Entrevista com Kalidas Barreto - A questão social e o movimento sindical

ERA UMA VEZ UM MILÉNIO

Entrevista com Kalidas Barreto e Fernando Rosas
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”

Por João Monteverde, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
 
 
A viagem pelos anos 60 continua e Portugal é o nosso ponto de referência. Os últimos anos da década de 60 são marcados por forte contestação, apesar da Primavera marcelista e da abertura na Assembleia Nacional à chamada ala liberal que já foi tema de anteriores programas. A 15 de Maio de 1969 inicia-se em Aveiro, o Segundo Congresso Republicano, organizado pela oposição ao Estado Novo. Contou com a presença de 1500 delegados e foi rodeado de fortes medidas de intimidação por parte do Regime. O terceiro congresso realizou-se já nos anos 70 e é desse que temos notícias.
Durante alguns dias, a oposição ao Regime teve direito a ser notícia na Emissora Nacional.
“Com uma sessão solene no Teatro Avenida tem início hoje, às 21 e 30, o Terceiro Congresso da Oposição Democrática. Oradores inscritos, os doutores Seiça Neves, José Tengarrinha e Santos Simões, a Dr.a Maria Barroso, José Felgueiras, António Cardoso e Mendes Coelho. Os trabalhos só terão início realmente amanhã com a realização também naquele teatro de várias sessões durante as quais serão debatidas 123 teses divididas por várias secções”.
A 27 de Julho de 1970 morre em Lisboa, com 81 anos, António de Oliveira Salazar, chefe e principal responsável pela estruturação e longa duração do Regime. Através do Decreto-Lei nº 353/70, o governo define as disposições a observar em manifestação de pesar pelo falecimento de Oliveira Salazar: luto nacional e funerais nacionais. A Emissora Nacional anunciava assim a morte de Salazar.
“O dia de hoje ficará a constituir uma das datas mais tristes da história de Portugal e um duro golpe no património espiritual da Nação. Morreu o professor António de Oliveira Salazar que foi Presidente do Conselho de Ministros português durante mais de trinta e seis anos, até ao Verão de 1968.”
No mesmo ano é clandestinamente constituída em Lisboa a Comissão Organizadora Central da Intersindical, estrutura constituída por diversos sindicatos nacionais para cujas direcções haviam sido eleitos trabalhadores da oposição: comunistas, católicos progressistas, socialistas e outros. Kalidas Barreto, nosso convidado de hoje, foi um desses trabalhadores. A questão social e o movimento sindical é assim o tema de hoje que conta também e como habitualmente com a colaboração do professor Fernando Rosas.
Fernando Rosas - Boa tarde, Kalidas Barreto, dirigente da Intersindical, mais do que isso, fundador da Intersindical nos idos de 1970, durante o regime marcelista. Muito obrigado por estar connosco. É um grande prazer ter aqui um sindicalista histórico, histórico mas jovem e gostava de começar esta nossa conversa, perguntando-lhe, Kalidas Barreto, um homem de Castanheira de Pêra, um homem ligado à indústria têxtil do lanifício desde há muitos, muitos anos, como é que era ser um trabalhador dos lanifícios no final dos anos 60 em Portugal.
Kalidas Barreto - É curioso que eu tenho a experiência dos lanifícios porque havia um contrato vertical e porque era chefe de escritório, era contabilista. Guarda livros como era então, hoje é técnico oficial de contas, não é. Isto melhorou. Mas então, portanto, estava numa fábrica de lanifícios e verifiquei, fiz-me sindicalista pela minha sensibilidade natural para os problemas sociais e, de facto, via com alguma apreensão a forma como eram tratados os trabalhadores de então, quer salarialmente quer socialmente. Eram peças de máquina e por isso a indústria têxtil chegou onde chegou, não é. Nos lanifícios havia já, por isso, tradições de luta, curiosamente. Na zona onde eu estive, Castanheira de Pêra, [Fernando Rosas – Mesmo na sua zona de Castanheira de Pêra?] Sim. Havia, houve, em 1915, uma associação de operários e tecelões, uma associação de classe, portanto na primeira república. Veja a dificuldade com que realmente aquilo se desenvolvia, as relações de trabalho e uma certa força anímica e de classe que aquela gente tinha. Portanto, isto despertou-me e despertou-me para aquela situação toda e era um, digamos, um franco-atirador porque eu não estava nem filiado em partidos, nem tão pouco estava em sindicatos. Aliás, eu contrariava a ideia de… [Fernando Rosas – Havia o sindicato nacional.] Havia o sindicato nacional com sede, abrangendo o distrito de Leiria e Coimbra, com sede em Castanheira de Pêra curiosamente.
