ERA UMA VEZ UM MILÉNIO
Entrevista com Fernando Rosas
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”
Por Adelaide Marques, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
A história do nosso século continua nos anos 60. A 20 de Janeiro de 1961, John Kennedy toma posse como presidente dos Estados Unidos da América. Uma política interrompida. A 22 de Novembro de 1963, em Dallas, John Kennedy é assassinado.
Em Portugal, no dia 27 de Setembro de 1968 e devido a incapacidade física, Oliveira Salazar é exonerado do cargo de Presidente do Conselho de Ministros pelo Presidente da República, Almirante Américo Thomaz.
“Continuando muito gravemente doente o Presidente do Conselho, Dr. António de Oliveira Salazar, e perdidas todas as esperanças, mesmo que sobreviva, de poder voltar a exercer, em plenitude, as funções do seu alto cargo, atendendo a que os superiores interesses do país têm de prevalecer sobre quaisquer sentimentos, por maiores e mais legítimos que pareçam, circunstância que obriga à decisão dolorosa de substituir na chefia do Governo o Dr. António de Oliveira Salazar, tendo ouvido o Conselho de Estado e não devendo adiar por mais tempo essa decisão, é no entanto com profunda amargura, só minorada pelo conhecimento que dele directamente colhi de que não desejava morrer no desempenho da suas funções, que uso da faculdade conferida pelo número primeiro do artigo 81 da Constituição, exonero o Dr. António de Oliveira Salazar do cargo de Presidente do Conselho de Ministros do qual manterá todas as honras a ele inerentes e para o substituir nomeio nos termos do mesmo preceito constitucional o Dr. Marcelo José das Neves Alves Caetano.”
(Discurso do Américo Tomás)
Marcelo Caetano, docente da Faculdade de Direito de Lisboa, dirigente do Estado Novo desde o início da década de 30, delfim de Salazar e o seu principal rival dentro do Regime.
“Pareceu-me conveniente que sobretudo no período que estamos a viver, houvesse possibilidade de contactos frequentes entre os que têm a responsabilidade do poder e o comum dos portugueses e é essa conversa em família que vou tentar estabelecer de vez em quando através da Rádio e da Televisão.”
(Palavras de Marcelo Caetano)
“Portugal, anos 60. O marcelismo” é o tema de hoje do nosso programa. Como sempre contamos com a colaboração do professor Fernando Rosas.
Fernando Rosas - Bom, vamos falar hoje sobre o marcelismo. Falar do marcelismo é falar de Marcelo Caetano, personalidade política que lhe deu o nome e gostaria de partir da seguinte ideia. O marcelismo enquanto regime político que coincidiu com o período final do Estado Novo ou seja, entre Setembro de 1968 quando se verifica a impossibilidade física de Salazar continuar com Presidente do Conselho e o 25 de Abril de 74, quando o Regime é derrubado pelo movimento militar dessa data, este curto período de tempo tem sido objecto de debate por parte da historiografia e eu queria partir de uma ideia acerca deste debate que é esta. Do meu ponto de vista, não me parece que o marcelismo se tenha limitado a ser uma máscara do velho salazarismo. Eu diria que o marcelismo foi a tentativa frustrada, por razões que vamos desenvolver ao longo dos próximos programas, a começar por este, uma tentativa frustrada de um processo de transição dentro do Regime. E para compreender isto é preciso falarmos um pouco sobre a biografia, o percurso biográfico de Marcelo Caetano. Marcelo Caetano é um homem que desde muito jovem estava a colaborar com o Estado Novo, ele ainda tem 28 anos, é chamado por Salazar como consultor jurídico para o Ministério das Finanças, é um homem que tem uma intervenção como jurista já com alguma importância na própria redacção da Constituição de 1933, é um jovem brilhante da direita, vem do Integralismo Lusitano. É daquele sector do Integralismo Lusitano que é captado pelo salazarismo para o Estado Novo com outras personalidades, com outros jovens desse movimento, mas digamos que há um período inicial em que Caetano, sobretudo nos anos 