ERA UMA VEZ UM MILÉNIO
Entrevista com Ruben de Carvalho e Fernando Rosas
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”
Por Adelaide Marques, Paula Guimarães, Fernando Humberto, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
24 de Abril de 1974, há 24 anos o Movimento das Forças Armadas inicia as operações militares que acabaria com a mais velha e conservadora ditadura europeia.
Grândola, vila morena, terra da fraternidade,
O povo é quem mais ordena, dentro de ti oh cidade.
1974, a 5 de Março, numa reunião realizada em Cascais, o Movimento dos Capitães passa a designar-se Movimento das Forças Armadas, MFA. São aprovadas as suas bases reais programáticas, constantes de um documento distribuído nos quartéis, O movimento, as forças armadas e a Nação. Dias depois, são iniciados contactos com os partidos e movimentos políticos da oposição.
14 de Março, alegando falta de comparência na cerimónia de apoio à política ultramarina do Governo na qual participou a quase totalidade dos oficiais superiores dos três ramos das forças armadas e consequentemente quebra de confiança política, o presidente do Conselho demite os generais Francisco da Costa Gomes e António de Spínola dos cargos de Chefe e Vice-Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, respectivamente.
16 de Março, dinamizado essencialmente por elementos spinolistas do MFA, destinado a assegurar o controlo da situação posterior ao eventual derrube do Estado Novo pelo general Spínola e seus apoiantes, eclode no Regimento de Infantaria 5 das Caldas da Rainha um golpe militar. Devido ao isolamento pela PIDE e à falta de coordenação com os outros sectores do movimento, a iniciativa é derrotada, são presos cerca de 130 oficiais e aumenta a vigilância sobre os militares que a polícia pensava serem os principais responsáveis do MFA.
24 de Março, última reunião clandestina da Comissão Coordenadora do MFA marca o golpe de estado para a semana de 20 a 27 de Abril de 1974.
29 de Março, rodeado de forte aparato policial, decorre no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, o primeiro Encontro da Canção Porrtuguesa. Participa, entre outros, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire, José Jorge Letria, Ary dos Santos e José Afonso.
23 de Abril, o major Otelo Saraiva de Carvalho é oficial escolhido para coordenar o plano operacional a concretização do golpe militar que deveria derrubar o regime fascista português. Entrega envelopes fechados a capitães mensageiros, contendo instruções para as acções a desencadear na noite de 24 para 25 de Abril de 1974 e um exemplar do jornal A Época que serviria de senha de identificação junto das unidades militares participantes.
24 de Abril, 22 horas e 55 minutos. A transmissão da canção “E depois do adeus” interpretada por Paulo de Carvalho aos microfones dos Emissores Associados de Lisboa marca o início das operações militares planeadas pelo MFA.
“Faltam 5 minutos para as 23 horas e Paulo de Carvalho com o euro-festival de 74 “E depois do adeus”. (Palavras do locutor)
25 de Abril, 0 horas e 20 minutos. A transmissão da canção “Grândola, vila morena” de José Afonso, no programa Unite da Rádio Renascença é o sinal confirmativo de que as operações militares planeadas pelo MFA estão em marcha e são irreversíveis.
“Aqui, Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas. As Forças Armadas Portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolher a suas casas nas quais se devem conservar com a máxima calma. Esperamos sinceramente que a gravidade da hora que vivemos não seja tristemente assinalada por qualquer acidente pessoal para o que apelamos para o bom senso do comando das forças militarizadas no sentido de serem evitados quaisquer confrontos com as forças armadas” (Comunicado do MFA)
25 de Abril de 1974. Foi há 24 anos. Continuando o tema “O marcelismo e as oposições” temos hoje connosco Ruben de Carvalho para nos falar do Partido Comunista Português. Como sempre contamos com a colaboração do professor Fernando Rosas.
Fernando Rosas - Ruben de Carvalho boa tarde, obrigado pela tua presença aqui. O discurso político nos documentos dos órgãos centrais do Partido Comunista começam a dar uma prevalência a uma orientação que privilegia as grandes movimentações unitárias para as eleições, ligações ao movimento grevista que de facto tem uma grande expressão nessa altura, etc. etc. Por isso, dum ponto de vista interpretativo não é completamente abusivo dizer que possa ter havido uma inflexão...
Ruben de Carvalho – Julgo que a tudo isso há ainda a acrescentar um outro factor que é digamos, conforme é sabido, e tu sabes de toda a definição da orientação do Partido que saiu do seu 6º Congresso, faz parte o conceito que o derrubamento do fascismo seria feito por um levantamento nacional, mas para o qual seria indispensável, não é, um mínimo de neutralidade, quando não a participação das forças armadas. Ora começa a acontecer, de certa forma a partir de 1973, é que há uma rotura, conhece-se e ela começa a ser verificada e começa a haver um afastamento das Forças Armadas em relação ao fascismo e ao marcelismo, contraditória, contraditória porque, evidentemente, esse afastamento também se faz à direita [Fernando Rosas - Pode ter havido a preocupação de não prejudicar] mas as condições começam a alterar-se também do nosso ponto de vista.
Fernando Rosas - O Partido acompanhava essas fracturas dentro do aparelho militar?