Fernando Rosas – Ora bem, a vossa história é um pouco a história da entrada para o sindicato nacional e da sua conquista. Como é que era, como é que vocês encaravam o sindicato nacional, como é que se fez esse percurso?
Kalidas Barreto - Bom. Há em tudo isto um pouco de acreditar e de utopia e em mim que tinha alguns princípios cristãos e há uma sensibilidade para esse aspecto, militava, de algum modo, discretamente na JOC e o Concílio Vaticano II. [Fernando Rosas – A JOC estava muito ligada a esse sector da indústria têxtil.] Sim, sim. Estava, muito. O Concílio Vaticano II teve alguma importância. Quer dizer, a doutrina social da Igreja, a forma de realmente serem tratados e encarados os sindicatos com direito de cidadania. Bom, através daí isso sensibilizou-me. Quando chegou o marcelismo e com a sua abertura, digamos, modificando as coisas, em lugar de haver o sancionamento do Ministro das Corporações, passava a ser as assembleias de trabalhadores é que eram soberanas.
Fernando Rosas – Portanto, até aí as direcções dos sindicatos tinham que ser sancionadas pelo Ministro para poderem ser [Kalidas Barreto - Das Corporações.] ratificadas e a partir daí passou a haver, digamos, uma certa liberdade, ainda que tenha durado pouco tempo, para eleger as direcções.
Kalidas Barreto - Pronto, aproveitando isso, houve vários sindicatos que se movimentaram e foi então quando nasceu a Intersindical e houve várias eleições em vários lados que conseguiram ter direcções de confiança dos trabalhadores.
Fernando Rosas – E portanto o Kalidas entra numa lista que vai concorrer à direcção…
Kalidas Barreto - Mas com alguma relutância porque eu, de facto, entendia que íamo-nos sujar metendo-nos em sindicatos corporativos que tinham, eu posso-vos dizer que, recordo-me de uma das experiências quando aceitei, acabei por entrar e ganhar numa lista da confiança dos trabalhadores e pondo, isto que também é só, de facto, de loucos naquela altura. Só aceitámos ser eleitos se tivéssemos mais de 50 % da expressão eleitoral. Ora veja, um sindicato pluri-distrital, com várias… Miradaire, Castanheira, Coimbra, Avelar, Ansião, portanto muita gente, muitos lados, era difícil realmente conseguir isso. Não foi um subterfúgio, foi de facto um desejo de afirmação porque ou tinha validade e, de facto, democrática e podia-se, de facto, dizer, pronto, fomos eleitos democraticamente, com alguma autoridade, ou então não valia a pena.
Fernando Rosas – Concorreram contra outra lista.
Kalidas Barreto - Fugiu a lista corporativa. A força era tão grande da classe que não concorreu. Deixou o espaço livre, curiosamente. Estas facilidades às vezes são perigosas.
Fernando Rosas – Ia perguntar-lhe isso Kalidas. Como é que a classe reagiu à vossa candidatura?
Kalidas Barreto - De facto, duma maneira… Havia um grande movimento nos lanifícios, na Covilhã. Havia cinco sindicatos - Covilhã, Gouveia, Castanheira de Pêra, Porto e Lisboa - e nestes sindicatos, gradualmente, fomos ganhando as eleições com direcções da nossa confiança.