30, vai manifestar-se sobretudo como intelectual, jurista, homem que trabalha para o Regime, mas sem cargos públicos. Marcelo Caetano é o autor do código administrativo de 1936 que depois vem a ser definitivamente adoptado em 40, mas só é chamado para alguma responsabilidade visível no Regime exactamente em 1940, para Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa. Vem, aliás, substituir Nobre Guedes que era um comissário nacional claramente germanófilo, pró-nazi e no quadro da política de neutralidade, Salazar entendeu que convinha pôr à frente da milícia um homem sem essas claras simpatias germanófilas, aliás, Caetano era um homem mais de propensão anglófila e portanto que tentasse dar à Mocidade Portuguesa menos aquele ar inicial que tinha tido de milícia copiada das juventudes hitlerianas para lhe dar assim um ar de escotismo militarizado ligado ao Regime que foi essa a versão que Caetano tentou dar. Bom, para encurtar razões, Caetano é um homem que durante a guerra, ainda que não tenha durante um longo período responsabilidade política, é um homem que mantém uma regular correspondência com Salazar, essa correspondência hoje está disponível, já foi publicada em livro e nós verificamos através dela que é um homem que se vai mostrando crescentemente crítico relativamente à condução da política interna. Acha que o Regime tem excesso de rigidez, acha que a situação social se está a degradar, teme a eventualidade dum colapso revolucionário do Regime no pós guerra e vai, as suas cartas mostram um tom crescentemente crítico em relação a Salazar. Eu diria que, aliás, Caetano juntamente com outros dois altos dignatários do Regime, Armindo Monteiro e Teotónio Pereira, são talvez do que hoje conhecemos da documentação, os três únicos homens que se permitem falar um pouco de igual para igual com Salazar e criticar, abertamente, a condução da política. Salazar vai portanto seguir uma política que vai ser muito comum, nomeadamente com o Caetano, no futuro que é tentar chamá-lo para dentro da responsabilidade política, para dentro do Governo, mas com o propósito de esvaziar um pouco o impulso crítico que o trazia e então convida-o para, em 44, na remodelação governamental de 44, Caetano é convidado a assumir a pasta da Justiça que ele recusa ou seja, Caetano sente que dar-lhe a pasta da Justiça é querer na prática não lhe dar coisa nenhuma e Salazar faz uma espécie de acordo com ele no sentido de dar-lhe uma pasta política mas longe dos negócios interiores. Aliás, foi o que aliás, em certa medida, valeu ao Caetano. Ele dá-lhe a pasta das Colónias, ele foi Ministro das Colónias em 44 o que lhe permite estar fora da convulsão política do final da guerra em termos de política interna. Para dizer a verdade, no inverno de 45, quando após o final da guerra se verifica a explosão eleitoral, o MUD, toda a agitação política contra o Regime, Caetano está em Angola, em visita oficial, está longe das eleições de Outubro/Novembro de 45, enfim daquilo que se pretendeu chamar como eleições e é um homem que vai surgir na grande catarse do pós guerra dentro do Regime. Salazar perante a convulsão que se tinha gerado, manifestando incompreensão com aquilo que ele entendia ser a incompreensão dos portugueses para com a sua obra, para com a política de neutralidade que manteve o país fora da guerra, vai fazer uma série de reuniões com os responsáveis, não só com o seu conselho privado, homens da sua confiança como com altos dignatários do Regime, digamos que os fins de 45, início de 46 passam-se com essas reuniões e Caetano destaca-se dessa catarse como um crítico razoavelmente lúcido do Regime do ponto de vista do Regime, ou seja do interior do Regime. Eu tenho, nomeadamente uma frase que é dizer que é impossível, pode-se, a repressão, as respostas podem conter um movimento, uma insatisfação, pode-se conter uma greve, pode-se responder política ou policialmente a isto ou aquele fenómeno, não se pode vencer o espírito de uma época e portanto o Regime, do