Ruben de Carvalho - Como é fácil de compreender, centenas, milhares de militantes do Partido passaram pelo Exército e portanto, independentemente, da própria organização, conforme se sabe, não é, o Partido sempre teve nas Forças Armadas, com órgãos da imprensa clandestinos próprios, etc. e a participação em movimentos unitários e antifascistas nas forças armadas é evidente que a presença de centenas de milicianos com posicionamentos políticos antifascistas, envolvimentos orgânicos democráticos de maior ou menor profundidade no seio do Movimento Estudantil, das Associações de Estudantes, etc. fornecia, aliás, a toda a oposição, um conjunto muito grande de informação sobre, enfim, o que se estava a passar, o que se ia passando, etc., não é.
Fernando Rosas - O Partido soube que ia haver ou obteve informação através dos seus canais próprios de que ia haver porque é sabido, aliás, vem escrito nas biografias dos principais operacionais do movimento militar de Abril que há comunicação oficial ou oficiosa às diversas forças políticas nessa altura.
Ruben de Carvalho – E não só. Há, inclusivamente, de forma mais ou menos, nuns casos menos orgânica, noutros casos mais orgânica, algum tipo de apoios explícitos. Quer dizer, é conhecido o caso, por exemplo, do fornecimento da planta de Caxias, do Forte de Caxias e outras situações. Enfim, ao nível de direcção do Partido e nomeadamente do organismo responsável à época pela direcção da luta no interior do País que era a Comissão Executiva do Comité Central, quer dizer, não sei, não tenho elementos. Posso falar pela parte que me toca. [Fernando Rosas – Ou seja] Eu no dia 24 para o dia 25 não me deitei porque me tinham dito, pura e simplesmente isto, hoje não te deites. É claro que me deitei mesmo e adormeci vestido e tudo em cima da cama e acordei às 7 horas da manhã com...
Fernando Rosas - Portanto, há uma orientação do Partido para uma situação de vigilância?
Ruben de Carvalho – Nota que no fundo há que não esquecer, há que não esquecer, vamos lá ver, que já tinha havido as Caldas. Ora bem, era absolutamente evidente que alguma se tinha que passar. Não havia, digamos, duas alternativas. É óbvio que o MFA não poderia deixar, quer dizer, os homens das Caldas na cadeia. Portanto alguma coisa, mais cedo, mais tarde, teria que acabar por acontecer.
Fernando Rosas - O Partido Comunista em situações anteriores de tentativas de movimentos anteriores, de golpes anteriores tinha tomado sempre uma posição de bastante reserva ou de alguma desconfiança em relação aquilo que chamava o ‘putschismo’ e condenava como método político. Há uma alteração de atitude em relação a este novo movimento militar, em termos de expectativa, digo.
Ruben de Carvalho - Há, há claramente e eu penso que de todo se justificava que assim fosse, não é, porque as condições, digamos, como se desenvolve o movimento das forças armadas são substancialmente diferentes e aliás isso, conforme sabe, foi uma polémica teórica que perpassou toda a primeira década depois do 25 de Abril e que julgo que ainda nalguns aspectos se manterá e eu considero que a definição do Partido, não é, recusando a caracterização do ‘putsch’, mas falando num levantamento militar, seguido de um levantamento popular é correcta porque o que acontece é que não é e há aqui um pormenor que é particularmente importante, é que de certa forma o que caracteriza um pouco o ‘putsch’, digamos, a sua orientação e a sua direcção política ser feita, de maior ou menor forma, mas quase essencialmente, dentro da hierarquia tradicional das Forças Armadas com as ligações inerentes que um aparelho militar e nomeadamente os seus postos mais elevados têm à situação política e no caso de um regime fascista tinham a um regime com aquelas características. Ora o que acontece é que logo em todo o processo da constituição do processo das Forças Armadas há uma subversão desta realidade. Quem toma o comando, quem toma a orientação, quem toma a iniciativa não é a hierarquia militar como teria sido se fosse o caso, por exemplo, e como se desenhava na hipótese de um ‘putsch’ do Kaúlza de Arriaga, mas é, digamos, um número muito grande de jovens oficiais que introduz imediatamente uma subversão da própria estrutura militar o que mesmo do ponto de vista político já é em si significativo. Depois vem o programa, vêm os objectivos, digamos a postura inequívoca no sentido de uma democratização do Regime, etc. Portanto, não estamos perante um ‘putsch’, mas atenção, eu julgo e enfim não sou só eu julgo, que a não se ter verificado no próprio dia 25 de Abril a erupção popular que se verificou, a evolução poderia ter sido diferente porque o que acontece [Fernando Rosas – Isso que não estamos perante um “putsch”, estamos perante um movimento militar] Em qualquer dos casos é um movimento militar e é legítimo afirmar que se não há esse levantamento popular, na prática, a componente mais à esquerda e mais democrática, digamos assim, do MFA, vamos lá, os capitães poderiam ter ficado numa situação de muito maior instabilidade face à tentativa de apropriação do movimento pela hierarquia tradicional das forças armadas e portanto configurar um processo completamente diferente. O que acontece é que esta erupção popular, este levantamento popular forneceu ao MFA e à componente dos capitães, digamos, a força e a legitimidade política para poder prosseguir de facto com o desmantelamento do aparelho militar que se consubstancia desde logo, por exemplo, na questão da PIDE, onde, conforme se sabe, o general Spínola era contrário ao saneamento dos generais.
Fernando Rosas - Há certos pontos de vista que têm a seguinte análise. A oposição, apesar, enfim, dos seus esforços ao longo dos anos não conseguiu derrubar o Regime e o Regime é derrubado pelos militares e portanto o derrubamento do Regime opera-se como que à margem da própria resistência histórica da oposição. O que é que pensas deste ponto de vista?