Fernando Rosas – O que é que era o vosso programa? O que é que vocês ofereciam? O que é que fazia a…
Kalidas Barreto - Olhe, uma das coisas era acabar com as secções femininas. Havia as secções femininas, separação dos homens e das mulheres. Portanto, formar, a primeira fase foi uma lista, digamos assim, uma comissão feminina de apoio à direcção, a segunda fase foi de facto a abertura completa. Foi gabinete jurídico para informar os trabalhadores, foram as circulares periodicamente, reuniões muito regulares com os trabalhadores. Era o Dr. Francisco Pereira de Moura o nosso advogado na contratação colectiva e o nosso advogado propriamente do sindicato era o Dr. Arnaut.
Fernando Rosas – Consultor económico era o Pereira de Moura.
Kalidas Barreto - O Pereira de Moura e o consultor jurídico era o Arnaut. Pronto, e tudo isto, de facto, deu um certo… Quer dizer, nós sentíamos o pulsar dos trabalhadores que estavam, de facto, sentia-se que era altura de abrir.
Fernando Rosas – Em que ano é que estávamos nessa altura?
Kalidas Barreto – Em 68/69. [Fernando Rosas – 68/69.] Portanto, em 69 estava-se a tentar discutir um contrato colectivo de trabalho, movido pela Federação do Manuel Lopes, já de facto dominava as operações, ele com a sua juventude toda e estava em Lisboa portanto onde havia algumas possibilidades e mobilizámo-nos e nós conseguimos de facto…
Fernando Rosas – Acha que se pode dizer que essas direcções novas que surgem nos têxteis têm uma influência importante do chamado catolicismo progressista nessa altura?
Kalidas Barreto – Sim, eu creio que tem uma grande parte de gente que acreditou na transformação do mundo através do Concílio Vaticano II, por um lado, e, por outro lado, a força organizada do Partido Comunista. Repare que todo este movimento da Intersindical nasce um pouco dentro de Lisboa e a partir da CDE, das Comissões Democráticas Eleitorais, daquelas comissões sócio-profissionais que existiam e portanto aproveitou-se esse élan para congregar…
Fernando Rosas – Como é que vocês foram convidados para essa coordenação de intersindical que haveria de dar a Intersindical.
Kalidas Barreto – Todos nós éramos conotados como oposição ao Regime e, de algum modo, entendíamos que havia que encontrar uma frente sindical que também ela pudesse servir de esclarecimento aos trabalhadores e fazer, de algum modo, uma frente anti-fascista e foi isso que nos motivou a vir de bom grado.
Fernando Rosas – Quais são os principais sindicatos metidos nesse acto de fundação?
Kalidas Barreto – Os bancários, os caixeiros, os lanifícios, [Fernando Rosas – Metalúrgicos.] metalúrgicos e propaganda médica. Agora de momento não me recordo, faziam parte duma célebre reunião de que eu não fiz parte. Eu nessa altura nem era dirigente sindical e era mais um franco-atirador, um activista.
Fernando Rosas – Mas não estava na direcção do sindicato?
Kalidas Barreto – Só depois.
Fernando Rosas – Ah, só depois.
Kalidas Barreto – Já depois de 70 é que eu fui eleito.
Fernando Rosas – Ah sim.
Kalidas Barreto – Já depois de 70, embora já tinha actividade de tal forma que já ia a reuniões e recordo-me que a primeira vez que houve uma reunião… E portanto colaborei em toda a acção de formação, sobretudo fora de Lisboa, com a Intersindical. E recordo-me que uma vez fizemos uma reunião em Leiria, estava lá um chefe da polícia, da PIDE, que me identificou no meio, chamando a atenção como é que aquele senhor que é de Castanheira e não é dirigente sindical está aqui. O que é que ele está aqui a fazer? Porque ele estava a ser convidado a sair dado que não era dirigente sindical. Ele fica e eu não fico porquê? Eu sou um interessado pelos factos sindicais que se passam no país, mas foi para a rua.