ponto de vista caetanista, teria que entrar num processo adaptativo. Caetano vai tomar e aqui começa realmente o percurso político em termos de importância histórica para o Regime porque Caetano nesse ano de 46 vai tomar uma dupla posição. Vai simultaneamente dar a cara pela defesa do Regime quando de todos os lados chovem críticas e com isso ganhar prestígio e força dentro do próprio Regime para começar a arregimentar uma espécie de partido informal de gente que se reconhecia dentro do Regime, gente que se reconhecia nessa tentativa de adaptação que ele preconizava, nomeadamente na conferência da União Nacional, muito importante porque é, digamos assim, o início da recuperação por parte do Regime, o início do contra ataque à vaga oposicionista do pós guerra, a conferência da União Nacional de Novembro de 46, Caetano tem o privilégio de abrir, em nome da União Nacional, de encerrar, peço perdão, quem abre é o Salazar e quem encerra é Caetano, o que já diz alguma coisa e pela primeira vez o que é, quem consulta a oratória, a literatura dos próceres principais do Regime verificará isso, pela primeira vez Caetano vai dizer que há, dentro do Regime, várias tendências, uma tendência conservadora, uma tendência reformadora, uma tendência centrista, ou seja, arruma politicamente as forças dentro do Regime, ou seja, arruma o seu campo dentro do Regime e nesse quadro, escuso de dizer que este tipo de qualificações era completamente extraordinária no quadro do que era a unidade ou homogeneidade que se preconizava como orientação das forças apoiantes do salazarismo e dentro deste quadro Caetano vai negociara importante remodelação ministerial de 1947, Fevereiro de 47. Ele próprio sai do Governo, aceita com Salazar sair do Governo e Salazar entrega-lhe a condução da União Nacional, do partido único. Ele é designado nessa altura presidente da Comissão Executiva da União Nacional, na prática é ele que vai dirigir o Partido, não aceita nenhum cargo do Governo, mas põe vários homens da sua confiança no Governo de 47. Nomeadamente, Daniel Barbosa, o ministro da Economia que vai ter um papel muito importante no contra ataque do Regime, através da política de preços baixos, de importações maciças para baixar o preço dos géneros alimentares, acabar com o mercado negro, estabilizar os salários, ou seja, desdramatizar a questão da carência da falta de géneros, as dificuldades económicas e Caetano, portanto, vai tomar uma posição dentro deste Governo, não só, aliás, através de Daniel Barbosa, o próprio ministro das Colónias é um homem próximo dele, o próprio ministro do Interior nessa altura, Cancela de Abreu, é um homem próximo de Caetano. Digamos que Caetano começa a articular o seu grupo de influência até doutra maneira interessante. Eu entrevistei algumas pessoas que depois serão seguidores de Caetano, ele vai buscar às universidades, aos recém licenciados jovens técnicos ou juristas brilhantes que reúne em seminários informais para discutir a situação do país e nesse tipo de reuniões que ele vai organizar, vamos encontrar o núcleo duro daquilo que vão ser os seguidores daí para diante do caetanismo e que ele vai, cuidadosamente, colocar no interior do Regime mesmo nos períodos em que ele não assume grande protagonismo político. Estou a falar de Baltasar Rebelo de Sousa, Camilo de Mendonça, Dias Rosas, assim vários homens que ele, jovens nessa altura, que ele começa a colocar dentro do aparelho de Estado, da organização corporativa, da previdência social, do Ministério da Educação, etc. e o próprio Adriano Moreira que vem daí, apesar de depois se ter afastado. Caetano vai portanto começar a partir do fim da guerra a constituir uma espécie de sector informal. Isto é um percurso, a vida deste sector, eventualmente reformista dentro do Regime, é uma vida acidentada. O primeiro acidente dá-se logo exactamente em 47/48 quando o Regime passa ao contra ataque contra a oposição. Ataca os estudantes, ataca os professores universitários, demite-os, etc. e