Ruben de Carvalho – Eu acho que não, eu acho que não porque, digamos, não é possível e, aliás, o PCP no seu caso sempre o afirmou, não era possível, digamos, fazer o derrubamento de um Regime, de uma ditadura terrorista como era o caso do fascismo, sustentada por poderosos aparelhos policiais e poderosos aparelhos policiais com uma grande continuidade no tempo porque isto é outro aspecto que muitas vezes em relação ao fascismo se esquece, não é. Evidentemente que a instalação do fascismo, nomeadamente nos anos 30, é acompanhada por crimes e violências muitíssimo grandes que me levam, por exemplo, a contestar frontalmente as teorias de que isto não foi um fascismo, foi só um regime conservador e tal, tal. Não, quando teve de recorrer à violência, característica da implantação dos regimes fascistas e da sua conservação no poder recorreu. Os anos 30 foram, quer dizer, houve fuzilamentos, houve prisões, houve campos de concentração tudo aquilo de que o Regime entendeu que necessitava para se consolidar no poder. A situação evidentemente que se modifica, nomeadamente a partir do pós guerra, porque acontece que o salazarismo apanha a boleia da guerra fria, mas entretanto tem uma coisa que os outros regimes, tirando o caso do espanhol, não tinham que é um aparelho repressivo e um saneamento das forças armadas que tem, já nessa altura, vinte e tal anos. Por conseguinte esta continuação no tempo do aparelho repressivo do fascismo penso que é um problema de particular importância. O que acontece é que nestas circunstâncias, numa situação destas penso que, aliás, não há, de certa forma, memória de um regime com estas características ser derrubado a não ser pela força das armas. Ora e agora resta saber como é que se faz um enlace da orientação política, da visão política e dos objectivos e da programação política das forças da oposição e digamos a questão material de quem é que possui as armas. A experiência indica que de facto na circunstância, isso como o PCP sempre o disse e acho que a história o comprova, o derrubamento de um regime fascista não se pode fazer sem o apoio ou pelo menos a neutralidade duma parte substancial das Forças Armadas. Ora, mas para que isto aconteça, quer dizer, isto não acontece por si, não acontece caído do céu aos trambolhões, as Forças Armadas, digamos, não há mudanças de opinião, mudanças, tendências no seio dos homens concretos que constituem, nomeadamente, os quadros das Forças Armadas sem que, digamos, essa opinião não surja, não seja divulgada, não seja teorizada, não seja apresentada. Quer dizer, não nasce por geração espontânea. Ora o que acontece é que houve, julgo que é absolutamente indissociável a mutação que se verificou, nomeadamente a partir de 70-71, progressivamente nas Forças Armadas da existência prolongada de décadas da intervenção das forças democráticas, da sua teorização, etc. Mais, eu penso até que nalguns aspectos o 25 de Abril acaba por ser uma demonstração exactamente ao contrário por duas questões. Em primeiro lugar penso que é historicamente inquestionável que tudo o que aconteceu durante 73, as eleições, o Congresso de Aveiro, etc. é determinante na evolução do processo inicialmente corporativo da movimentação dos capitães para a politização do movimento porque os documentos estão ali, etc. e por outro lado a própria situação política e social que é animada pelas forças da oposição antes do 25 de Abril, no próprio dia 25 de Abril e na sua sequência.
Fernando Rosas - Noutras conjunturas de crise do Regime tinha sido frequente, tinha acontecido haver tentativas por parte das Forças Armadas, sobretudo dos altos comandos do Regime operarem transformações de carácter palaciano. A diferença específica desta movimentação militar parece-me que é introduzida pela guerra colonial ou seja, a guerra colonial cria uma situação na tropa que faz com que o esforço militar vá repousar numa classe de oficiais que são os chefes das quadrículas ou seja os Comandantes de Companhia, os capitães, e disponibiliza muito esse sector particular da oficialidade para a resistência à guerra, primeiro corporativo e depois mais politizado.
Ruben de Carvalho - Eu penso que não só isso Fernando. Eu julgo que é evidente que a guerra colonial alterou o quadro e o panorama das Forças Armadas portuguesas, mas alterou num número muito grande de aspectos. Desde logo, por exemplo, alterou profundamente a origem social dos quadros das Forças Armadas [Fernando Rosas - Nomeadamente dos oficiais] Dos oficiais. Sabe-se que, digamos até ao início da guerra colonial, a frequência, nomeadamente, da Academia Militar correspondia a famílias do Regime e até, digamos, do ponto de vista económico há um determinado estatuto. É preciso não esquecer que para se casar, um oficial tinha que casar com uma senhora com dote e sucedeu até aos anos 70 [Fernando Rosas - Tinha que ser autorizado] E tinha que ser autorizado. Ora bem, com a existência da guerra colonial aquele destino de ser oficial do exército sem guerra alterou-se [Fernando Rosas - Democratizou-se o acesso] Mais, a Academia Militar começou a ser uma possível saída profissional para filhos de famílias modestas e a única possibilidade de, por exemplo, tirarem um curso ou fazerem uma licenciatura. Mas certamente que quando andámos na Universidade havia numerosos jovens cadetes da Academia Militar, no Técnico, na Faculdade de Ciências, etc. Portanto, isso mudou e foi mudando progressivamente a própria origem social e portanto a sua ligação com a sociedade da oficialidade do Exército Português. Depois, por outro lado, há um problema quantitativo e de inerente convívio, ou seja, o relacionamento da própria oficialidade nos quadros dumas Forças Armadas em período de guerra com os seus soldados é completamente diferentes fora do período de guerra. Ou seja, para dar uma ideia um bocado ridícula, quer dizer, a existência de um impedido que no fundo é uma espécie de criado particular do oficial, se em termos do tempo de paz é plausível, em termos de tempo de guerra, por todos os motivos, até porque o relacionamento é completamente diferente, a dependência é completamente diferente. Ora bem, quer este aspecto do relacionamento quer o conhecimento que estes oficiais passaram, se se quiser, a todo o país real porque milhares e milhares de jovens, de Trás-os-Montes, da Beira, de não sei quê
Fernando Rosas - O que estás a dizer dás-me razão, ou seja, a guerra colonial introduz um factor inteiramente novo no papel das Forças Armadas.