Fernando Rosas – Significa que a polícia tinha uma certa atenção relativamente a si próprio, a si.
Kalidas Barreto – Obviamente e para já eu liderei, de algum modo, se é assim que se pode dizer, a oposição em Castanheira de Pêra que é um concelho operário e com muita gente afecta ao antigo Regime. Portanto, era notório que ao pôr a cabeça de fora que havia de ficar mal. Depois foi a posição de luta desde a invasão da minha casa, às buscas, iam aos colchões dos miúdos, levantarem os miúdos, aquelas cenas tristes por que passámos. Nunca cheguei a ser preso, mas intimidaram-me no sentido de intimidar o resto da classe. Só que não resultou, porque, portanto, fui guarda-redes…
Fernando Rosas – E do ponto de vista da sua empresa, sentiu da parte da entidade patronal alguma reacção ao seu activismo sindical?
Kalidas Barreto – Algum temor, mas éramos tantos e a força era tão grande que realmente e depois outra coisa, toda a gente que estava comigo, já não quero falar de mim, mas toda a gente que estava comigo eram bons profissionais. Isto era fundamental na altura. Por muita boa vontade que eles quisessem... Mas esse bom profissionalismo, em mim, deu-me isto. Eu, ainda em 1971, salvo erro, sou convidado para uma empresa aqui de Lisboa e ao chegar cá, já com casa instalada, com os cinco filhos e tudo o que eu tinha, não me deixaram entrar porque houve pressões da PIDE, dizendo-me… Numa fábrica de lanifícios, aqui. Portanto, houve todo esse género de perseguições. Naturalmente que não surtiram efeito porque realmente nós estávamos determinados, sabíamos o que é que queríamos, com as dificuldades enormes que havia, levávamos a nossa mensagem aos trabalhadores, trazíamos os trabalhadores, através da discussão de vários decretos, da legislação. [Fernando Rosas – Reuniam em assembleias gerais.] Reuníamos em assembleias gerais, discutíamos e pronto, aproveitando tudo aquilo que o governo permitia como margem legal nós aproveitávamos e fazíamos.
Fernando Rosas – Poderia dizer que haveria uma… nesse período, início dos anos 70, que haveria uma grande mobilização social em volta desse novo sindicalismo que estava a nascer?
Kalidas Barreto – Havia. Pronto, muita gente, por um lado, sentia-se defendida, sentia-se esclarecida e eu não quero fazer comparações, mas eu gostaria que todos os dirigentes sindicais hoje tivessem na ponta da língua, não a resposta a dizer, vou pôr este assunto ao advogado, mas saber responder directamente ao trabalhador, dar-lhe um conselho, sobretudo no âmbito do contrato colectivo de trabalho. Esqueceu-se um bocado essa pedagogia.
Fernando Rosas – A sindicalização era obrigatório.
Kalidas Barreto – Na altura era obrigatória. Isso de algum modo facilitava, não é. Facilitava, embora, pronto, era forçada, mas facilitava, mantinha as pessoas congregadas à volta do sindicato.
Fernando Rosas – O vosso projecto de sindicalismo no sindicato dos lanifícios foi… Vocês ofereciam aos trabalhadores coisas que até aí os sindicatos nacionais não ofereciam.
Kalidas Barreto – Não tinham, não tinham. A eleição, também não falámos, conseguimos eleger delegados sindicais, coisa que não havia.
Fernando Rosas – E conseguiam trabalhar nos locais de trabalho?
Kalidas Barreto – Não havia plenários de empresa, não havia, mas conseguíamos distribuir e conseguíamos congregar as pessoas, o que era extraordinário. Depois das horas de trabalho a virem ao sindicato reunirem-se.
Fernando Rosas – Mas isso significa que da parte dos empresários haveria como que uma certa aceitação do que vocês faziam.
Kalidas Barreto – Não, havia na altura… Foi uma transição tão rápida que eles foram apanhados de surpresa.
