepção da parte da crítica. Agora em Paris está-se a passar a mesma coisa. Creio dado que houve já um certo número de artigos que apareceram em jornais como o Express, como o Monde que são bons artigos, no qual há uma boa crítica para ´O cerco´. Quanto a outro de tipo de referência, à do público. Como é que se têm passado as coisas até agora na sala onde ´O cerco´ é exibido.
António da Cunha Teles - Foi com bastante satisfação que eu verifiquei que ´O cerco´ está a ser muito bem aceite. Ainda ontem passei pela sala e com um pouco de espanto da minha parte verifiquei que havia uma fila de pessoas que ia quase até à esquina da rua à espera, não é, para poder comprar o seu bilhete e entrar. Espero que isso se mantenha até que se amplie o movimento e que ´O cerco´ possa fazer um sucesso junto do público mais esclarecido francês o que para mim me daria imensa satisfação.
Locutor - ´O cerco´ está a ser projectado numa sala do Quartier Latin, num estúdio de arte e ensaio. Evidentemente que há um certo público que vai ver ´O cerco´, em geral um público informado, que lê também a crítica. Mas, por outro lado, creio que há uma parte das pessoas que vão ver ´O cerco´ são portugueses de Paris. Não tem ideia nenhuma a respeito desse público que se trata de um público de imigrantes ou de intelectuais. É difícil.
António da Cunha Teles - É interessante a sua pergunta porque o público efectivamente é muito heterogéneo neste momento. Por um lado, há um imigrante que cá está e que vai com a família a quem ele explica o filme e conta a história à medida que o filme vai passando na sala e ao mesmo tempo há, efectivamente, o intelectual francês que vai lá porque leu a referência nas revistas da especialidade, que leu o Express, que leu o Le Monde que vai lá porque sabe que o filme debate determinado tipo de problemas.
Uma nova abordagem de temas, uma das características do novo cinema português. Com Fernando Cabral Martins vamos fazer um ´flash back´ aos anos 60 e ao novo cinema português.
Fernando Cabral Martins – É então em 1961 com a curta metragem de Fernando Lopes, ´As pedras e o tempo´ e em 1962, enfim, isto depende, há outras cronologias, mas púnhamos 62. Enfim, houve 61 ´D. Roberto´ de José Ernesto de Sousa. Com estes dois filmes há de facto uma espécie de corte. Podemos ver aqui uma mudança qualquer de registo. ´As pedras e o tempo´ é o primeiro filme dos realizadores que ainda hoje estão vivos e produtivos e que já têm o seu espantoso saber de montagem. De facto já não se pode falar de correcção linguística ou de saber técnico, já é muito mais do que isso é de facto o saber falar cinema, o saber respirar cinema e simples e no caso do ´D. Roberto´ há já uma produção de filme de resto recentemente passado nos canais de televisão. Estou-me a dar conta que a proliferação dos canais de televisão pode ter as suas vantagens. O ´D. Roberto´ é então um filme cujo estilo de facto afim do neo-realismo, ou do neo-realismo já muito elaborado através da visão do neo-realismo italiano sobretudo se impõe pela sua simplicidade, pelo seu despretensiosismo completo, não é. E aí, de facto, ´O acto da Primavera´ de Manoel de Oliveira vem, de certa maneira, confirmar essa tendência para a imposição pública em Portugal de um cinema que já é adulto e de corpo inteiro, e que já é capaz de falar da realidade portuguesa sem que nenhuma censura possa impedi-lo porque já não sabe, porque já não tem mãos para se medir com essa capacidade de expressão, de comunicação e, por outro lado, no caso do Manuel de Oliveira de uma forma muito marcante “O acto da Primavera” inaugura um tipo de cinema em que a relação da câmara com a realidade já não tem a inocência que teve até então. “O acto da Primavera” é um filme sobre o teatro.
É portanto nessa metamorfose, nesse corte com o Manuel de Oliveira de antes a inauguração de uma nova fase do próprio Manuel de Oliveira e também, coincidentemente, uma transformação das regras gerais da produção de cinema em Portugal que a partir deste momento se podem verificar quase ano a ano pela simples citação de filmes chave. Por exemplo, logo em 63 “Os verdes anos” de Paulo Rocha que é um filme que lembra já o Renoir, que é um filme que tem toda a rapidez e toda a fluência dum filme de Jean Renoir ou dum filme do neo-realismo italiano ou dum filme ´tout court´ dum filme americano também. É cinema, por um lado, no seu mais perfeito sentido técnico-linguístico, tem diálogos de um grande escritor, Nuno Bragança, que na altura não era o que depois viria a ser, mas esses diálogos são, podem-se ouvir assim perfeitamente como uma obra prima que são.