Ruben de Carvalho - Eu comecei por te dar razão e introduz aquilo, digamos, que eu pretendi sublinhar é que introduz de uma forma muito diversa de linhas e de vectores, confluem toda uma série. Há, por exemplo, um aspecto...
Fernando Rosas – Porque a hipótese que eu te queria pôr, se não te importas, é esta. Sem existência de guerra colonial, imagina tu, estes contrafactuais em História são um bocado se minha avó tivesse rodas era um eléctrico. Mas se o Regime, por hipótese, em 61 tem concedido começar a descolonizar e a resolver a questão colonial por virtude de qualquer alteração política que nessa altura pudesse ter vencido, por virtude do golpe do Botelho Moniz, etc. A questão que se põe é esta, é que a não existência da guerra colonial poderia ter possibilitado em Portugal uma espécie de transição à espanhola, ou seja, em que as próprias Forças Armadas se adaptariam à capacidade do Regime da oligarquia conduzir a transição quando em Espanha...
Ruben de Carvalho - Não tenho esse ponto de vista, não tenho esse ponto de vista porque a decisão, ou digamos, a questão de fazer ou não fazer a guerra colonial não é uma pura decisão política subjectiva, passível de ser tomada ser tomada ou de não ser tomada.
Fernando Rosas - Mas, foi, como sabes, não foi unânime. Em 61 a questão...
Ruben de Carvalho - Mas o problema é que nós temos que ir mais longe, a questão é que nós temos que ir mais longe e verificar se do ponto de vista económico e social o Portugal do marcelismo, não é o Portugal do fascismo, tinha condições, em termos de desenvolvimento dos meios de produção, em termos de relações de produção ao nível do país, da metrópole e ao nível do quadro colonial para fazer a descolonização. Digamos, porque o ponto de vista que os comunistas defenderam era o seguinte. O fascismo e a existência dum regime ditatorial fortemente repressivo não era um acidente da História, o problema é que a única forma de ver, digamos, do sistema capitalista se sustentar em Portugal dado o baixo nível de desenvolvimento das forças de produção era contar com um forte aparelho repressivo que impedisse, pura e simplesmente, a capacidade reivindicativa e de exigência da classe operária e trabalhadora, dos trabalhadores em geral e da população em geral. Portanto, digamos, que é uma necessidade objectiva do desenvolvimento do capitalismo em Portugal é a existência de um Regime com aquelas características.
Locutora - A 25 de Abril de 1974 o Regime repressivo foi derrubado pelo Movimento dos Capitães.
(Excertos de transmissões da rádio da altura)
“O marcelismo, as oposições, o Partido Comunista” contou com as colaborações de Ruben de Carvalho e Fernando Rosas que nos vão acompanhar ainda na próxima semana.
Fizeram este programa Adelaide Marques, Paula Guimarães, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
(Programa gravado da Antena 2 no dia 24 de Abril de 1998)
2ª Parte
No dia 1 de Maio de 1974, há vinte e quatro anos, o povo saiu para a rua em todo o país numa enorme e entusiasmante manifestação de alegria e unidade. Celebrava-se não só o dia do trabalhador, mas também o primeiro 1º de Maio em liberdade.
Há vinte e quatro anos o povo saiu à rua e o dia foi de festa.
“E é neste ambiente extraordinário de fraternidade, de patriotismo que decorreu este comício da manifestação do 1º de Maio aqui no Estádio da Alegria no Trabalho, hoje Estádio 1º de Maio. O povo, esse continua a manifestar-se. Ele tem razão para o fazer. Deixai o povo falar!”
O primeiro 1ºde Maio foi há vinte e quatro anos. Essa grande manifestação de liberdade e unidade só foi possível graças ao golpe militar do 25 de Abril de 1974 que derrubou a mais velha e conservadora ditadura da Europa.
Continuamos hoje a falar do marcelismo e as oposições e continuamos com Ruben de Carvalho para nos falar do Partido Comunista. Presente também e como habitualmente Fernando Rosas.
Fernando Rosas – Ruben, muito boa tarde, obrigado pela tua presença aqui. Como é que um militante do Partido Comunista se sentia em África na guerra colonial quando o Marcelo Caetano sobe ao poder?