no quadro dessa vaga repressiva que responde à ofensiva oposicionista do pós guerra, Caetano, o Salazar esvazia-lhe completamente as pretensões desse sector caetanista, qualquer mudança significativa e Caetano sente-se burlado no fundo e a propósito do saneamento político de Celestino da Costa vai pedir a demissão de presidente da Comissão Executiva, ainda aceita fazer as eleições presidenciais de 49, mas afasta-se. Por pouco tempo. Salazar, Salazar tinha compreendido, Salazar era um homem com uma enorme sensibilidade política, sabia muito bem, era um sobrevivente, era um homem, a arte principal do salazarismo era esta arte de saber durar e dentro do Regime tinha percebido que estava ali a constituir-se um sector que a melhor maneira de neutralizar era metendo-o dentro do Governo, metendo-o dentro do Regime para o esvaziar e de alguma maneira o procurar neutralizar. A primeira metade dos anos 50 que são até uma época de um certo endurecimento verbal do Regime, mas por baixo do qual, já vimos isso, se estão a passar mudanças económicas extremamente importantes, digamos que esse sector caetanista muito ligado aos promotores da mudança, aos industriais, aos engenheiros, aos economistas, aos banqueiros. Quer dizer, há aqui uma ligação aos homens que defendem a reforma do ensino, aos técnicos que defendem a reforma agrária, a reforma agrária tal como se falava dela nessa altura. Todos estes sectores que de alguma maneira nos seus sectores específicos estão a advogar a adaptação da economia e da sociedade a uma nova situação. São os homens com quem o Caetano vai informalmente ligar-se, ao mesmo tempo que tem um pequeno grupo político que começa a singrar no Regime. É a altura em que estes homens, os jovens licenciados do pós guerra se chamam os subsecretários, o Subsecretários de Estado do Comércio, o Subsecretário de Estado da Educação, etc., etc., Subsecretário de Estado da Agricultura, começam a singrar no aparelho político e este campo vai a partir daqui, podemos defini-lo como o campo marcelista.
“É preciso que cá dentro e lá fora fique bem claro se o povo português é pelo abandono do Ultramar ou se está com o Governo, na sua política de progressivo desenvolvimento e crescente autonomia das Províncias Ultramarinas. Se o povo português prefere um clima de ordem pública e de paz social em que as reformas necessárias ao fomento do país, à promoção social e ao bem estar dos portugueses vão sendo feitas, com resolução e com firmeza, mas com segurança também, ou a turbulência revolucionária de que não se pode esperar mais do que violência, despotismo, confusão e afinal miséria e fome”.
(Excerto de discurso de Marcelo Caetano)
O mais errado de tudo é chamar a Caetano um liberal porque Caetano não era um liberal, sobretudo no sentido filosófico e político do termo, era um homem de formação corporativista. Ele era partidário duma certa abertura política do Regime. Nunca o vimos defender a legalização dos partidos ou o parlamentarismo, mas era entendido que o Regime devia, do ponto de vista do funcionamento da polícia política, da censura, do ponto de vista da admissibilidade dum certo pluralismo dentro do próprio Regime, era um homem duma certa abertura política. Em termos económicos, naturalmente estava ligado aos sectores que advogavam o desenvolvimento industrial, a abertura para a Europa, ele que aliás, vai falar disso no Congresso da Indústria de 57 da EFTA. Aos homens que entendem que é necessário reformar a agricultura, é muito amigo de Leite Pinto e dos homens que defendem a reforma da educação e portanto ele está ligado a vários sectores modernizantes dentro do Regime e tem, do ponto de vista da economia, da sociedade, projectos claramente, claramente modernizantes. É preciso ver que mesmo na questão colonial, antes da eclosão da guerra, lembro, trago aqui à colação o célebre parecer que Marcelo Caetano irá dar. Irá dar a solicitação do Ministro das Colónias, sobre, em que ele defenderá em 1960, se a memória me não falha, uma