Fernando Rosas – Quer dizer, era frequente os empresários chamarem a polícia, entregarem os trabalhadores à polícia.
Kalidas Barreto – Não, na minha área não. Talvez porque fosse um meio pequeno e tinha havido uma experiência muito grave e traumatizante que foram alguns operários, até sem grande formação política, mas só porque foram apanhados numa reunião a ler o “Avante!” e foram todos parar a Caxias. Isto uns anos antes, isto deu uma reacção muito grande na população e desde aí havia, portanto, um observar, um intimidar, mas não prender e portanto não havia. Claro que eu sei, li relatórios e havia na empresa onde eu estava um indivíduo que era da União Nacional, fazia parte da comissão concelhia da União Nacional e um dos relatórios diz assim: “Não há dúvida que o fulano, no caso era eu, não é afecto ao Regime, vários indivíduos chefes de secção não eram afectos ao Regime, mas isso é compensado pelo controlo exercido pelo senhor fulano de tal, nacionalista…” Havia um bocado de vigilância discreta. Comigo sucedeu um bocado a discrição porque me perseguiram, me despediram e acabei por ficar desempregado.
Fernando Rosas – E foi despedido também por causa disso?
Kalidas Barreto – Não fui. Digamos, fiquei numa posição falsa. Saí a convite de uma outra empresa para Lisboa e cheguei cá…
Fernando Rosas – E depois chegou cá e a informação da PIDE impediu-o de entrar. [Kalidas Barreto – Fiquei desempregado.] Entretanto, o marcelismo começa por dar essa abertura de dispensar a ratificação ministerial, mas isso também vai acabar a seguir.
Kalidas Barreto – Sim, logo a seguir passou a haver vigilância, a saber quem era, embora formalmente eles não faziam, mas exerciam… ou levantavam problemas jurídicos e as direcções nunca começavam, nunca iniciavam as suas actividades.
Fernando Rosas – Mas eles não reintroduzem mesmo a ratificação ministerial?
Kalidas Barreto – Tenho a impressão que não. Olhe que eu francamente…
Fernando Rosas – Tinha a ideia que sim, mas posso também estar enganado.
Kalidas Barreto – Também tenho a impressão que não, tenho a impressão que se manteve, manteve com muitas imitações, muitas dificuldades. Posso estar a cometer alguma gralha de memória, pode-me estar a falhar nesse aspecto, mas tenho a impressão que não. Houve é dificuldades tremendas que não havia. Também foi um espaço curto de tempo que nós aproveitámos e levantou logo problemas à criação da Intersindical, demitiu o Cabrita e o Cabrita esteve preso que era um dos motores aqui através dos bancários que tinham a força que se conhece. Portanto, tudo isso tentaram fragilizar o movimento sindical.
Fernando Rosas – Diria que os dirigentes sindicais desses anos estavam mais ligados à massa dos trabalhadores do que actualmente?
Kalidas Barreto – É difícil fazer comparações entre um período e outro e nem quero ser injusto para com os actuais dirigentes sindicais que são generosos, continuam a ser e duma forma muito acentuada, tanto mais que hoje há problemas diversos e mais complexos, mas eu diria que estávamos muito próximos da classe, na altura, mais então do que agora porque havia várias motivações e havia, concretamente, um adversário e agora às vezes nem se conhece bem o adversário e mesmo a própria classe não é tão coesa como era na altura, não é.
Fernando Rosas – A Intersindical nasce formalmente em 1970, Outubro. O Kalidas manifestamente não era um homem ligado à área de influência do Partido Comunista, no entanto, convivia e conhecia e colaborava com outros homens que eram… outros sindicalistas que eram dessa simpatia política, como é que vocês lidavam com o problema nessa altura das vossas diferentes posições políticas?