Ruben de Carvalho - Ora bem. Eu tenho em relação a esse período do marcelismo, eu fui para a tropa em 1966 e depois tive um período acidentado em que fiquei por cá, fui ficando por cá, continuando, inclusivamente, a trabalhar do ponto de vista profissional. Sucedeu até uma coisa curiosa porque eu era nessa altura chefe de redacção da “Vida Mundial”, do primeiro formato de revista da “Vida Mundial” e fui eu que fiz o número da morte do Salazar. Só que o Salazar entretanto não morreu. Na semana em que ele caiu da cadeira, nós fizemos um número e o número ficou feito e foi de facto o número que saiu já eu não estava cá, já estava em Angola na altura em que...
Fernando Rosas - Como jornalista e como cidadão com ideias políticas o que é que tu sentiste quando o Salazar se foi. Esperança, expectativa, indiferença.
Ruben de Carvalho - Bom era evidente, era evidente que a morte, o desaparecimento do Salazar implicaria, inevitavelmente, uma grande mudança, mas do meu ponto de vista não estariam criadas condições para que o desaparecimento puro e simplesmente do Salazar tivesse, como não teve, consequências definitivas em relação à queda do Regime. É necessário ter em conta que o Regime nessa altura ainda dispunha, em meu entender, por um lado, de uma situação relativamente estabilizada em relação ao aparelho militar. Não havia crise no aparelho militar, havia digamos uma certa identificação até por causa da guerra colonial das altas patentes que tinham vindo, onde a geração que viria a fazer o 25 de Abril nessa altura ainda estava na prática na Academia Militar ou pouco mais, não é. Por conseguinte, era ainda a geração, a geração que tinha sido liquidada e afastada, enfim, a geração, alguns quadros mais recalcitrantes, o Botelho Moniz, o próprio Costa Gomes, etc. por conseguinte, a situação por aí estava relativamente estabilizada.
Fernando Rosas - E Marcelo Caetano enquanto personalidade que vinha de alguma crítica interna ao Regime suscitou-te alguma expectativa?
Ruben de Carvalho - Não. Aqui já começa a entrar de facto o problema, um certo problema, no meu caso, de afastamento físico. É que quando o Marcelo Caetano toma posse eu de facto já não estou cá, já estou em Angola, já estou.
Fernando Rosas - Tu puseste a ti próprio a questão de ir ou não ir para a guerra e resolveste em termos políticos.
Ruben de Carvalho - Claro que pus e resolvi ir por entender que digamos que, digamos, que haveria possibilidades de realizar, como houve, um trabalho político dentro do próprio exército e do próprio, enfim, do próprio serviço militar e digamos que do ponto de vista pessoal jogou um elemento que pode hoje não ter grande relevância, mas que enfim para quem viveu o período tinha que opor vicissitudes várias, a minha especialidade era enfermeiro o que, digamos, situava o problema duma forma um pouco diferente. Não era uma especialidade operacional, combatente, por conseguinte o que criava alguma, digamos, do ponto de vista moral...
Fernando Rosas - Foste para onde?
Ruben de Carvalho - Estive em Angola e andei por sítios os mais variados. Estive em Luanda, claro. Quando se chegava, inevitavelmente, depois estive no sul, em Sá da Bandeira, estive em Artur de Paiva, estive em Mavinga.
Fernando Rosas - O que era fazer trabalho político na tropa. Pode-nos falar um bocado acerca. O que era aproveitar...
Ruben de Carvalho – Era, fundamentalmente, manter, há um aspecto que é prosaico e simples que é manter os laços que no fundo que vinham de cá. Era uma preocupação que toda a gente acabava por ter, tinha muito até que ver com o Movimento Estudantil, com Associações de Estudantes, etc. No fundo tentar encontrar as pessoas quando lá estavam, trocar informações, trocar livros, trocar publicações. Portanto, manter os contactos, de certa forma manter uma organização. Por outro lado, quem passou por isto sabe que, inevitavelmente, nesta situação se falava muito porque são horas e horas, dias, meses de completo isolamento dos circuitos habituais da vida duma pessoa e onde todas as pessoas estão metidas dentro do mesmo circuito. Mesmo, digamos, se se trata de uma situação como também eu estive. Estava na mata então aí não há alternativa. Quer dizer está-se mesmo ali, não se sai dali, está-se todos juntos, 24 horas por dia. Mas noutro local, enfim, mesmo na cosmopolita Luanda, obviamente, que os contactos se mantêm, digamos, e isto dá como consequência que inevitavelmente se fala muito e eu penso que mesmo para o aparecimento de uma determinada abertura de vistas que se traduziu depois no aparecimento no Movimento dos Capitães esta conversa, este esclarecimento, este falar. Eu refiro-me, por exemplo, que fui para a Angola, levando na mala do porão, enfim, uma quantidade enorme de livros de que praticamente não trouxe nada. Desde os “Damnés de la terre” do Fanon, livros que marcaram nessa altura e que eu fui dando. “Les damnés de la terre”, por exemplo, lembro-me que dei a um capitão do MFA.
Fernando Rosas - Era uma sensibilização que se fazia sobretudo junto dos oficiais ou mesmo entre a massa dos soldados.
Ruben de Carvalho - Mesmo entre a massa dos soldados até porque a meu ver havia de facto, inevitavelmente, um comportamento diferente dum graduado ou dum oficial que tivesse um posicionamento de esquerda e um posicionamento de um antifascista, relativamente a um gradual ou a um oficial de direita, militarista, etc. Eu não quero dizer que serviço militar de quase seis anos e o número de pessoas, inclusivamente do quadro, convictas, digamos, reproduzindo a argumentação oficial do Regime era verdadeiramente mínimo. Já nessa altura muitos dos oficiais que estavam na segunda ou terceira comissão, quer dizer, já se tornava claro que não havia solução militar.