No ano seguinte, em 64, com “Belarmino”, o Fernando Lopes realiza o seu primeiro filme de uma estética já não ficcional no sentido precisamente da comédia cinematográfica portuguesa dos anos 40. É um filme documental. Como se sabe conta de um modo aproximado do cinema verdade a vida quotidiana de um ex-boxeur. Depois, em 65, “Domingo à tarde” de António Macedo que eu cito sobretudo por ter sido um filme muito apoiado na altura pela inteligência, enfim, os jornais, havia uma campanha de apoio ao “Domingo à tarde” que era uma espécie de representante nesse ano do impulso a que se chamava o cinema novo português e que tinha uma curiosa, usava aquele curioso processo da junção de partes de cor e partes a preto e branco o que marca, a meu ver, essa atenção à forma e ao cinema como edifício, como conjunto de efeitos que é marca, que é típica do cinema novo, em geral.
Em 1969 aparecem pela primeira vez duas curtas metragens de dois realizadores que corporizam o cinema novo português dos anos 70 e 80 que são João César Monteiro e António Pedro de Vasconcelos. O João César Monteiro filma Sofia de Melo Breyner Anderson em 69 e em 70 um pequeno filme de ficção chamado “Quem espera por sapatos de defunto morre descalço”. O António Pedro de Vasconcelos que filma 23 minutos com Fernando Lopes Graça nesse ano de 1969 há-de filmar o “Perdido por cem” alguns anos mais tarde. Nesse período em que aparece essa nova geração a que ele chama a geração, mas esse novo grupo de realizadores o António da Cunha Teles que tinha sido até então sobretudo produtor entra também na realização com o filme que foi célebre “O cerco” com Maria Cabral. Em 1974 é necessariamente um corte a estabelecer porque aquilo que, por exemplo, “Perdido por cem”, realizado em 72, pelo António Pedro de Vasconcelos não podia dizer ainda apesar de toda a sua absoluta vontade de falar da realidade, da realidade mais sentida, mais imediatamente experimentada naquelas personagens que apareciam quase não ficcionais, mas que de facto ainda não podiam dizer tudo, a partir de 74 isso já era possível e o filme de Alberto Seixas Santos “Brandos costumes” aparece nesse momento como uma espécie de pequeno milagre da arte entendida como profecia quase. Os “Brandos costumes” de Alberto Seixas Santos, filme que durou alguns anos a ser feito e que já esperava a estreia há algum tempo surge finalmente e termina com um plano em que uma personagem diz, ´Vamos ali à janela, vamos ver os soldados´ e o filme termina com a irrupção de soldados, de militares no ecrã. É uma irrupção que me parece curiosa pela absoluta oportunidade dela e pela coincidência feliz que estabelece com o momento político.
Professor Orlando Carvalho – Foi importante, nessa altura, o movimento cineclubista. O movimento cineclubista foi importante numa altura em que o cinema era apresentado não só de acordo o cinema que se podia ver, era o cinema que as empresas cinematográficas podiam oferecer na época como o cinema que a censura permitia que se apresentasse na época. Ora justamente com estas duas constrições, por um lado, uma indústria cinematográfica que se determinava, fundamentalmente, por conceitos económicos, de êxito imediato, por outro lado, uma censura a quem repugnavam, naturalmente, todas as manifestações da arte cinematográfica que pudessem pôr de alguma maneira em causa as estruturas mentais e sociais e políticas do Regime e estas duas limitações faziam com que o acontecimento geral do cinema e o nosso acesso ao cinema fosse muito limitado e muito unilateral. É claro que nós estamos hoje numa época surpreendentemente recuperadora de certas coisas que nós detestávamos, nós relativamente jovens, detestávamos nesse momento. Da recuperação do filme que é um pouco como se disse de certo cinema francês, era um pouco teatro enlatado dos anos 40 hoje está outra vez em moda, “O pai tirano”, etc. e eu reconheço que algum mérito teve esse cinema, mas nós na altura quer pelo cinema em si, quer pela incapacidade desse cinema como o teatro enlatado do nos dar aquilo que nós esperávamos do cinema que era a visão do mundo, do ambiente, das grandes transformações, do exterior, quer no aspecto mental, quer no aspecto físico não podia dar, não era dado e, por outro lado, pelas dificuldades técnicas. Nessa altura o acoplamento da imagem com o som era péssimo, a banda sonora era muito má e era um desastre assistir muitas vezes a esses filmes que hoje foram recuperados justamente porque se fez uma nova adaptação da banda sonora e então se puderam evitar as assincronias trágicas dum filme português da época porque a assincronia era permanente. Agente via os lábios a mover-se e não saíam as palavras, saíam tempos depois, etc. Ora bem, por tudo isso