solução tipo federalista para as Colónias ainda antes da guerra eclodir, mas em que ele, temos a noção de que quando se discute a questão da Índia no Conselho de Estado ou quando lhe pedem parecer sobre a condução da política colonial em 60, ele tem um pensamento longe do centralismo monolítico do Regime. Quer dizer, mesmo na questão colonial e antes de se ir à questão da guerra, em Caetano há um esboço de pensamento adaptativo também na esfera, em matéria de política colonial. Eu diria que o caetanismo, com o sector reformista, vai perder as três oportunidades históricas que tem para reformar o Regime. Perde a primeira logo em 1958. O sector caetanista vai juntar-se, sobretudo a partir do momento em que Caetano, Caetano toma muita força no país nos anos 50. Salazar, fiel à sua política de sempre, em vez de o repudiar chama-o para Ministro da Presidência, Ministro da Presidência em 55 era uma espécie de herdeiro putativo do Presidente do Conselho, do ditador. Como Ministro da Presidência ele toma, reforça o seu sector dentro do Regime, cria-se dentro do Regime, claramente, uma divisão entre os ultramontanos, conservadores, partidários da manutenção do salazarismo à ‘outrance’, inimigos das reformas no plano económico e político, representados por homens como Lumbrales, Mário de Figueiredo, o próprio Santos Costa que é o chefe do aparelho militar e os caetanistas. Agora a grande vantagem da segunda metade dos anos 50 com o Caetano na presidência é que esse sector civil, económico, social do caetanismo ganha ligações militares através do próprio Presidente da República que é Craveiro Lopes. A segunda oportunidade é pouco depois com o golpe de Botelho Moniz que já falámos aqui abundantemente quando o Ministro da Defesa que é um homem que alinha com os militares descontentes, que está próximo do Craveiro Lopes, convida Craveiro Lopes, aliás, a tutelar o célebre golpe da abrilada de 1961, em que, aparentemente, haveria contactos com Caetano. Caetano teria resistido aos contactos, mas aparentemente, segundo algumas fontes ligadas a esse sector, aparentemente estava-se a pensar em Caetano como eventual Primeiro Ministro. A abrilada também já vimos e já vimos em que condições é frustrada.
A terceira tentativa e é essa que vamos agora escalpelizar nos próximos programas, a terceira e última tentativa de operar pela via da reforma, de operar uma transição pela via da reforma, se se quiser uma transição à espanhola pela via de um regime que procedesse a uma adaptação, a uma adaptação pacífica e discreta para aquilo que poderia vir a ser uma democracia, essa terceira oportunidade surge, obviamente, quando Caetano, finalmente, repare ao fim deste longo percurso que vai de 46 a 68, ao fim destes vinte e tal anos de espera, quando finalmente Caetano é chamado ao poder. Repare, Caetano é demitido em 58. No rescaldo da crise delgadista, Caetano e Santos Costa, dois chefes de fila das duas tendências, são ambos afastados. Caetano faz um longo percurso, uma longa travessia no deserto. Em 62 ainda tem tempo de se incompatibilizar, publicamente, com o Regime na crise académica de 62, é um homem, no entanto, que nunca sai da política. O seu célebre, já falámos dele, o seu sóbrio grupo da Choupana, os seus fiéis continuam a reunir-se, continuam a singrar dentro do Regime. A última remodelação de Salazar, curiosamente tem muitos marcelistas, por isso é que ele mexe pouco no primeiro governo que faz, tem muitos marcelistas já dentro do Regime. Era Supico Pinto que os escolhia e portanto de alguma maneira havia a ideia de que alguma coisa tinha que mudar e portanto Caetano finalmente é chamado ao poder. A entronização de Caetano como Presidente do Conselho é o primeiro acto da luta política intestina que a partir daí se trava muito agudamente dentro do Regime. Naturalmente o sector ultramontano, Figueiredo e companhia não queriam Caetano no poder. Caetano, em grande parte, é fruto do apoio do grupo Melo, da família Melo, dos sectores económicos mais