Fernando Rosas - Não havia convicção não era.
Ruben de Carvalho - Não havia, não havia de facto, não havia convicção e o que não significa que, aliás, há que não esquecer que havia também nas colónias uma presença que era uma presença intimidatória a nível da própria existência das Forças Armadas que era a presença da PIDE.
Fernando Rosas - A PIDE colaborava bastante com as Forças Armadas.
Ruben de Carvalho - É uma história que está um pouco por contar que é o problema do relacionamento entre as Forças Armadas nas colónias. É claro que eu não vou generalizar, não conheço, não estive na Guiné, nem estive em Moçambique, nem fiz nenhum levantamento sistemático ou estudo sobre o assunto, limito-me a falar duma experiência vivida durante algum tempo, e daquilo que eu ouvi e vi. É preciso não esquecer que a prova acabada de que há traços muito peculiares nesse relacionamento é o facto de quer em Angola quer em Moçambique, a PIDE dispunha de forças armadas próprias, os Flechas, que constituíam uma força de intervenção que dependia directamente da PIDE e apenas de alguns sectores muito específicos das Forças Armadas, mas a existência de conflitos não era sequer rara, não é, e principalmente, digamos, havia um tipo de oficial que acreditava, de facto, por exemplo, na acção psico-social, na psico e é claro que a PIDE era um movimento destruidor de qualquer acção psico-social que deixava frequentemente... Por causa do tipo de guerra, de intervenção, etc.
Fernando Rosas - Tu eras um homem com antecedentes policiais por virtude da tua actividade política. Isso não te prejudicou na tropa, não sentiste nenhuma atenção especial.
Ruben de Carvalho - Não. Evidentemente que eu cada vez que chegava e era transferido de local. Nessa altura já tinha tido oito prisões ou qualquer coisa nesse género de maneira que oito dias depois de eu chegar...
Fernando Rosas - Mas não foste para Penamacor nem para outro lugar.
Ruben de Carvalho – Não, não. Não fui para Penamacor até pelo facto de acabei por nunca ser julgado, nunca fui condenado Outros casos houve em que companheiros nossos que foram para Penamacor em circunstâncias idênticas. Curiosamente, não só nunca senti como até isso acabava por despertar alguma, ou seja, isso dava-me uma certa impunidade [Fernando Rosas - Uma certa aura de curiosidade] Dava-me uma certa impunidade e era normalmente, em muitas circunstâncias, um indivíduo procurado para emitir uma opinião, para não sei quê, porque digamos era publicamente e [...] um dossier de várias páginas, cada vez que chegava a qualquer parte para dar uma opinião e depois acrescentava o facto de ser jornalista, jornalista da “Vida Mundial”, jornalista do “Século”, nunca tive e bem pelo contrário, enfim, tirando um ou dois incidentes, é claro, com o graduado mais desatinado que sabia o que aconteceu, mas, digamos, o caso é excepcional. Pelo contrário não tive no meu relacionamento com comandos e com oficiais problema a esse respeito e como digo pelo contrário, por vezes determinava a curiosidade a perguntas, exactamente, na altura, por exemplo, do Marcelo, eleições de 69. Eu estava em Angola, era muitas vezes...
Fernando Rosas - Havia algum sinal premonitório dessa disponibilidade dos oficiais para fazerem qualquer coisa ou de ...
Ruben de Carvalho - É um bocadinho, vamos lá ver, é um pouco fazer este tipo de afirmações decorridos os anos e depois das coisas terem de facto acontecido. Pode despertar legítimas desconfianças, mas eu quando vim não tinha rigorosamente dúvida nenhuma de que alguma coisa ia evoluir. Era inevitável. Como, de que forma, mas era inevitável. Como eu digo, eu quando cheguei, disse isso e muitas vezes, em muitas circunstâncias, inclusivamente ao meu Partido, esta situação, ainda não estava dado o passo para o antifascismo, mas já estava dado o passo para o não fascismo, ou seja, já não se encontrava na esmagadora maioria, mesmo dos graduados, dos quadros e dos oficiais, etc. qualquer tipo de empenho activo na defesa dum ideário, duma posição. Era muito raro isso acontecer.
Fernando Rosas - Mesmo na condução das operações militares.
Ruben de Carvalho - Vamos lá ver. O tipo de guerra que se conduzia principalmente em Angola, porque há três teatros de guerra e há três situações que são completamente diferentes, não é. A Guiné uma situação, Angola é uma outra situação. [Fernando Rosas - Tu estavas em Angola] Estive no Leste. Estive no Sul onde nem sequer havia guerrilha e no Leste. Ora bem, Angola tinha uma situação que é uma situação muito peculiar é que Angola tem uma superfície que é metade da Europa e tem uma população de cinco milhões de habitantes. Ora bem, e pode dizer-se quando se diz que a situação do ponto vista militar em Angola era diferente da que era, nomeadamente na Guiné. Digamos, é opinião generalizada que a Guiné estava à beira do colapso e em Moçambique onde a situação era também muito complexa. Em Angola, eu digo muitas vezes que o problema em Angola, mais até do que um problema estritamente militar no capítulo da acção militar, pronto, acção armada, era uma guerra onde os meios de transporte tinham uma importância muito grande [Fernando Rosas - Por causa das distâncias.] Por causa das distâncias e digamos e das pessoas. A guerrilha para trazer um míssel ou um cunhete de munições tinha que calcorrear a pé desde as fronteiras quilómetros e quilómetros e quilómetros e quilómetros e a tropa tinha o correio, a camioneta com os abastecimentos, com as cervejas, etc.