não foi uma época famosa e hoje está a ser recuperado. De toda a maneira, o cinema que nos era servido, quer o cinema português, quer outro era o cinema possível nas circunstâncias concretas da política do Regime. Por isso é que para termos outros horizontes, humanos e artísticos, o cineclubismo foi extremamente importante, foi uma contribuição inestimável. Traziam-se filmes que eram apresentados, que cortavam ou excediam os filmes de mercado, que eram trazidos normalmente aos cinemas, apresentavam outras obras, houve obras mesmo que não nós poderíamos ter conhecido a não ser mesmo através dos clubes de cinema, ou porque não eram comerciais. Recordo-me, por exemplo, do cinema de Bresson, obras primas como o “Journal d´un curé de campagne” ou outros filmes de Bresson não eram apreciáveis porque não eram rendíveis economicamente, não entravam nos circuitos comerciais ou pouco entravam. Outros filmes não eram trazidos porque o Regime não deixava. O trabalho da censura era permanente, era de permanente... e houve obras que não chegavam cá, havia autores que não chegavam cá. Não só autores dos países mais ou menos ditos socialistas, isto é o que aconteceu, por exemplo, com o Einsenstein ou com outros autores, mas mesmo autores dos países ocidentais, não chegavam cá. As nossas sessões tinham que ser autorizadas e havia pressões de toda a ordem, em determinadas circunstâncias, para que o movimento cineclubista não pudesse funcionar. Ou porque punham dificuldades às casas de espectáculos, ou porque as autorizações tinham que submeter aos Governadores Civis para a organização de espectáculos não eram concedidas ou chegavam tarde e más horas, ou porque as dificuldades económicas gearais porque o aluguer de filmes era muito difícil, os filmes eram dispendiosos, etc. Além disso, houve dificuldades de outra ordem. Por exemplo, eu próprio no Clube de Cinema de Coimbra, eu entrei como presidente, salvo erro, em 1960 e havia, sistematicamente, uma coisa que acontecia em Coimbra é que, como sabe na altura, as direcções dos clubes de cinema tinham que ser homologadas e a homologação pertencia, em princípio, ao Ministério da Educação, mas o Ministério da Educação delegava isso no Secretariado Nacional de Informação, etc. e ocorreu, por exemplo, eu pertenci a várias direcções que não chegaram ser homologados porque havia este nome que era cortado, havia aquele outro que era cortado, etc. Felizmente que aquilo que eu disse não é um bocado exacto. Quer dizer, em princípio a homologação competia, salvo erro, às entidades ligadas à cultura. No Clube de Cinema de Coimbra havia uma estranha medida, aquilo que estava nos estatutos que tinham sido aprovados é que a homologação pertencia ao Ministério da Educação de forma que em certa altura nós mandávamos para o Mistério da Educação e o Ministério da Educação, descobrimos isso, mandávamos para o Ministério da Educação, o Ministério da Educação mandava para o Secretariado Nacional da Educação que não homologava e nós não aceitávamos a homologação porque dizíamos que não era a autoridade competente de acordo com os estatutos e assim estivemos nesta luta contínua, com várias direcções não homologadas. Eu não me lembro de ter sido algum dia homologado devidamente pelo Secretariado Nacional da Informação e todavia fui presidente como eu digo praticamente durante dez anos. Por isso estamos a ver as dificuldades que havia além de que  havia dificuldades de outra ordem. Recordo-me que em 1960 havia agitação, começou a haver agitação a nível académico, a certa altura havia uma reunião de cineclubes no Porto, que aliás não era permitida,, de cineclubes do País, vindos de Lisboa, vindos do Porto, vindos de outras cidades que era cá em Coimbra. Nós íamos fazer uma reunião. Não estava propriamente proibida não estava autorizada, mas também não havia uma proibição por motivo nenhum e estava eu num café com vários dirigentes cineclubistas quando de repente aparece a polícia e nos manda seguir, todos, manda seguir a todos, deteve-nos. Perdão, começou a interrogar, começou a andar em volta, não nos deteve nessa altura. Nós depois daí seguimos, vimos que realmente havia muitos agentes da informação no local onde estávamos, mas seguimos e até íamos almoçar e fomos almoçar ao restaurante e quando estávamos a almoçar no restaurante, na sopa, que aparece toda a coorte da polícia política e nos deteve a todos.
“O novo cinema português e a importância dos cineclubes nos anos 60” contou com a participação de Fernando Cabral Martins e do professor Orlando Carvalho.
Fizeram este programa Adelaide Marques, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.

(Programa gravado da Antena 2 no dia 30 de Janeiro de 1998)
Transcrição: Ireneu Batista