dinâmicos, certos sectores das Forças Armadas, a hierarquia das Forças Armadas aceita-o desde que ele esteja disposto a seguir a mesma política de guerra colonial, mas Caetano é imposto por uma, digamos, por uma corrente que dentro do Regime entende que é altura de tentar seguir uma via que adaptasse o Regime às novas condições do Mundo e da própria sociedade portuguesa. Digamos que o caetanismo entra portanto, sobe ao poder como projecto político e que não é um simples disfarce do salazarismo. Uma coisa é dizer que o caetanismo não conseguiu levar por diante o seu projecto e se resumiu a uma continuação do salazarismo na prática, outra coisa do ponto de vista historiográfico é compreender que o marcelismo é portador de um projecto de transição para o Regime que por razões que iremos analisar ao longo deste programa não consegue aplicar. O marcelismo quer, aposta numa política de desenvolvimento industrial voltada para a Europa; o marcelismo aposta numa política dependente da modernização agrícola; o marcelismo aposta numa descompressão social clara que se manifesta nas primeiras leis que promulga de descompressão sindical; o marcelismo vai apostar, como se verá, numa reforma do ensino universitário modernizante de grande alcance com o Veiga Simão; o marcelismo aposta também no plano social numa melhoria controlada de condições de vida através da extensão da previdência aos rurais, doutras medidas que adopta no plano da indústria, no plano da agricultura, no plano da integração europeia, no plano social, no plano sindical, no plano da educação. Uma aposta estratégica de reforma universitária. Tudo isso, a reforma do ensino, a batalha do ensino, como chamará na altura, tudo isso faz parte dum programa, relativamente claro, na ideia dos marcelistas e à volta desse programa vai constituir-se um bloco social de apoio. Só há um ponto, um pequeno ponto onde sobra ambiguidade e esse era o ponto relativo à questão colonial. Parecia que o marcelismo entrava cheio de ideias reformistas em vários campos, mesmo no plano político uma certa liberdade, uma certa disponibilidade inicial, uma certa tolerância numa oposição, quer dizer, chamar o PS para, o novo PS para uma espécie de oposição capaz de ser interlocutor num processo controlado de mudança. Sobrava uma questão. Sobrava uma questão sobre a qual Caetano, desde o primeiro momento, sempre teve medo de tocar e onde não quis tomar nenhuma espécie de compromisso, a questão colonial porque o Presidente da República, ele próprio chefe de fila da corrente mais conservadora e ultramontana, lhe tinha dito que se se mudasse a política colonial as Forças Armadas intervinham e este tipo de chantagem é uma chantagem que vai paralisar. Ou paralisar ou, pelo menos, dar força à paralisia que ele próprio tinha em matéria de questão colonial e portanto o bloco social que se constitui para apoiar o primeiro ou a primeira fase do marcelismo ou seja o marcelismo com os seus fiéis de sempre, mas aliado aos liberais, aos jovens liberais Sá Carneiro, Miller Guerra, Balsemão, etc. que alinham como independentes da União Nacional, os tecnocratas João Salgueiro, Rogério Martins, Xavier Pintado, os homens que alinham, os tecnocratas que alinham também, muitos deles ligados ao próprio grupo CUF, portanto, digamos que há uma frente política que corresponde também a uma frente social e há uma expectativa grande no país de que esta frente política e estas ideias programáticas poderiam vingar. No fundo e com isto termino, o marcelismo ia traduzir-se em dois tempos. Tentar reformar, sem resolver a questão da guerra, e o segundo tempo, porque não se resolve a questão da guerra, mata-se a reforma, esvazia-se a reforma e com isso precipita-se a queda do próprio Regime.
“Portugal, anos 60 e o marcelismo” teve colaboração do professor Fernando Rosas.
Fizeram este programa Adelaide Marques, Maria dos Anjos Pinheiro e esmeralda Serrano.
(Programa gravado da Antena 2 no dia 20 de Fevereiro de 1998)
Transcrição: Ireneu Batista