Fernando Rosas - Que era uma guerrilha que atacava sobretudo as linhas de abastecimento.
Ruben de Carvalho - E digamos e que se situava depois em Angola ainda houve, conforme é sabido, também os problemas inerentes a uma situação que era diferente de Moçambique e da Guiné onde havia movimentos de independência unificados e ali havia situações complexas e como é sabido e se sabe digamos o exército colonial jogaram activamente nisso. É hoje do conhecimento geral que, nomeadamente a UNITA no Leste, foi o instrumento das Forças Armadas portuguesas utilizadas claramente contra o MPLA que por sua vez também mesmo no seu próprio interior teve problemas complexos de orientação política, etc. donde, vamos lá ver, em Angola não se tem uma situação e eu tenho amigos e camaradas que estiveram na Guiné e que estiveram em Moçambique. Quer dizer, a situação até nesse ponto de vista é substancialmente diferente o que também explica a meu ver que, por exemplo, tenha sido na Guiné que mais se precipitou alguma tomada de consciência. Isto independentemente do papel que possa ter desempenhado ou não desempenhado o general Spínola, é evidente que há uma radicalização maior.
Fernando Rosas - Tiveste na guerra portanto, em teatro de operações, mesmo em África tiveste dois anos.
Ruben de Carvalho - Não chegou a dois anos. Não chegou a dois anos porque acabei por vir evacuado.
Fernando Rosas - Ferido.
Ruben de Carvalho - Sim, mas até nem foi propriamente por causa disso, foi mais por causa do problema da asma que se agravou muito.
Fernando Rosas - E chegaste a Portugal e encontraste o Portugal marcelista em pleno começo de desilusão.
Ruben de Carvalho – Exacto. É isso que eu ia dizer. Quer dizer, eu já não venho encontrar o Portugal marcelista, não é. Portanto eu chego cá no final de 70, meados final de 70, ainda com uma situação, ainda estou na tropa praticamente ao final de 71, fui para o hospital, juntas médicas, todas essas questões, mas, vamos lá ver, já tinha sido 69, já tinham sido as eleições, por conseguinte a primavera...
Fernando Rosas - Tinhas acompanhado.
Ruben de Carvalho - Mal, apesar de tudo mal, até porque isso coincidiu com o período das eleições de 69 coincidiu exactamente com uma altura em que eu andei a mudar de sítio em Angola, portanto nem sequer estive estabilizado. [Fernando Rosas - Em sítios donde pudesses...] E a partir daí até a chegada dos jornais mais complicada, etc. Só quando cheguei a Portugal [Fernando Rosas – Em 70.] Só há um episódio, que eu acabei por vir cá no final de 69 porque o meu pai morreu, o meu pai morreu nessa altura, eu estava em Angola de maneira que vim cá, mas vim nessa altura e eu lembro-me que nessa altura, foi no final de 69 [Fernando Rosas - Rescaldo das eleições] Falei enfim com toda a gente, mas isto aliás tem depois uma consequência em termos até da minha vida, do meu trabalho político, da minha intervenção política que eu praticamente, enfim, o meu Partido entendeu durante esse período, depois do meu regresso a Angola dar-me outro tipo de tarefas aquilo que poderíamos chamar mais discretas donde eu só, digamos eu que tinha desaparecido, eu tinha sido preso em 65, tinha saído em 66, e logo a seguir tinha ido para a tropa, portanto digamos eu acabei por estar cinco anos, quase seis, vá lá desaparecido no meio daquela agitação toda, daquela agitação toda de 69. A PIDE tinha-me deixado de encontrar, tropeçar em mim cada vez que via um abaixo assinado. De maneira que só em 73, no final de 73, na preparação das eleições, aspas, de Outubro de 73 é que eu apareci novamente.
Fernando Rosas - 73 é um ano em que o marcelismo já está a chegar ao fim, a esgotar as suas forças e é um ano de alguma mudança política porque a oposição parece reencontrar-se no sentido da unidade, uma parte portanto da oposição. Como é que tu viveste esses esforços da oposição socialista e comunista por o reencontro de uma certa conjugação na acção.