Kalidas Barreto – Era o problema que vinha. Digamos, era a escola da Comissão Democrática Eleitoral que aqui em Lisboa houve de facto a diferença entre a CEUD e da CDE, em Leiria não e em Coimbra também não e em Leiria pontificava o Dr. Vasco da Gama que era um socialista, embora tinha outros indivíduos que, como sabe, a Marinha Grande é no Distrito de Leiria. Havia uma grande convivência num sentido de franco antifascista e também a mensagem de então,  uma certa procura da unidade dos trabalhadores. Portanto, tudo isso, as duas coisas congregadas davam-nos um certo à vontade e talvez após o 25 de Abril uma certa utopia de que tudo seria fácil e que se calhar os partidos mais para diante era melhor.
Fernando Rosas – O Kalidas adere ao Partido Socialista quando?
Kalidas Barreto – Logo a seguir… porque há um fenómeno engraçado político. Nós arrancámos com a modificação, o conselho político que me deram quando chegou o 25 de Abril é assim e agora o que é que eu faço? Perguntei eu, e o conselho político, não digo quem é, naturalmente, porque abriria a boca de espanto, pintar na parede “Abaixo a carreira fascista”. Obviamente que eu entendi que era pouco e com… Pronto, pensei duas vezes. Vamos lá a ver. Vou assumir, como sou um herói da revolução, entre aspas, na zona, vou pegar nas forças vivas do concelho, levo-as para casa e faço-lhe esta pergunta sacramental. Número um: Estão com a Junta de Salvação Nacional. OK. Toda a gente estava. Número dois: Com o 25 de Abril? Sim senhor. Número três: O que é que pensam sobre a Câmara? Vamos deixar e não há um sinal de modificação, vamos aceitar já os ecos que começam a bulir de rebenta-se a Câmara e ocupa-se a Câmara. Isto é um meio pequeno, há que de facto tentar ver, se com alguma dignidade, não se ferem as pessoas, até porque o presidente da Câmara não era o que se pode dizer um fascista, era um daqueles homens bairristas que ocupavam as câmaras sem que, realmente, houvesse um pensamento. Aliás, esse homem, curiosamente, até começou no MUD juvenil, portanto tinha algum passado, não é. E portanto havia que não ferir e conseguiu-se, de facto, com um processo com uma certa lisura transferir a Câmara com o patrocínio do MDP/CDE, na altura. MDP/CDE…
Fernando Rosas – Ao qual o Kalidas estava ligado.
Kalidas Barreto – Estava ligado e estavam ligados os outros dois indivíduos, um deles mais tarde foi presidente da Câmara e o outro, o outro presidente da Câmara mais tarde, o Júlio Henriques que é deputado pelo Partido Socialista. É um empresário que está fora da política, mas que era um activista na altura desde o Humberto Delgado que fizemos parte e então nós assumimos que, durante algum tempo, manteríamos o MDP/CDE para não estar a dispersar forças. Entretanto, não faltou muito, um mês ou coisa assim, embora eu mantivesse contactos privilegiados com o Partido Socialista por razões das pessoas amigas que tinha e tal. A partir de um mês, um mês e tal começou-se a ver que, de facto, havia um certo ascendente do Partido Comunista dentro do MDP, começou a criar algum mau estar e então num plenário, muito calmamente e só de facto em meios pequenos é que é possível, eu declarei, meus amigos eu vou fazer a minha opção, eu ligo-me ao Partido Socialista e portanto, a partir de agora, cada um toma a opção que quer e logo a seguir eu vou ligar ao PPD, na altura era o PPD. Portanto, tudo bem, cada um formou a sua coisa, mantivemos a Câmara até às eleições, mas realmente foi assim.
Fernando Rosas – A partir do momento em que o Kalidas foi eleito para a direcção do seu sindicato, passou a colaborar mais activamente na coordenação na Intersindical ou não?
Kalidas Barreto – Não, só mais tarde, só depois de… Entretanto ainda passei por dirigente da Federação dos Lanifícios e só em 1976…
Fernando Rosas – Quais foram as grandes lutas que travaram antes do 25 de Abril, os vossos sindicatos?
Kalidas Barreto – O nosso era a contratação colectiva sobretudo.