Ruben de Carvalho - Eu julgo que aquilo que nesse período e no período de 73 e até ao 25 de Abril há dois aspectos que em meu entender são particularmente relevantes. Um é um crescendo muito especial e muito particular da luta dos trabalhadores. Quer dizer, como em poucos períodos anteriormente a 73, a luta dos trabalhadores, seja pela existência, pelo fortalecimento da Intersindical, seja por um reforço da organização dos apoios do PCP em diversas áreas estratégicas, nomeadamente, enfim, em zonas de grande concentração operária como é o caso do Barreiro, Seixal, Almada, pelo aparecimento de unidades industriais com novas características, com grande concentração de trabalhadores, trabalhadores simultaneamente mais jovens, mas vindos frequentemente já de uma classe operária estabelecida, nomeadamente o caso da Lisnave que recruta muito, digamos, os seus trabalhadores na margem sul, portanto, trabalhadores operários filhos já de famílias operárias com uma consciência de classe bastante acentuada, enfim, um conjunto de situações que se agravam ainda com a questão do choque petrolífero. Quer dizer, o choque petrolífero no princípio de 73 provoca uma situação do ponto de vista social particularmente desagregante para o marcelismo porque afecta profundamente não só a sociedade toda com problemas de custo de vida, de aumento de custo de vida, como também as classes médias. As classes médias com os dramas das gasolinas, das bichas para a gasolina e tudo isso. Ou seja, confluem do ponto de vista social não só um desenvolvimento, um surto de lutas reivindicativas extraordinariamente importantes, no Alentejo, na margem sul, no Porto, etc. como também um descontentamento das classes médias, a fadiga em relação à não solução da guerra colonial. Do ponto de vista propriamente político e das forças da oposição eu julgo que a campanha eleitoral de 73 teve, de facto, nesse aspecto um papel particularmente importante. Por um lado, desenvolveu e consolidou a CDE como um movimento unitário que, naturalmente, tinha tido algum refluxo no pós 1969. Portanto, no início de 1973 no encontro de S. Pedro de Muel, nomeadamente, há um crescendo de actividade por parte nomeadamente da CDE e pelo conjunto de forças políticas que nela se faziam representar e em segundo lugar há uma confluência da intervenção política da CDE com este movimento popular. Se se consultar hoje, sejam os slogans, os documentos, etc. verificar-se-á que a CDE tem uma intervenção não só política muito actuante no sentido da alternativa do Regime, na denúncia das torturas, da repressão, etc., etc., mas também sempre uma ligação ao movimento operário, ao custo de vida, às greves, etc. Ora eu penso que é a confluência deste processo a que há a acrescentar o [Fernando Rosas - Congresso de Aveiro] como também momento particularmente importante de duas coisas, o reforço desta componente de confluência de unidade das forças democráticas como também de possibilidade de concretizar um conjunto d aspectos programáticos e de perspectivas que acabam por ter uma importância
Fernando Rosas - Esse pano de fundo que tu descreveste aliada à unidade que é sabido que foi restabelecida entre o campo comunista e o movimento socialista, enfim, o Partido Socialista dentro de pouco tempo. [Ruben de Carvalho - Na altura já era.] Na altura já era Partido Socialista pois,mas já não me lembra em que altura em que foi. É isso que faz o Partido Comunista abandonar o recurso à luta, às intervenções armadas que caracterizaram a ARA, quer dizer, a ARA a partir de certa altura há uma suspensão aparente das suas actividades militares, outros grupos armados continuam. Essa nova situação pode-se explicar por esse processo do movimento de massas o congelamento do recurso às acções armadas.
Ruben de Carvalho - Do ponto de vista, vá lá, do rigor histórico a ARA só suspende as suas acções depois do 25 de Abril. [Fernando Rosas - Mas na prática, não é] Depois do 25 de Abril. Antes do 25 de Abril não há propriamente, penso eu, teríamos agora que ir ver, em rigor, datas, etc. não é, mas digamos foi sempre uma orientação da ARA ligar as suas intervenções ao movimento de massas. É evidente que quando há este tipo de ligação a avaliação política, enfim, da forma como as duas acções se entreligam é uma preocupação normal duma direcção política. Ora, é evidente que o crescendo da luta de massas que se verifica ao longo de 1973, a realização do Congresso de Aveiro depois das eleições são acções.
Fernando Rosas - A minha pergunta é um bocado esta, se quiseres. Não há dúvida que a ARA a certa altura interrompe as suas acções armadas. Isso deve-se a golpes da polícia sobre a organização ou deve-se a uma decisão política.
Ruben de Carvalho - Eu penso que confluem as duas coisas. Há golpes penso que a polícia deu em relação à ARA com a prisão de alguns militantes e activistas da ARA e portanto o claro afectar da sua capacidade operacional, mas também, digamos, até uma questão [Fernando Rosas - Pode-se falar duma alteração táctica.] Não, penso que haja, nem nenhum documento em nenhuma circunstância o afirmou, simplesmente as acções da ARA foram acções que, como é natural, tiveram sempre, basta olhar para elas e ver, tiveram sempre, como disse a preocupação política da sua ligação com uma acção política mais vasta, particularmente o movimento de massas, como também preocupações que envolviam o esforço de guerra, o aparelho militar [Fernando Rosas - Um objectivo militar] sem que isto significasse perdas de vidas. Nenhuma acção da ARA custou vidas, custou equipamentos e materiais e esse tipo de intervenção penso que desempenhou um papel extremamente importante, mas como é também natural, determinou a partir de determinada altura uma muito maior vigilância por parte das forças de repressão. Ou seja, como é de depreender, a operação, por exemplo, que se realizou em Tancos não é uma operação com facilidades que se possa fazer três vezes, não é. É óbvio que a partir de determinada altura se começam a tomar... Penso que é o conjunto, digamos, não há uma explicação, não há uma alteração de orientação política, é um conjunto de circunstâncias a que se vem somar depois a alturas tantas depois o 25 de Abril.
Com Ruben de Carvalho e Fernando Rosas falámos hoje do marcelismo e das oposições, o Partido Comunista. Na próxima semana o tema vai ser “O marcelismo e a questão religiosa”. O convidado o arquitecto Nuno Teotónio Pereira.
Fizeram este programa Fernando Humberto, Maria dos Anjos Pinheiro e esmeralda Serrano.
(Programa gravado da Antena 2 no dia 1 de Maio de 1998)
Transcrição: Ireneu Batista