Fernando Rosas – E era para quê? Aumento de salários?
Kalidas Barreto – Aumento de salários e aumento de regalias que de facto não existiam. Não havia férias, não havia subsídio de Natal.
Fernando Rosas – Não havia relativamente ao que há hoje. Pode haver algum trabalhador têxtil que nos esteja… Um jovem trabalhador que nos esteja a ouvir. Qual era a diferença? O que é que era a diferença? Em termos de horários de trabalho?
Kalidas Barreto – De trabalho, eram 10 horas por dia, embora fossem só 8 institucionais porque toda a gente trabalhava 10 horas por dia. Trabalhava-se ao sábado, trabalhava-se na véspera de Natal e véspera de Ano Novo. Tudo isso foram conquistas que se foram tendo. As férias eram proporcionais aos anos de serviço e havia… acho que o máximo eram quinze dias, não tenho agora de memória. Havia casos de doença prolongada, era caso para despedimento, tuberculose era caso para despedimento, com justa causa. Portanto, havia um conjunto de coisas…
Locutora - E as mulheres grávidas, como é que era?
Kalidas Barreto – Bom, foi por aí que eu comecei a ser sindicalista. Uma mulher que estava grávida da minha empresa e que foi despedida e eu opus-me. Disse, como é que é? E a discussão foi tão elegante que eu estava num escritório com uma janela com grades e disse para o dono da empresa que um de nós tinha que sair pela janela. Era um bocado difícil. Tinha grades. Mas a mulher não foi despedida.
Locutora - Mas era costume?
Kalidas Barreto – Era costume. Era, era e, pronto, não havia qualquer sanção sobre isso porque também se houvesse alguma reacção da pobre, triste ou de quem quer que fosse havia logo o labéu de que era comunista ou era afecta ao Partido Comunista. Isso era logo. Era complicado. Isso gradualmente foi-se ganhando. O sindicato que não merecia nenhuma respeitabilidade, sindicato corporativo, passou a ser um sindicato respeitado, respeitado e mal amado, naturalmente, mas, pronto, mas também havia, não havia também, não podiam fazer. Conseguíamos um contrato, mau ou bom, mas conseguimos que esse contrato fosse avante, com melhorias salariais.
Fernando Rosas – Demorou muito tempo a negociar o contrato?
Kalidas Barreto – Demorou ainda alguns seis ou sete meses.
Fernando Rosas – Vocês fizeram acções de reivindicação.
Kalidas Barreto – Mais de pressão/reivindicação, mas a greve não era permitida. Lá na zona, no entanto, em Lisboa, fez-se. A fábrica Barros que era uma fábrica com algum volume… [Fernando Rosas – Ali em Benfica.] Não, não é em Benfica, é Cabo Ruivo. Era uma fábrica com muita gente e conseguiu, realmente, impor algumas lutas com greve, ou de zelo ou não a greve às vezes muito declarada que havia muita greve de zelo, não é.
Fernando Rosas – E havia uma grande diferença salarial entre os homens e as mulheres?
Kalidas Barreto – Bom, não só entre homens e mulheres, mas também entre Lisboa e Castanheira de Pêra. Um operário em Castanheira de Pêra, tendo as mesmas funções, não tinha o mesmo salário que tinha um operário de Lisboa e a mulher tinha um salário, o homem tinha outro salário, com a mesma profissão, lado a lado.
Fernando Rosas – Vocês conseguiram, o que é que conseguiram nessa matéria?
Kalidas Barreto – Nivelar, com que o salário fosse igual entre homens e mulheres. Trabalho igual, salário igual.
A questão social e o movimento sindical. Teve as colaborações de Kalidas Barreto e Fernando Rosas.
Fizeram este programa, João Monteverde, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
“ERA UMA VEZ UM MILENIO”. Em tempo de mudança, a história do século XX. Ciência, literatura, arte, filosofia, política.
 
(Programa transmitido na Antena 2 no dia 13 de Março de 1998)
Transcrição: Ireneu Batista